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Por: Antonio Mata
Diria um certo poeta “o mar da história é agitado...”. O mundo havia se expandido o suficiente para que o cheiro de pólvora se fizesse dos dois lados do Equador, e por sobre o mar oceano.
Ganância e ambição se uniram, e apoiadas em cabeças coroadas da Europa, incentivaram a devastação e exploração de gente de pele escura, que não fazia a mais remota ideia do que pudesse estar acontecendo, e porque estavam sendo escravizados, adoecendo, lutando e morrendo.
Além daquela própria gente branca, ávida pelas riquezas do Novo Mundo. Tudo do que precisavam era do consentimento, o aceite da selvageria. A autorização para morrer com glória.
Muitos dos infelizes que partiram para estes primeiros confrontos, morreram anonimamente e miseravelmente. Meros peões de um mesmo jogo, manejados de muito, muito longe.
Há tempos que aguardavam qualquer notícia que confirmasse as apreensões com que viviam no acampamento e a boataria que existia na sede. O alferes fuzileiro naval, Leôncio da Ribeira e seu destacamento, de todo modo, teriam que esperar.
Oficial da Marinha, fizera sua formação nos núcleos de adestramento de combate nas naus das Índias Portuguesas. Origem dos fuzileiros navais de El Rey. No Pará, era um fuzileiro em um lugar incomum, em um momento incomum.
Teve de treinar seus próprios fuzileiros, já que eram oriundos do exército, e sem experiência em combate naval. Sequer havia fortes próximos a foz do rio grande que pudessem apoiar uma ação defensiva. Na realidade não havia forte em lugar algum.
Era talvez, um dos poucos fuzileiros da região, se não fosse o único. Já que quase não havia ações militares naquelas terras. Às vezes, chegava a acreditar que havia sido posto naquele lugar, para ser esquecido de vez. Tinha lá sua razão.
O fuzileiro havia arranjado confusão cortejando a mulher de um oficial de alta patente da Marinha Real, em Goa, na organização colonial portuguesa, sendo em seguida transferido para o meio do nada na América.
Acreditava poder permanecer na recém-criada Salvador, junto a guarnição na capital colonial. Não foi bem o que decidiu Duarte da Costa, o Governador-Geral. Em carta selada, o comando da Marinha Real, sugeria que o alferes fosse enviado para o último posto, a noroeste da colônia.
Como o oficial tornou a criar confusão com as autoridades locais, após uma bebedeira, o Governador-Geral atendeu a solicitação. A noroeste ficava o Estado do Pará. Como não houvesse guarnição militar, mandou-o criar uma onde achasse melhor. Para isto lhe ofereceu um pelotão com 14 soldados brancos e 20 mestiços.
O cenário letárgico que achava de persegui-lo, mudaria mais rápido do que pudesse pensar. Peça do jogo de xadrez colonial, peão na busca de riquezas e poder, logo confrontaria outros peões. Homens como Bartel de Vries e Evert Van der Hof. Nomes que nunca escutaria na vida.
Achismo, começou assim. A informação vaga de um nativo que não sabia oferecer maiores detalhes, a não ser a possível presença de homens brancos, isto era tudo. Era também o que precisava, por impreciso que fosse. O simples fato de existir um ligeiro comentário, exigia atenção. Naquelas distâncias colossais, tudo poderia acontecer sem que ninguém soubesse de coisa alguma.
A galé foi armada e municiada, além de receber uma mistura de mosqueteiros e fuzileiros, de acordo com as armas disponíveis. Antigos e pesados mosquetes de mecha, assim como a constante preocupação de mantê-la acesa, disputavam espaço de tiro com os poucos e modernos fuzis de pederneira.
Quatro falconetes, betume e vasos de barro. Aqueles pequenos, com parede espessa e pouco vasado, só o suficiente para receber pólvora e um pavio bem curto. Além de pólvora suficiente para acionar toda a pirotecnia bélica de 1597. Sete pistolas de pederneira, completavam o arsenal da expedição. A força de propulsão era oferecida por 64 índios-remo. A bordo, 30 soldados equipados, 4 tripulantes-atiradores e um oficial. Trinta e cinco portugueses apoiados por 814 índios, entre arqueiros e remadores.
Havia uma diferença fundamental entre os índios. As canoas transportavam guerreiros livres. Já os da galé, eram índios-remo, escravizados e de outra etnia subordinada aos primeiros.
Os guerreiros desciam o rio armados de arco e de duas dúzias de flechas, ou mais. Portavam ainda, uma borduna ou um machado de pedra, tudo ricamente adornado. Eram peças únicas. Seriam capazes de identificar o dono, só pela arte presente em sua arma.
O machado de pedra era uma peça à parte. Muito lajeado na beira de rio e paredões rochosos que receberam desenhos em curva, linhas retas e círculos, nada mais era do que os próprios guerreiros desgastando manualmente uma peça de granito ou gabro.
Era pacientemente esfregado, dia após dia, até adquirir o formato de uma cunha. Fixado no cabo de madeira de grande dureza, deixava uma lâmina rombuda de uns oito centímetros. O suficiente para cortar, com paciência a madeira, e quebrar com força, cabeças e ossos. Muito original, personalizado e útil.
A presença, fosse pelo número, fosse pela agilidade, de arqueiros indígenas era fundamental nestas missões. Asseguravam que o inimigo seria mantido à distância. Já que podiam sustentar uma cadência de disparo oito vezes maior que a do melhor fuzileiro.
Na realidade, toda a estratégia de ocupação e exploração daquelas selvas e rios que o futuro traria, de forma ainda mais organizada, girava em torno da presença indígena. Ainda que não fosse escravizado, seria obrigado a trabalhar para a coroa.
Os índios envolvidos nestas campanhas constituíam o esteio da logística da tropa naval. Não somente lutavam, mas produziam suas próprias canoas. Transportavam-nas pela floresta, além da carga necessária. Cortavam caminho de um rio a outro por terra, por sinal uma ótima estratégia para se ocultar, despistar e surpreender o adversário.
Também as carregavam para superar obstáculos nos rios, os pedrais. Eram ainda os construtores e caçadores, suprindo a tropa de alimentos e abrigo quando necessário.
Juntou-se a galé, 30 canoas conduzindo 25 índios arqueiros cada. Estava completa a força de combate. Avançariam na direção da foz do grande rio, em três dias rio abaixo. Evitaria o estuário, onde a grande quantidade de ilhas criava canais extensos, ruins de vigiar.
O plano era simples e objetivo. Logo acima do estuário, onde as águas se concentram, a galé, de mastro abaixado, permaneceria oculta em uma curva ou furo do rio, por entre os arbustos, assim como a maior parte das canoas.
Enquanto isso, poucas canoas e homens faziam explorações nas imediações, com um soldado português a bordo. Bastava identificar a posição do invasor e, se possível, o tamanho de sua força, retornando o mais rápido possível. Com tais informações poderiam decidir se haveria combate ou não.
O primeiro terço dos índios ficaria na tocaia, junto à beira do rio. Em princípio do lado esquerdo. A definição do lado onde montar a tocaia dependia das informações sobre o deslocamento do invasor.
Assim, os outros dois terços restantes dos índios ficariam do lado oposto, com a galé no meio, detendo o avanço e fechando a ferradura. De resto, era contar com um grupo de invasores relativamente pequeno no dia do encontro.
Foram mais de duas semanas de modorrenta espera. Ainda pela madrugada, com as canoas de sentinela remando no meio da noite, que a notícia tão esperada chegou.
Na maior embarcação, o que avistaram não foi uma bandeira branca com o brasão do rei de Espanha. Caso fosse, aquelas terras estavam sob o domínio do rei espanhol. Avistaram sim, o brasão do Príncipe de Orange em uma bandeira tricolor, com faixas em laranja, branco e azul. Eram Holandeses, a bandeira utilizada na guerra pela república.
Uma galé com remadores subia o rio com dez canoas de índios arqueiros. A galé, aparentemente era menor que a portuguesa, e possivelmente menos armada. A menor disponibilidades de índios arqueiros era importante.
Estimou-se que a tropa invasora teria menos de 250 homens, incluindo os seus remadores. Portanto, menos da metade da força de defesa. De fato, subiam próximo à margem esquerda, o mesmo lado dos defensores, que aguardavam na jusante do rio. Caso continuassem remando pela noite, chegariam ao ponto onde os esperavam em cerca de duas horas, ao amanhecer. Uma canoa mais avançada pôde identificar com facilidade o lampião aceso, indicativo do movimento dos invasores.
Contava com a velocidade do rio para facilitar a diagonal a ser feita pelas 20 canoas de arqueiros à direita, enquanto a galé se deslocava para a área frontal. Os 150 índios em terra já sabiam o que fazer.
Na proporção de três para um, deveriam eliminar os índios invasores, enquanto combatiam a galé holandesa. Os mosquetes e fuzis abririam fogo contra os remadores, enquanto os quatro falconetes buscariam perfurar seu casco de madeira.
A flotilha holandesa chegou com os primeiros raios de sol. Não perceberam a armadilha. O amanhecer disfarçou o silêncio incomum dos pássaros. Não festejariam o novo dia com a festa de seus trinados tão cedo.
Olhando adiante, com o sol nascendo às suas costas, Bartel de Vries, o comandante, pôde ver a fila de canoas cheias de arqueiros deslizando rapidamente para a sua esquerda, buscando cercá-lo. Em seguida, viu uma galé tomar-lhe a frente, com a bandeira branca com as espadas vermelhas cruzadas e o brasão português.
Deduzir que havia arqueiros na mata à direita foi fácil, como foi fácil concluir que caíra em uma armadilha. A chuva de flechas, de ambos os lados, antecedeu brevemente o barulho das armas de fogo sobre sua galé. O embate imprevisto, encontrou seus homens sonolentos e cansados de remar.
Os arqueiros, índios Baré, pegando os invasores de surpresa, tiveram seu papel facilitado, com a chuva certeira de flechas logo abrindo a fileira de canoas que buscavam reagir timidamente, superados que estavam. O enfraquecimento dos índios arqueiros que davam cobertura à pequena galé holandesa, permitia perigosamente que as canoas dos defensores se aproximassem.
No combate entre índios, não fosse pelos gritos de guerra que ecoavam das canoas reciprocamente, o que mais se ouvia era o assobio curto das flechas cruzando o céu da manhã. Era uma batalha naval certeira, precisa, e como que apoiada por torcidas.
Já do lado europeu da batalha, as mães pariam sem parar, e nos lugares mais estranhos. Ninguém, por mais pervertido que fosse, se atrevia a citar um estábulo. Afinal, morrer e ir para o inferno, eram coisas bem diferentes.
O barulho das armas de fogo, assustavam os índios de ambos os lados. Já a eficiência era algo para se pensar. De todo modo dois dos quatro falconetes portugueses, eram de retrocarga. Isto significa que disparavam duas vezes mais rápido.
Assim, era como se tivessem seis falconetes, e não quatro. Eram arriscados, pois poderiam disparar gases na direção do atirador. Entretanto, com o maior número de disparos, a chance de furarem irremediavelmente o costado do adversário era maior. Já computado aí, a má pontaria, típica daquelas armas, porém superada pela proximidade cada vez maior do adversário.
O tenente Leôncio manobrava sua galé de modo a não abordar logo o inimigo, fustigando-os o máximo possível com sua superioridade em armas de fogo. Se possível, afundá-lo sem ter de fazer uma abordagem, que poderia lhe custar a vida de vários de seus poucos soldados. Substituir índios não era difícil. Substituir soldados, sim.
Outra coisa que não saía de sua cabeça. Não sacrificar sua pequena guarnição de portugueses, a ponto de fragilizar a pouca defesa de região, por si só tão gigantesca. Não estava desejoso dos louros da glória. Apenas queria cumprir com o seu dever.
A refrega prosseguia, desumana e encarniçada como sempre foi. Em dado momento, viu uma das canoas se afastar com três índios e um homem branco nela. Não teve nenhuma dúvida.
— Atirem naquele fugitivo! Ele pode trazer reforços! Gritava de forma esganiçada. — Vários tiros se ouviram, sendo um dos índios alvejado, mas a canoa prosseguiu em fuga.
— Canoas atrás dele, rápido! Não deixem escapar! Ele não pode escapar daqui!
Duas canoas, uma delas com um soldado se deslocaram em perseguição ao fugitivo.
No momento seguinte, Leôncio, seus fuzileiros e os índios, já haviam liquidado a situação e faziam voltas em torno da galé holandesa que afundava lentamente.
O oficial ofereceu a rendição aos invasores, porém sem saber se o entendiam de fato. O que recebeu em seguida, foram os cumprimentos às mães, e uma saraivada de fogo das poucas armas ainda em uso. A resposta foi automática. Com maior poder de fogo, os holandeses foram fuzilados, antes da embarcação ser posta a pique. Aparentemente, terminava assim a batalha.
Intranquilo, Leôncio aguardava notícias da perseguição, tendo enviado mais uma canoa na busca das duas anteriores. Da resposta que pudesse receber, teria a certeza do fim da batalha ou não. Deu ordens para se recolherem ao esconderijo estabelecido antes e que aguardassem novas ordens. Ficou em um ponto elevado, onde podia avistar quem chegasse. Em pouco mais de hora e meia, o que viu o deixou atônito.
Houve uma batalha. Em paralelo, seus índios e soldados desceram o rio no encalço de um fugitivo, portanto estavam todos exaustos. O que via eram três canoas avançando entre braçadas fortes de todos a bordo. Tamanho o esforço para chegarem de volta. Mal sinal.
— Tenente, tenente Leôncio, galés holandesas! São duas galés holandesas e mais índios! Estarão logo aqui!
Então a confirmação, o que havia terminado de fato, foi a primeira fase da batalha.
Ficou paralisado por algum tempo, enquanto pensava. Despacharia uma canoa com um soldado e dois índios para dar ciência da vitória na primeira batalha, e da incerteza quanto ao seu desdobramento. Ordenou que desfizessem o acampamento e que se escondessem na mata. Apenas três portugueses haviam ficado para trás. Um furriel, um soldado e um aventureiro atrás de ouro.
Sabia que era a primeira e a última linha de defesa nas imediações da foz do rio. Qualquer reforço estava a pelo menos quatro dias dali, subindo o rio. Contudo, um eventual reforço, só disporia de mais índios e canoas. A guarnição de fuzileiros já estava consigo. Tinha de pensar em algo, e logo.
Tivera baixas relativamente leves no combate anterior, apoiados pela surpresa. Decidiu-se por deixar o esconderijo e subir o Amazonas-Marañón, o mais rápido possível. Complementou a mensagem encaminhada ao acampamento, orientando que reunissem o maior número de canoas e índios possível.
Estabeleceu um sistema de revezamento entre os índios, para que a galé fosse mantida sempre em movimento. Já sabia que os holandeses também não se detinham, e remavam nas noites de lua. Subiria o grande rio por todo o dia para manter a dianteira.
Enviava, com frequência, batedores para identificar o movimento e a posição dos invasores. Precisava da noite para se ocultar. Enquanto isso, atrairia os invasores rio acima.
Já era final de tarde. Observava as paisagens do lugar. As matas se projetando até junto ao rio. As terras caídas, muitas repletas de plantas e arbustos. A quietude do rio no seu caminho para o mar oceano. As águas barrentas, em certos pontos, repletas de plantas e como que ilhotas. A vida do grande rio seguia seu curso.
A noite caiu sobre o rio. A lua crescente prometia uma luz tênue, mas clara o suficiente para identificar as embarcações cheias de soldados e guerreiros. Mal sinal, poucas saídas, diria um comandante preocupado. Ótimo sinal, diria um invasor decidido a prosseguir, mesmo durante a noite. Os calos do tenente Leôncio, estes pareciam não ter sossego.
Remar contra a correnteza era um exercício desgastante para qualquer um dos oponentes. A vela de uma galé, ainda aproveitava minimamente a presença dos ventos. O peso da carga humana, armamento e víveres, tornava os remos indispensáveis.
Madrugada do dia seguinte. Nas sombras da noite, à meia luz da lua crescente, as sentinelas dos barcos holandeses, receberam ordens de prestar atenção em tudo o que se movesse. Barcos quaisquer, qualquer movimento, ou homens nas margens do rio.
Por isso ficavam permanentemente afastados da margem. Lentamente a flotilha com a bandeira tricolor avançava rio acima, cruzando plantas flutuantes, ilhotas e pedaços de troncos soltos.
Inesperadamente a quietude sonolenta por sobre aqueles homens cansados foi interrompida.
Ouviu-se quatro vezes: Buumm! Bumm! Bumm! Bumm!
O lampejo cor de fogo, totalmente inesperado, a deflagração daquele som estrondoso, e a brusca onda de choque. A flotilha estava sob ataque.
Alferes ardiloso e sagaz aquele. Mandou colocar canoas por debaixo das plantas flutuantes, sempre em duplas. Uma canoa levava dois fuzileiros e dois índios de apoio. A segunda canoa recebeu dois barris de pólvora.
Conduzido ao meio do rio, o estratagema flutuante pôde encarar as galés holandesas de frente e sem medo. Quando se aproximaram o suficiente, a canoa com os barris de pólvora, teve seu pavio curto aceso e a canoa coberta com plantas foi empurrada para um dos lados da galé alvo, enquanto os incursores seguiam camuflados que estavam, na outra canoa, para o lado oposto.
A operação se repetiu com a segunda galé. As explosões nos costados abriram um buraco de quase três metros na primeira embarcação, abaixo da linha d’água, selando seu fim. A galé rapidamente foi a pique, enquanto os holandeses e seus índios tentavam entender o que havia ocorrido. Não houve tempo. Perdidos na noite, entre destroços e muito desespero, toda a tripulação sucumbiu.
A segunda galé foi beneficiada pelo afastamento prematuro da canoa carregada com explosivos. Mesmo assim, com um buraco que a obrigou a deter a marcha, enquanto buscavam retirar a água de dentro da embarcação, sob risco de naufrágio. O mastro de vela foi danificado seriamente. Três canoas de índios foram destruídas, ante o afastamento da galé e aproximação das canoas dos índios. Dezenas de mortos e feridos, na galé danificada e principalmente fora dela.
Foi tudo tão rápido e tão estupendo, que não ocorreu a ninguém verificar as ilhotas e montes de vegetação flutuante que se afastavam, descendo o rio. Os incursores estavam lá, escondidos e deixando o cenário do ataque relâmpago, em segurança.
Os índios amedrontados, ainda não tinham compreendido a natureza do ataque. Ainda não estavam familiarizados com as diversas aplicações militares da pólvora. Aquilo parecia ter explodido dentro d’água. Verdadeira magia de espíritos malignos.
Nem os próprios holandeses entenderam de imediato. Sabiam ter sido atacados. Só não entendiam como se fez a detonação das cargas de explosivos que desciam o rio, junto dos barcos. Como fizeram para identificar os barcos? Como acenderam os pavios bem na hora certa? Só pela manhã as peças se encaixariam.
Páginas de bravura, engenho militar tirando proveito do meio e determinação, foram escritas naquela noite, sob a lua crescente brilhando suavemente. Um dia chamariam equipes operacionais como estas de Comandos Navais.
Terminava assim, a segunda fase da batalha.
Leôncio, acertadamente não estava interessado em festejar a recente e estupenda vitória. Ainda existia risco real. A segunda galé holandesa estava avariada, porém ainda navegava lentamente, até atracar e fazer reparos. A maioria de seus 500 índios arqueiros ainda estavam em condições de combate, ainda que abalados pelos últimos acontecimentos. Contudo, metade da guarnição de homens holandeses já não existia mais.
Mas afinal, com quem Leôncio, seus índios e soldados estiveram lutando desde o dia anterior?
Evert Van der Hof
Aos 58 anos, Evert Van der Hof era filho de comerciantes holandeses. Sua família havia apoiado as lutas pela independência da Holanda, a partir de 1568, assim como o fato de serem protestantes. A Holanda até então, estava ligada ao reino de Espanha, que era católico. Somente em 1581 veio a república. Muitos haviam morrido nos combates contra as tropas espanhóis. Inclusive seu pai e dois irmãos.
Com a independência os negócios rapidamente prosperaram, e fez crescer um sentimento de revolta contra a destruição promovida pelos espanhóis nos anos de guerra. Em 1575 a Espanha estava debilitada e economicamente falida pelo esforço de guerra. Muito se fez da parte dos holandeses para explorar este momento de fraqueza do império espanhol, que ainda recebia muita prata das colônias na América.
Muita informação tida como sigilosa circulava entre as altas rodas de Amsterdam e adjacências. A frota naval holandesa crescia. Seus capitães e outros navegantes traziam novas informações sobre a América. Cartógrafos holandeses mapeavam o Novo Mundo. Amsterdam respirava riqueza e conhecimento.
Foi assim que chegou aos ouvidos de Van der Hof as histórias sobre cidades riquíssimas e que ainda não haviam sido encontradas. Era tudo muito hipotético, porém, estava muito vivo na mente dos europeus a grande conquista de Hernán Cortez, no México em 1519. Também a conquista de Francisco Pizarro, a partir de 1532. Potosí, a grande mina de prata, havia sido descoberta em 1545, um segredo que os espanhóis buscaram ocultar pelo maior tempo possível. Mas, como esconder algo tão grande e tão rico?
Tudo isso enchia a mente de Van der Hof. Foi assim, com tamanhas fontes de riqueza, que fizeram a guerra e quase arrasaram a Holanda e sua família. Tudo isso em nome de Deus, é claro. Quantos aldeões tiveram suas línguas, orelhas e narizes cortados e suas colheitas destruídas? O comerciante havia lutado na guerra e agora queria vingança.
Em sua mente soava um nome, somente duas palavras que o convidavam, o seduziam, como um canto de sereia. El Dorado.
Em 1595 iniciou sua campanha para sensibilizar pessoas e reunir fundos. Finalmente, em 1597 estava pronto. Reuniu seus haveres, conseguindo sócios que apoiassem na empreitada.
Carregou dois navios, embarcou 60 tripulantes e 80 soldados. Tornou-se o comandante da expedição militar de exploração. Receberia a companhia de um capitão de navio que o seguia desde o início das primeiras conversas, com vivo interesse.
Quando veio o convite, este não pensou duas vezes.
Era o capitão Bartel de Vries, não havia participado diretamente das lutas pela independência. Não atuou como combatente, mas contribuía com o abastecimento das tropas. Sua experiência era em náutica, como oficial de navio. Trazia armas e munições para as tropas rebeldes na Holanda. Foi contratado como capitão mor da expedição naval.
Van der Hof, após cruzar o mar oceano, encontrou áreas extensas de mangue. Sabia que estava ao norte do Amazonas-Marañón. Procurou palmilhar calmamente o litoral em busca de uma baía, onde pudesse fundear os navios. O que encontrou foi um canal que cruzava o extenso manguezal, próximo de uma ilha. Esta desconsiderada por ser igualmente repleta de mangues.
Finalmente, 20 km adentrando o canal pôde fundear seus navios.
Estabeleceu ali seu acampamento. O próximo passo era atrair os indígenas do lugar, cujo apoio era imprescindível. Houve uma discussão quanto a validade de se construir galés.
De Vries acreditava que poderia chamar demais a atenção, no que tinha boa dose de razão. Esconder os navios era uma coisa, subir o grande rio em Galés poderia trazer as forças portuguesas, prováveis antagonistas, e não espanhóis, para cima deles. Antes fazer isso nas próprias naus, ou ainda com uma combinação de naus e galés.
Venceu o voto de Van der Hof, que possuía informações de que a foz do grande rio era insuficientemente guardada, ou não guardada. O plano consistia basicamente em subir o grande rio até encontrar canais que fossem para o norte. Daí, a difícil tarefa de palmilhar estes canais. Depois, bastava desaparecer em busca do chamado El Dorado, que suas informações diziam estar ao norte do Amazonas.
Desde 1542, quando Francisco de Orellana cruzou o grande rio e o chamou de “Rio de Orellana”, muito pouco se circulou pela região. Também não havia comunicação sobre novos assentamentos, pelo menos que fossem conhecidos dos capitães holandeses.
Outro fator importante apontado por Van der Hof desde o início, quando buscava convencer os demais. É que o reino de Espanha estava ocupado demais recolhendo a prata no extremo oeste do continente e por isso não havia criado novas expedições dirigidas à calha do Amazonas-Marañón. Mesmo assim, aquelas terras eram mais espanholas do que portuguesas. Se a Espanha já não ligava muito, por conta da União Ibérica, Portugal é que haveria de se importar com toda aquela selva? Só o grito do ouro. O grito da descoberta do vil metal, seria capaz de atrair novas almas para levar a civilização àquelas matas. Pensava Van der Hof.
— Só que esse grito será dado, não por espanhóis ou portugueses, mas por mim. Tomarei posse das terras ao norte do Rio de Orellana, Amazonas, Marañón, chamem como quiserem.
Pensava alto Van der Hof. Emendando ainda:
— Quando se derem conta e vierem atrás do prejuízo, serão recebidos por canhões e cinco mil soldados holandeses protestantes e milhares de índios. Soldados da república. Será a Hof Land.
Em algum momento, acreditava o confiante Van der Hof, que o El Dorado seria alcançado e descoberto. Via nisso uma certeza, por tudo o que já havia acontecido desde o início do século. O século das descobertas. Não queria perder esta grande chance e ainda queria vingar seu povo, sua família e sua fé protestante. Nada iria demovê-lo de seu intento.
Epílogo
O Alferes Leôncio da Ribeira, fuzileiro de El Rey, a despeito do cansaço, da fome e da inferioridade numérica de seus homens e embarcações, havia inteligentemente equilibrado os braços da balança em batalha. Não se podia falar em vitória, entretanto o inimigo havia saído muito debilitado.
Ao saber que os holandeses estavam atracando seu único barco para reparos, tratou de recolher seus homens e foram encontrar um local em terra onde pudessem comer e descansar, ainda que um pouco. O reparo do casco da galé não iria demorar muito. Queria ser avisado tão logo concluíssem o serviço. Para tal, mandou seus espias indígenas. Os homens que mais conheciam aquela terra.
Já Evert Van der Hof, passou todo o restante daquele dia acompanhando a recuperação da galé e organizando uma linha defensiva com soldados e índios. Não queria ser surpreendido pelos portugueses em uma investida contra sua tropa e sua galé danificada.
O comandante estava preocupado.
Sabia que os portugueses tinham ainda duas possibilidades. A primeira prosseguir adiante, subindo o rio até encontrar o grosso de suas tropas e então retornariam mais fortes, com mais soldados e índios, pensava. Seria o fim de da República de Hof Land.
A segunda era esta que exigia cuidados imediatos. O inimigo era asqueroso e poderia oferecer um novo ataque a qualquer momento, tirando proveito da fragilidade de sua situação. Além disso, sabia que os seus índios estavam temerosos por conta daquelas explosões por cima do rio e sem explicação.
Os índios enxergavam naquele fogo repentino e capaz de matar, um fogo que a água não apaga, uma espécie de feitiçaria. O moral era baixo. Só queria algum tempo para poder reagir e fazer um último ataque. Buscar eliminar o grupo de portugueses em sua única galé.
Era preciso vencê-los. Não dispunha de mais tropas em sua base, junto aos navios. O rio não deixa rastro, tinha de vencer a batalha para então escapar para o norte. Ainda poderia encontrar El Dorado, retornar à base no litoral e regressar à Holanda com a espetacular notícia. Um tapa na cara de Filipe II de Espanha.
As razões e os dramas da Europa se encontravam em meio às matas e ao grande rio. Inimigos ferozes em breve se encarariam mais uma vez. Riqueza, política e religião. Nacionalismo, vingança, cobiça e ambição. O explosivo feito de carne e miolos, o mais perigoso jamais criado, estava prestes a espalhar os ossos e os sonhos humanos por todos os lados.
Alta madrugada, o comandante é avisado de que estava tudo pronto. Van der Hof decide levantar o acampamento logo ao fim da madrugada, com tudo pronto. Quando o dia amanhecesse já estariam navegando. O dia havia chegado.
Avançou cautelosamente rio acima, sabendo da astúcia de seu adversário. Não se permitiria ser pego em armadilhas mais uma vez. Avançavam de olhos bem abertos, quando o inusitado aconteceu. Uma linha de canoas se projetou rumando para sua esquerda, tentando cercá-lo e a seus índios em canoas. À direita, acontecia o mesmo.
Na galé, um dos homens que havia escapado ao primeiro cerco, é quem dá o aviso.
— Comandante cuidado! Vão querer cercá-lo! Foi assim que fizeram ontem pela manhã!
Van der Hof manda deter os remos, enquanto observa a galé portuguesa se arrastar até à sua frente, fechando a passagem. Contudo, os portugueses não conseguem fechar a ferradura com o inimigo retido ao meio. Foram avisados.
Foi em seguida que surgiu por de trás da galé portuguesa, uma, duas, três, quatro ilhotas, amontoados de plantas a escorregar calmamente na direção da flotilha flamenga. Os índios, ao avistarem aqueles montes flutuantes são tomados de pânico e se afastam do seu caminho, desfazendo o sistema defensivo ao redor da galé holandesa.
Van der Hof, por vez, ordena para que afastem a galé de perto das ilhotas que vinham em sua direção. Ordena então que atirem nas ilhotas e na galé portuguesa, pois sabia se tratar de um novo ardil.
Ao fazê-lo, os holandeses descarregam suas armas por sobre as ilhotas, sem nenhum efeito aparente. A não ser o fato de que suas armas, agora estavam perigosa e inutilmente descarregadas.
Já a descarga de falconetes contra a Marialva lhe perfura perigosamente o casco em três pontos diferentes, com seus poucos homens ocupados em responder ao fogo. A Marialva começa a fazer água.
Nesse ínterim, uma das ilhotas explode ao léu, assustando os índios de Van der Hof mais uma vez. Os feiticeiros haviam voltado. Ato contínuo, em meio a confusão, canoas conduzindo brancos e índios a serviço de El Rey, com os corpos cobertos de lama, para que os brancos não fossem transformados em alvo em meio aos índios de Van der Hof, remam com vigor na direção da galé, no esforço de alcançá-la rapidamente.
Tentavam manobrar para fugir das ilhotas. Os homens lamacentos, logo se aproximam de seu costado. Arremessaram por sobre a amurada os potes de barro transformados e mortais granadas. Uma dúzia deles com pavios de cinco segundos. Ato contínuo, após as explosões, cruzam a amurada, iniciando a abordagem do barco.
A luta no convés se faz encarniçada. Pedaços de corpos estão por todos os lados e os holandeses atônitos com a rapidez da ação. Nunca tinham presenciado uma abordagem tão selvagem e mortal.
No convés da Marialva, os fuzis são acionados todos ao mesmo tempo através de um cordão, disparando contra os índios ainda aturdidos, enquanto a segunda ilhota explode também, com estopim longo, sem ferir ninguém, porém o pânico toma conta dos índios, mais uma vez.
Leôncio, coberto de lama, identifica um homem branco com as insígnias de comando. Não tem nenhuma dúvida. É o líder holandês. Se puder matá-lo ou capturá-lo, poderá significar o fim da batalha.
Sabia não ter mais nada a oferecer a El Rey, a não ser seu próprio sangue. Leôncio traz a espada curta da luta embarcada. Van der Hof portava a espada longa tradicional, porém inconveniente para um corpo a corpo em lugar apertado como um barco. Por mais que o holandês se esquivasse se via retido no seu manejo tradicional. O fuzileiro se aproveita e trespassa o líder na altura do peito. É o fim do combate. Daquele combate.
O convés permanece tão interditado de homens quanto perigoso de espadas, sabres e adagas. Os remadores, desarmados que estavam, saltam para o rio. Um e outro resolve apanhar armas pelo chão e entrar na refrega, inutilmente.
Das canoas, alguns índios ao verem seu líder ser atacado, passam a lançar flechas na direção da galé. Leôncio é flechado duas vezes. Não há mais explosões de ilhotas, que já se afastavam inofensivas.
Os homens restantes na Marialva, abrem fogo sobre os índios de Van der Hof enquanto, atônitos também são alvejados por flechas. O flanco direito dos holandeses havia se desfeito com os índios abandonando o combate e deixando o lugar. As forças holandesas perdem totalmente a coesão e entram em colapso.
Dois holandeses saltam nas águas e deixam o local em canoas.
Com a fuga do flanco direito dos holandeses, mais índios da força portuguesa invadem a galé. A matança interna, a poder de bordunas e machados de pedra, começa a estraçalhar os defensores em menor número. Cessam todos os combates.
Van der Hof está morto. O fuzileiro Leôncio é retirado por debaixo de corpos que caíram sobre ele na refrega, penetrando mais ainda as flechas em suas feridas. Há muito pouco a se fazer. Leôncio da Ribeira, o defensor de uma das maiores e mais ricas regiões do mundo, em menos de meia hora estará morto. Seu espírito vagaria pelas matas e rios por muito tempo ainda, sem o mais distante entendimento do valor e real significado do seu feito.
As explosões dentro da galé holandesa perfuraram o casco, sem que ninguém pudesse tapar os furos. Lentamente a embarcação cheia de homens mortos submerge, no rio que não deixa rastro.
Encerrado os combates, a tripulação da Marialva, agora luta para salvar a embarcação que já adernava. Entre lamentos, veem já não ser mais possível. Deixam a Marialva socorridos por canoas que se dirigiram ao local. Das canoas indígenas, apenas assistem, pesarosos, o naufrágio da heroica Marialva. Contudo, esta é a lei do rio. O rio que não deixa rastro.
Do pelotão original de 35 homens, incluindo o alferes Leôncio, somente cinco portugueses sobreviveram aos embates com os flamengos, desde o dia anterior. Além de oito mestiços. Três na batalha, um que retornou ao acampamento por ordem de Leôncio e um que já estava no acampamento desde o início.
Com a morte de Leôncio, os índios dispersaram e seus soldados remanescentes retornaram a Salvador, chegando seis meses depois, dando ciência do ocorrido. Com exceção da sepultura do alferes e demais corpos que se pôde recuperar, nada mais restou, nem no acampamento, nem no local dos combates.
Hof Land morreu com o homem que a idealizou. Os tripulantes remanescentes dos dois navios, avisados da derrota e das mortes de Van der Hof e Devries, retornam para a Holanda, comunicando o fracasso da missão.
As lideranças holandesas perderiam o interesse no Pará. Já vinham acompanhando com interesse crescente as grandes plantações de cana-de-açúcar do Estado do Marañón, de onde já compravam o açúcar, com a mediação portuguesa.
Entrementes, foi observado que uma expedição à América portuguesa, estabelecendo a tomada da região açucareira e uma administração, custaria 2,5 milhões de florins anuais. Contudo a produção e a comercialização direta trariam outros 8 milhões de florins. Logo, valeria e muito o esforço em realizar a campanha.
Por conta dos índios, um certo Leôncio foi por algum tempo lembrado como um grande guerreiro branco, que morreu impedindo que invasores subissem o rio.
Mesmo tais histórias se foram com o tempo. O mar da história, muitas vezes indigente e anônimo, este prosseguiu profundamente agitado. A memória do alferes Leôncio desapareceu, no rio que não deixa rastros.