Imagem: Pxhere.com - Christophe Montoriol
Por: Antonio Mata
Cabisbaixo, com ares de aborrecido, vitimado pela má sorte. Enfim, um completo e inútil esquecido de Deus. Assim o homem acreditava ter acontecido. E assim, injustiçado.
— Não aceito isso, não posso aceitar! Não está correto! Isso não é justo! Onde está a justiça de Deus, que não viu? Tenho a consciência de que busquei ser um bom homem. Honesto, respeitei os demais. — Em prantos prosseguia em seu relato.
— Fui justo e nunca me deixei levar pelo dinheiro. Ajudei aos demais, sempre que possível. Não era esmola. Procurava estar presente. Não esquecia dos demais. Muito menos criei pedintes. Conduzia ao trabalho, bastando encontrar a oportunidade, ainda que isso demorasse.
Com as mãos cobrindo o rosto, assim permanecia.
— Pedro Henrique, procure acalmar-se. Veja que ninguém aqui está lhe acusando ou fazendo cobranças. Estamos apenas conversando. — De fato, não era preciso. É a própria consciência que faz as cobranças e acusações. De forma silenciosa, velada, porém contínua. Parecendo interminável. Um verdadeiro castigo.
Então, prosseguiu com a conversa.
— O que acha de colocarmos as coisas em ordem? Antes de mais nada, você tem clareza com relação às ações que desempenhou e por que razão fazia tais coisas?
— Claro que sim. Desejava fazer com que a justiça prevalecesse sobre aqueles infelizes que se achavam mais capazes, mais inteligentes que os demais. Todos não passavam de vigaristas, gente da pior espécie. — Dito isto, passou a expor alguns episódios, dos quais havia participado, aplicando sua própria lei.
— Me indicavam essa gente mesquinha e eu os perseguia sem dó. Foi assim que conheci aquele gerente de supermercados. Manipulando os preços de certos produtos, nos dias de maior movimento, de modo a criar excedentes e poder subtraí-los para si em outro momento. — Henrique expressava grande satisfação em seu relato.
— Passei a persegui-lo, a interferir em suas decisões. A criar pequenos conflitos. Um aqui, outro logo ali, porém consistentes, sempre mais um pouco. Até desacreditá-lo. Finalmente, passou a cometer erros. Começou a deixar rastros. Até ser pego e posto para fora. Precisava ver a cara de idiota, quando se viu na rua.
— O que mais?
— O outro, inocentemente, aumentava a taxa de administração do consórcio de veículos. É uma coisa em que as pessoas não prestam muita atenção. Prestava contas dos valores esperados pela matriz, quando então, embolsava a diferença que ele mesmo havia criado. — Parou a exposição por um instante.
— Desmascará-lo foi muito fácil. Bastou fazer com que prestasse contas do total recebido. Fossem pagamentos digitais, fossem em dinheiro ou mesmo cheques. Aparecia logo. — Ficou a olhar para seu interlocutor com os olhos semicerrados.
— O que aconteceu que chamou sua atenção?
— A matriz não se importou, nem tomou uma providência. Passei a ter dois trabalhos. Teria de perseguir os dois. Só serviu para descobrir mais oportunistas!
— E então?
— Então descobri que a maldade dessa gente é feita de pequenas coisas. Cultivam tais coisas. Como quem prepara suas mentes para delitos maiores. Se corrompem de propósito, acham que está tudo muito certo, empurrando para o outro. Descobri pesadamente que estão em todos os lugares. Um prejudicando o outro, acreditando não fazer nada de mais.
— E depois?
— Quis desaparecer, mas não conseguia. Apanhei muito, aqueles que um dia me ensinaram a perseguir, agora me batiam. Mas já não me importava mais. Por alguma razão, lembrei de Deus. Talvez por uma fraca lembrança de minha mãe. Talvez isso. — O homem fez silêncio.
— Entendi Pedro Henrique. Agora vamos fazer uma breve regressão de memória. É importante para poder se localizar melhor em sua própria história.
Henrique concordou, em questão de segundos, estava em uma embarcação de cabotagem, conduzindo escravos de Salvador, para a sede do império, na cidade do Rio de Janeiro. Não mais que vinte peças.
Em dado momento, um dos escravos logrou se desvencilhar da corrente e pretendia se atirar no mar, no intuito de chegar até a praia, em trecho não muito distante. No que foi impedido por um dos guardas e depois capturado.
O homem responsável pela embarcação, manda amarrar um de seus pés à ponta de uma corda.
— Então, você queria nadar, não é mesmo? Vamos cuidar disso.
Empurrou o negro amarrado ao mar e o puxou assim por uns dez minutos. Depois, mandou cortar a corda. O homem, em grande agonia, terminou por se afogar.
— Se alguém perguntar, e vão perguntar. Pois, é preciso prestar contas. O negro morreu tentando fugir e se afogou.
A regressão de memória termina.
— Pois bem, Henrique, já pôde se localizar na passagem que acabou de relembrar?
Transtornado com a lembrança, Pedro Henrique sabia que não havia o que se esconder.
— Sim, é isso mesmo, o homem dando as ordens, sou eu.
— Consegue lembrar quem o fazia perseguir os demais? De quem você apanhava, caso não o fizesse?
— O escravo, o homem que afoguei.
— Exatamente Pedro Henrique. É por isso que não é possível combater a maldade com outra maldade. Já os pequenos delitos, que acabam preparando o terreno para delitos maiores, isto é apenas uma predisposição pela falta de moral dos homens. Um dia terão de aprender a se respeitar. Enquanto isso não acontecer, o amor ao próximo, será tal e qual palavras ao vento, esperando a compreensão dos homens.
— Tem razão, é isso mesmo. Pedro estava desolado, contudo, consciente de toda a situação.
— Claro que você precisa de orientação, esclarecimento e repouso. Mas, o que acha que seria coerente de se fazer para iniciar a reparação do que possa ter acontecido Henrique, tão logo você tenha condições? Sabe o escravo? O nome dele é Tadeu.
Pedro Henrique compreendia, sem nenhuma sombra de dúvida, o questionamento de seu interlocutor.
— É isso mesmo, é preciso resgatar o Tadeu. Possuo uma dívida muito grande para com ele.
— Nós vamos te ajudar Pedro Henrique. No tempo devido, iremos ao encontro do Tadeu.
O imbróglio dava mostras de ser conduzido para o seu desfecho. É claro que ainda faltava resgatar o antigo escravo. Na realidade, um oficial de prisão, que executava prisioneiros na Bastilha, com muita crueldade. Isso, antes dos anos da revolução que derrubou a monarquia na França.
De forma diligente, Henrique passou a atuar nos esforços para a recuperação de Tadeu. Contudo, retornou à vida material, pois faltava corrigir o erro do passado.
Assim chegou-se ao dia do acidente, envolvendo Pedro Henrique. Um importante resgate que precisava ser feito.
A regata.
Os preparativos para a regata prosseguiam com tranquilidade. O sábado animado e ensolarado, de poucas nuvens, prometia um bom treino. Barco no mar, os ocupantes do Classe 470 se dedicavam a obter cada vez mais velocidade, fruto da presteza no trabalho de velas e na distribuição do peso do corpo.
— Henrique, o que você faz solto aí, cadê seu colete? Se prende logo, já devia ter feito isso.
— Se acalma Raul, fica frio. Se eu cair, é só você me salvar.
— Seu palhaço. Eu devia ter arranjado outro parceiro. Grande amigo você é. Quer mesmo participar de uma regata de verdade, assim, desse jeito?
— Já falei, fica frio, cara. Coloco já.
Tempos depois, por puro descuido, Henrique desequilibrou-se, projetando-se no mar, onde se viu preso pelo pé direito. Sem o colete salva-vidas, a cabeça ficava abaixo d’água.
Não bastasse o mergulho sinistro, foi surpreendido por uma câimbra intensa na mesma perna. O que dificultava movimentá-la e tentar se soltar.
Com a velocidade, começou a beber muita água. Levou alguns instantes, antes que Raul pudesse notar o acidente com o amigo.
De outros barcos próximos, começaram a gritar e a acenar para Raul, que prestava atenção na curva que teriam de fazer logo adiante. Ao virar-se, não viu mais o amigo.
Deteve a manobra para ver o que se passava. Se apressou em puxar o amigo de volta para o barco. Alguém saltou para o pequeno 470 e procurava ajudar.
Por mais que tentassem reanimá-lo, Henrique já havia deixado o seu corpo físico. Se completava o resgate e o início da incompreensão do incauto velejador.
A Lei de Causa e Efeito. Sempre justa, sempre divina, sempre universal. Uma correção necessária, para que o amor de Deus possa prevalecer por entre os homens.