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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Quando chovia

                                                                              

                                                                                                                                                   Foto: Wikimedia Commons

Por: Antonio Mata

Como já estivesse tudo pronto e anotado, só faltava colocar a mercadoria dentro do bagageiro da motocicleta. Comprava componentes e artigos eletrônicos para revender.

Já havia formado sua clientela; só precisava ter presteza no atendimento, pois a entrega rápida no domicílio fazia parte do marketing daquele pequeno negócio.

Pensava em Rosana, que ficara em casa com o filho de três anos. Era gentil com a esposa, e de muita boa-fé, se comprometera a manter a família de forma condigna. Uma série de fatores outros, traumas de um país em crise; comprometeram tremendamente seus melhores sonhos.

Desceu a escadaria às pressas carregando as sacolas com os pacotes para serem acomodados no bagageiro, já pensando no tempo que levaria para fazer as primeiras entregas daquele dia. Bastaria mais uns poucos pedidos adicionais e aquele dia estaria ganho. Nada que não pudesse resolver até o início daquela tarde.

Na pressa de arrumar tudo e descer, descuidou-se do tempo. Bastou pôr a cara na rua e deparou com o céu absolutamente cinzento. Grossas nuvens rolavam misturadas com o paredão de chuva intensa, em uma cena, até de uma certa beleza. Alguém poderia dizer, quase cinematográfica.

As primeiras gotas trazidas pelo vento se faziam sentir. Esbravejou; xingou a tempestade que se aproximava; maldizendo a cena bonita, chegada em uma hora totalmente errada, supunha.

— Mas que porcaria! Essa desgraça vai estragar tudo! Eu tinha que sair logo, entregar tudo, pegar o dinheiro e os créditos. Tenho que arranjar dinheiro rápido. Já ia adiantar a tarde; vai tumultuar tudo! Que azar dos infernos!

Desencadeou uma saraivada de impropérios, sem se dar conta de que, quanto mais se exasperava, pior se tornava. Lição simples para se contar, exigente para se fazer; brando e pacífico precisa ser na hora do conflito, da exasperação. Este é o desafio.

Guardou às pressas os pacotes no bagageiro, bateu com o capacete no banco da moto com força, e foi se ajeitar na cobertura na saída do prédio. Perturbado, mas também resignado a aguardar até que pudesse iniciar o trajeto que havia delineado e fazer as entregas planejadas.

Lembrou da mulher que o alertou para não deixar de passar na drogaria e trazer xarope e vitamina C infantil, para o pequeno Benjamim que amanheceu resfriado naquele dia. Logo ali, bem na sua frente, a tormenta prosseguia com um aguaceiro de paralisar qualquer trânsito.

Falava consigo mesmo, entre lamentos e resmungos:

— Esse troço passa logo, ainda bem. É só o tempo de sair e entregar tudo. De repente não foi tão ruim; e a gente desenrola mais um dia.

Uma vizinha do prédio se aproxima e comenta:

— Sorte a sua de ainda estar perto de casa meu amigo. Quando chove pesado assim, para tudo. As ruas aqui, como estão na parte mais alta, não enchem tanto, mas para chegar na estrada, alaga tudo. Tem dia que não passa nem ônibus. Comentava a vizinha, e completou:

— Já teve dia que não consegui nem chegar no trabalho. Nem o ônibus entrava, nem eu conseguia sair. E depois para explicar para o patrão o que aconteceu?

Ouvia tudo com ar de pouco caso, pois não estava lá muito interessado no assunto; muito menos estava preocupado com ônibus. De motocicleta, podia contornar pelas extremidades, cortar caminho pelas vielas e sair dali mais fácil. Não iria ficar preso no lugar por conta de uma chuvada como aquela. Já tinha feito isso antes, era só fazer de novo.

Passou de uma hora, no relógio, com a enxurrada alagando tudo. Ainda não dava para sair. Por ansioso que estivesse, sabia que tinha que esperar uma condição de melhoria. Era apressado, mas não era burro, a ponto de querer dirigir debaixo daquele aguaceiro. Não iria demorar muito.

Com efeito, notou que a chuva aliviava, já o suficiente para poder tomar o caminho e iniciar suas entregas. Subiu rapidamente na moto e deixou o local ainda sob chuva. Que diminuía, já era quase nada, pensava.

Fez logo o trajeto de acesso a uma viela não muito distante. Era uma descida com o asfalto todo quebrado; a corredeira que se formou bem ao lado ainda era intensa. Prosseguia na descida prestando atenção. Algum pedestre poderia aparecer de repente, vindo dos becos próximos, e o lugar era estreito demais favorecendo um acidente.

Prosseguiu por mais algumas vielas, a maioria nas mesmas condições da primeira; mais adiante finalmente deixou o trecho que considerava mais perigoso e tomou uma rua que o conduziria direto ao acesso da estrada. Era só isso e estaria feito.

Era só prosseguir rápido e fazer o itinerário das entregas. Olhava no relógio, imaginando recuperar pelo menos uma parte do tempo perdido.

Avançou na direção do acesso à estrada. Já estava dando certo. Havia evitado tomar o rumo da via principal do lugar. Já sabia que lá o alagamento seria grande.

Olhou para trás a ponto de avistar a tempestade se afastando lentamente, e assumiu um ar de desdém.

— Vou já ficar preso por causa dessa bosta; nem pensar. Resmungava incomodado, enquanto retornava a prestar atenção na pista molhada, pois ainda chovia levemente.

Foi rápido demais. Não fazia a menor ideia de onde ele apareceu. Travou as rodas acreditando, e não acreditando que serviria para alguma coisa; estava muito próximo; foi rápido demais.

Estava ainda guiando à pouca velocidade, mas o asfalto molhado e a freada repentina fizeram a motocicleta derrapar adiante e se chocar com aquele maldito cachorro. A motocicleta tombou para a direita; sentiu o joelho e o ombro baterem no asfalto. Poderia até mesmo dizer que nem doeu. Tudo era efeito da liberação de adrenalina.

A moto, com o impacto; deu uma volta completa. O fecho do bagageiro se rompeu e a mercadoria, toda separada para a entrega se espalhou no asfalto molhado.

Com a pancada o cachorro deu um grito agudo e foi projetado com força, cinco ou seis metros adiante, com o corpo se detendo junto à guia da sarjeta.

O motoqueiro caído no chão, com a cabeça tombada para o seu lado direito, podia ver claramente aquele cachorro miserável atirado no asfalto, logo à sua frente, como que a encará-lo em silêncio. Ainda piscava os olhos, com a respiração tão ofegante quanto a sua própria.

Algumas pessoas apareceram e avisavam:

— Não se mexe, não se move; fica no chão. Já vão chamar uma ambulância; fica no chão.

Nem que ele quisesse. Era uma sensação de impotência, raiva e medo, diante do que aquele cachorro nojento havia provocado. Exatamente com ele, lamentava.

Sentia as últimas gotas da chuva tocando em seu pescoço e na viseira. Olhou para o cão na sua frente, que parecia já não respirar mais. Um filete de sangue escorria de sua boca aberta; a língua estendida para fora. O bicho devia estar morrendo; estava ficando inerte.

Deslocou a cabeça um pouco para a esquerda e para o alto, para poder avistar o céu. Estava de um azul limpo, lindo. As últimas nuvens se afastavam. Já podia ver a umidade se evaporando, por sobre o asfalto que se aquecia ao sol.

Do outro lado, mais à esquerda, uma série de veículos passavam lentamente, com seus condutores morbidamente preocupados em observar o resultado parcial da desgraça alheia. Naquela manhã, tão concentrados na sua morbidez, que nem perceberam os pacotes de mercadoria a ser entregue, espalhados pela pista; sendo destroçados sob suas rodas.

Sem poder se virar, principiou a chorar. Talvez pela mercadoria perdida; ou ainda mesmo pelo cão, que na sua ira, se tornara maldito. Quem sabe, era mesmo de autopiedade. Também pelo somatório disso tudo, talvez. Nem ele sabia.

Do outro lado da vida, sem que os presentes sequer desconfiassem do que pudesse estar acontecendo; os trabalhadores do Cristo já haviam recolhido o cachorro do lugar. O simpático animal levantou-se, se sacudiu e saiu caminhando, acompanhado de um tratador especializado no resgate espiritual de animais acidentados. Não se abandona um filho da Criação.

Enquanto isso, dois outros trabalhadores que por vez, recolhiam e atendiam seres humanos, já haviam intuído um dos transeuntes a chamar por socorro. Aguardavam o atendimento do motoqueiro, para que então pudessem acompanhá-lo até o hospital. Ele também jamais seria esquecido.

Os homens são precipitados e tomam decisões impensadas. Daquilo que decidem, busca-se o melhor aproveitamento possível. No caso do motoqueiro, aborrecido, tenso e apressado sem a menor necessidade, ainda assim; ele freou sua motocicleta. Travou as rodas e assumiu o risco da queda.

Cada ato, cada gesto em defesa do outro; tudo na lógica Divina; tem o seu valor. Nada passa despercebido; teve o mérito de procurar evitar a colisão com o animal. Foi o seu último pensamento antes da queda.

Corria muito, se precipitava muito, e sua morte prematura, com o consequente desencarne; estava se tornando mera questão de tempo. Ele não se dava conta, mas cavou aquele acidente. Foi necessário detê-lo, em defesa dele mesmo.

No seu desespero por conta das dificuldades financeiras que enfrentava, se expunha demais. Ele também não sabia, mas o pequeno Benjamin era a benção Divina em seu lar. Vai precisar muito da presença paterna, principalmente na adolescência. É um antigo amigo que vem para ajudá-lo.

O tempo vai passar e Benjamin, inteligente e dedicado, poderá retribuir, agradecido, o apoio prestado por seus pais. Deus não é um destruidor de homens. Organiza as experiências de cada um para que obtenham o melhor rendimento possível.

O que chamamos de dor, de flagelo, de perda, são na realidade os mecanismos celestiais em ação, promovendo as mudanças necessárias para que a existência terrena não se perca.      

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