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histórias, crônicas e contos

Quando as canções estavam nas mãos

                                                                                 

Por: Antonio Mata

Minha mãe me acordava com tapinhas nas costas, chamando para a escola. Vestíamos camisa branca com gola, em polyester, e calças azul-marinho, em tergal. Naqueles idos era o uniforme padrão. Jeans e camisetas de algodão nas escolas públicas, nem pensar.

A rotina de caminhar uns 20 minutos até a escola, fazia parte. Mas, o grande interesse, a maior motivação era rever alguns colegas, que como eu, gostavam de fuçar lojas de discos.

A sanha toda consistia em ficar à par do que estava tocando nas rádios da cidade, e saber dos demais o que teriam obtido nos últimos dias. Para entrar na loja, remexer tudo, e depois sair sem comprar nada, só deu certo da primeira vez, dava muito na pinta de que estávamos duros.

Tive que acionar meu irmão para juntos arranjarmos os cruzeiros necessários para a compra de compactos simples, o disco mais barato que havia, mas que trazia as faixas principais dos álbuns.

Nunca conseguimos mais de dez cruzeiros, e os compactos custavam de quinze a vinte. Precisava de mais pessoas. Ao final de quase um ano, foi possível adquirir cinco compactos. Tínhamos quatro compactos simples e um único duplo, em um total de doze músicas.

Com alguns contatos na escola, e ainda na vizinhança, onde morávamos, através de trocas, este total podia ser multiplicado por dois, às vezes até quase três. Mais de trinta músicas, aquilo era muita coisa.

Foi a mãe da Luana que levou a história para outro patamar. Passou a comprar para ela, vez por outra, os chamados Long Plays, que comportavam em média doze gravações. O nosso estoque de um ano, estava em um único disco. Mas não podia tirar de casa, era de uma ciumeira grande. Mas concordava em ceder nas festas.

Por falar em festa, este era aquele nome mágico, que possuía a capacidade de fazer com que os discos se encontrassem em um lugar só. Era quando aqueles envolvidos nas aquisições, e era aí que eu entrava, podiam manusear à vontade todos os discos ali no lugar, até mesmo os LPs da Luana.

Dá para imaginar? Mais de uma centena de músicas bem na sua frente, e você podendo escolher, para colocar naqueles móveis enormes, com toca-discos  combinado com rádio, às vezes com tv acoplada. Algumas famílias tinham um daqueles mastodontes. Lá em casa, era em forma de maleta. Isto não importava, o fundamental era estar ali, naquele momento, fazendo exatamente o que eu estava fazendo.

Em certo dia, estava na rua, tinha ido fazer algo para minha mãe, quando escutei aquela voz conhecida.

— Augustooô, vem aqui rapidão! Era André quem chamava. Naquela manhã, tive a mais fantástica notícia de 1972.

— E aí, o que foi?

— Cara, você não vai acreditar!

— Conta de uma vez, senão vou embora.

Não gostava que fizessem suspense comigo, ficava angustiado demais com isso.

— Sabe qual é a maior? O pai do Renato acabou de comprar um gravador, e ele disse que permite emprestá-lo. Com um monte de recomendações, mas empresta. Não é demais?

Renato me olhava com os olhos bem abertos e brilhando que nem um gato. O sorriso amarelo não o deixava mentir. Apareceu um gravador K-7. Finalmente, depois de muita espera, alguém conhecido tinha um National portátil, em vermelho bordeaux, caído do céu.

Tarda, mas não falha, o fim da opressão havia chegado. A indústria fonográfica, a partir dali, estaria por um fio, e em breve iria ruir. Pelo menos na nossa rua.

A era das fitas cassete C-60 havia chegado. E com ela a possibilidade de se colocar perto de vinte músicas em uma única fita. Foi o início das fitas fazendo o retrocesso com o carretel metido em uma caneta, enquanto a outra ficava tocando.

Qualquer canto de quarto, de sala, de varanda ou área de serviço, era transformado em estúdio de gravação. Tudo era direto do rádio com o microfone ligado bem na frente. Desde que houvesse silêncio, é claro. Cachorros, galos, papagaios, vizinho brigando e mães desavisadas, eram capazes de acabar com tudo. Desastre só superado, se a rádio tocasse de novo.

O primeiro de nós  a ter seu próprio gravador foi Otoniel, que ganhou um certo Transicorder, do qual nunca se havia escutado falar. O importante é que funcionava, pelo menos era assim que a gente pensava.

Em uma ocasião, Otoniel apareceu de macacão jeans, tamancos e cabelos compridos, trazendo seu gravador dentro de uma bolsa de couro à tira colo, e algumas fitas gravadas por ele mesmo, em vigílias noturnas, para evitar maiores ruídos. Todo empolgado dizia sem parar, “Ummagumma, Ummagumma”!

Colocou no aparelho a cópia que fizera recentemente de um álbum do Pink Floyd. Apertou em play e, nada aconteceu. Tirou, deu umas cutucadas e colocou a fita novamente. Tornou a ligar, e nada do Pink Floyd aparecer. Finalmente desistiu, e arrasado foi embora descobrir o que havia acontecido.

O episódio passou, e acabou sendo esquecido. Lá pelo final do ano, finalmente alguém trouxe o “Ummagumma” gravado e audível. Bem, imaginava que o disco tivesse lá a sua plateia, mas com certeza, eu não estava nela.

Começava o ano de 1973, e com ele duas visões de um paraíso  criado para mim mesmo. O primeiro se chamava dona Isabel. Era isso mesmo, todas as professoras, por mais jovens que fossem, eram chamadas de dona. Era a coordenadora, e era um mulherão. Eu me sentava bem na frente e deixava o pé na porta só para vê-la passar. Na ida, cruzava todo o corredor, e depois voltava, tomando a escadaria para o andar térreo. Pronto, era só isso. Não podia fazer quase nada mesmo.

A outra visão se deu a partir da letra de uma música que havia copiado em uma aula, “One day in your life”. Achei legal e coloquei dentro da carteira. O papel ficou lá todo amassado por mais de um mês.

Foi quando a segunda visão apareceu de repente no pátio da escola. Estava perguntando das amigas se alguém tinha uma determinada letra de música. Como ninguém possuísse a letra, assumiu um certo ar de decepção.

— Você gosta do Jackson Five? Perguntei.

— Gosto sim, e tenho alguns discos. Só não encontro ninguém que tenha conseguido a letra de uma canção.

Meti a mão no bolso, e puxei a carteira. Retirei o papel amassado e lhe mostrei.

— Por acaso é esta?

Era um tempo de sentimentos tão espontâneos quanto imediatos, e comigo não seria diferente.

Aos quinze anos queria me casar com a Rosana. Aos dezesseis desisti. Com dezessete não a vi mais, aos dezoito fiquei sabendo que engravidara de um sujeito, de quem nunca tinha escutado falar. Nunca mais ouvi seu nome, nem o que fizera da vida. Já havíamos concluído o segundo grau desde o ano anterior, e o tempo de escola havia ficado para trás.

Nem eu, nem Eduardo meu irmão, e nem ninguém do nosso grupo ficou particularmente envolvido com a música. Com o fim do tempo de escola, cada um foi cuidar da vida e aos poucos fomos perdendo contato.

Já aos vinte e cinco anos, passava pela rua, quando observei  alguém que estava sentada em um banco de praça. Prestava atenção em um guri meio magrelo, meio franzino, que brincava ali perto. Era Rosana.

Eu e aquele guri franzino nos tornamos inseparáveis, e acabei casado com ela, com apenas dez anos de atraso.

Quando tive minha primeira crise renal, foi aquele guri quem me levou para o hospital, apoiado em seu ombro. Pouco depois, o guri estava na turma de formandos da Escola de Especialistas. Eu e Rosana estávamos lá para entregar suas divisas.

O Hercules C-130 retornava para o Rio, quando colidiu com aquele morro no meio da floresta. O Segundo Sargento Eliseu estava nele. Era o mecânico de voo. Eliseu veio rápido e repentino. Rápido e repentino se foi. Eu, Rosana, Estela e Paula Fernanda prosseguimos.

Ainda vi Eliseu umas três vezes por casa, forte como ficou depois de adulto. Eu o via, e sabia que ele podia me ver. Da última vez, me olhou bem nos olhos, deu um sorriso que guardo até hoje, saiu e nunca mais voltou. Ainda vou tornar a ver o meu guri, gostaria sim.

Enfim, já não se usa mais tocar as canções com as mãos. Sentir sua mídia de gravação, ler as informações todas contidas nela, todas aquelas letrinhas miúdas, como ao tempo dos discos. Tudo isso fazia parte.

Meu neto, filho da Estela, com seu smartphone, tem mais músicas do que poderá ouvir em toda a sua vida. Também, não deixa de ser verdade que muita coisa entendida como qualidade se perdeu. Ele não se dá conta, mas está ouvindo (e vendo) muita porcaria sob o rótulo de música. Ante a dificuldade para se obtê-las, os garotos do meu tempo, eram muito mais seletivos.

Fixar o vinil no prato, acionar o braço mecânico, ouvir aqueles estalidos, e então se deleitar com canções que se fizeram inesquecíveis.

Ficávamos sentados no chão, junto da vitrola, em atitudes que nunca mais se repetiriam, não daquela forma, não com aquele valor.

Tudo bem, as coisas mudam, já entendi. Mas, as ansiedades; as alegrias e incertezas. A necessidade de ter de manusear aquelas canções, uma de cada vez; os encontros com os amigos e as interações que fazíamos, não sei se hoje em dia significam a mesma coisa.

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