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histórias, crônicas e contos

Quando o mar se revolta

                                                                            

                                                                                                                                    Foto: 1834896 por Pixabay

Por: Antonio Mata

Dias e noites de intenso calor se sucediam quando Franklin, buscando um alento, teve aquela ideia luminosa.

— Olga reúne todo mundo e avisa que vamos para a praia.

Olga, com as mãos na cintura prestava atenção nas palavras de Franklin.

— Fazer o quê na praia? São quase dez da noite, estou mais interessada em dormir. Com tanto calor, bem que eu gostaria de ir à praia mesmo, mas para dormir lá.

— Pois, é exatamente isso que você está dizendo. Chama o Carlos Henrique, a Clarice e a Eduarda; eles vão adorar.

E assim, com edredons, colchas e lençóis partiram todos para a adoção daquela ideia um tanto quanto incomum, mas não de toda tresloucada ou esquisita.

Caminhando para 23 horas, os termômetros indicavam 34 graus Celsius. A temperatura mais comum nas madrugadas, estava se mantendo próxima dos 30 graus. Era a mais baixa do dia.

O que Franklin viu logo de chegada, mais lembrava um acampamento de beduínos desprovidos de camelos no meio do deserto. Tendas, barracas, improvisações com lençóis e colchas; além de um monte de gente simplesmente esticadas no areal sob o céu que muito pouco se importava. O céu estava estrelado, mas continuava quente.

Alguém mais ligado, achou por bem chamar a polícia, e viaturas estavam estacionadas no calçadão, enquanto patrulhas a pé percorriam o areal, só por garantia. Finalmente acharam um lugar, já próximo do mar, para ajeitar as coisas e tratar de pregar os olhos no meio daquele hotel ao ar livre.

— Franklin, você não acha que estamos perto demais do mar? Só acho legal o barulho das ondas.

— Bobagem Olga, já é tarde. Se acontecer de subir, aqui está cheio de gente para um salvar ao outro.

Olga duvidou daquela resposta de quem não sabe o que está dizendo, e só por garantia; resolveu se deitar junto da filha, três metros mais acima e mais afastadas. Franklin, já que era tão esclarecido, iria bancar o dispositivo de alerta.

Com o barulho das ondas a embalar aquelas noites, em dias de calor intenso que superavam todo e qualquer registro, não foi à toa que tanta gente resolveu dormir na praia.

Durante o dia a radiação solar era tão intensa que o banho de sol foi reduzido, do amanhecer até às sete horas. A permanência no sol, de trabalhadores sem proteção, e a partir das dez horas até o alvorecer; foi proibida em todas as cidades do país. Para estes, o corpo totalmente coberto tornou-se obrigatório.

A desidratação passou a ser preocupação de todos os dias. A Terra estava se transformando em uma grande fornalha. Toda sorte de desmandos, queimadas, desmatamentos pelo globo afora; a busca insana por terra cobrava agora o seu ônus; e repartia a quota de sofrimentos por todos. Principalmente idosos, que morriam de calor em todos os cantos do mundo.

Na praia deu a lógica de Olga. A preamar coincidiu com o amanhecer em época de lua cheia. A primeira onda alcançou Franklin e os meninos com água até a altura da cintura, já que estavam deitados. Os gritos, seus e dos demais que se encontravam igualmente amontoados na linha das ondas, avisaram o resto de que estava na hora de acordar.

Olga, com um inegável sorriso irônico, prestava atenção naquela cena de comédia pastelão. Nem se deu conta de que ninguém iria se apresentar depois; para cuidar daquele monte de roupas de cama molhadas. Também sujas de uma coisa escura.

Bastou desfazer o susto, e já todos de pé, prestaram atenção em outro aspecto, no mínimo estranho. Mais honesto seria dizer; sinistro.

Olhavam todos para o mar sem entender.

As águas estavam tomadas de uma quantidade grande de coisas; e não eram algas nem peixes. Os lençóis ficaram cheios de um material escuro e sujo dissolvido na água do mar. Na medida que o dia clareava foi ficando cada vez mais evidente.

Era lixo, parecia que toda a sujeira e toda sorte de entulhos atirados nos oceanos indiscriminadamente, resolveram voltar, e tudo ao mesmo tempo. O mar estava com um aspecto horroroso, a água escura tal e qual chá. Um amontoado de coisas se misturavam naquelas águas escuras quebrando nas ondas, bem ali na frente. O comentário foi de Carlos Henrique.

— Pai, eu acho que o emissário submarino entupiu. Quem é que a gente chama nestes casos?

— Sei lá meu filho. Está tudo tão louco que já não sei mais o que pensar. Acho que dessa vez, Deus se aborreceu com a gente.

— E como é que se faz para aplacar sua ira? É assim que os antigos faziam.

Foi Clarice quem trouxe a realidade de volta.

— Os antigos não faziam as idiotices que nós mesmos fizemos, ou faziam em pequena escala. Pelo visto, a causa e o efeito já estão todos aqui. O mar achou por bem devolver tudo o que lhe foi oferecido.

A oferta civilizada, do comentário de Clarice, logo deixou evidente que tinha de tudo; um monte. Toda sorte de plásticos, emaranhados de cordões sintéticos, objetos diversos, alguns inteiros, a maioria destruída em milhares de fragmentos.

Aquela maçaroca de materiais decompostos e semidecompostos, misturados com a maresia provocava um cheiro desagradável de coisa podre, azeda muito pesado e intenso. Logo descobririam que com o sol, o cheiro aumentava.

Foi só algumas pessoas fazerem o gesto, e logo a multidão, tal e qual movidos por hipnose, apontavam celulares na direção do mar e das ondas. Todos queriam registrar, e rápido, aquela latrina sem mais tamanho.

Para quê? Muito simples, para postar.

Ato contínuo, Olga se aproximou de Franklin de celular na mão.

— Olha só isso Franklin.

O que as imagens postadas deixavam muito claro, era a dimensão do fenômeno. Praias do mundo todo, famosas pela beleza, estavam transformadas em verdadeiros lixões, ante a grande quantidade de detritos presentes na água.

Todos se alarmavam, reclamavam do mau cheiro, do cenário de esgoto a céu aberto. Outra coisa que não passou despercebida.

Agora, além do calor, e da falta de água potável, teriam que suportar o mau cheiro nas cidades litorâneas. Fugir para dormir na praia foi posto em xeque. Viver na Terra estava sendo posto em xeque. À crise ambiental se somava a crise moral. Violência, droga, guerras, doença, corrupção. Valores morais que sustentaram a civilização por séculos, haviam sido atirados literalmente na lama.

Por entre o caos que se instalava gradativamente, grupos de voluntários de inspiração cristã, se reuniam para orar e para oferecer auxílio aos mais tomados pela dor daqueles dias de perturbação. Fosse o alimento aos mais desvalidos, fosse a luz do esclarecimento, para quem quisesse ver e ouvir.

Compreendiam que todos haviam sido avisados quanto ao tempo das atribulações. Apenas cumpriam com o seu dever de consciência e seguiam adiante, confiantes nas palavras de seu Mestre, o príncipe da Paz.

Não viam outro caminho que não passasse pelo desejo honesto de servir. Ansiavam pelo alvorecer de uma Nova Terra, um mundo com Deus; ante a extinção de uma civilização que já não tinha mais  o porquê de sua existência.

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