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Ruínas

                                                                   

                                                                                                                                          Imagem: Jon Toy por Pixabay.

Por: Antonio Mata

Uma cola resistente que adere a tudo, lá permanecendo e solidificando, petrificando as superfícies. Argila, areia muito fina, silte, o frio, soterramento e o tempo. Tudo pronto para se envolver e conservar partes duras de organismos e objetos. As rochas, estas suportam por si só.

A forma, o material, a disposição, o lugar, clima, altitude, a idade. Uma conjugação de fatores que possam assegurar a conservação de ossos, cabelos e se possível, tecidos.

Meticulosamente e exaustivamente, grãos de areia incrustados, fixados sobre a superfície com a colaboração de um pouco de lama, desde que logo possa secar. Assim, preservam-se as coisas. Os palácios, as fortalezas, os templos e a habitação simples do homem rude se igualam naquelas mesmas ruínas.

Porém, nem sempre, e nem tudo. As palavras, os sentimentos e as histórias fomentadas por aquelas  circunstâncias, são fugidias. Pois aquelas formas de se entender e de se viver, deram origem a todo o resto.

 

O alimento já estava sendo preparado para assar no forno de lenha, por escravas. Quantidade de grãos moídos na véspera. Misturados com ervas maceradas e água, só para dar a liga. A bebida vem do mesmo grão, do mesmo milho, ainda que saibam fazer outras.

A novidade que estava criando um certo reboliço entre aqueles homens, vinha de uma visão, quem sabe de um sonho, que continha uma orientação, uma mágica esclarecedora. Para alguns não passava de um pesadelo. Não para quem o teve, mas para os outros. Toda vez que Yahtí comunicava algo, despertava sentimentos os mais controversos.

E toda vez se repetia aquilo. Uns acreditavam de pronto, outro grupo pedia tempo para discutir e pensar, já outro queria maiores esclarecimentos para aquela visão, o que normalmente não se tinha, acabavam tendo que esperar.

E um quarto grupo, mesmo sendo a minoria, simplesmente não acreditava em nada daquilo. Não levavam fé naquele tipo de mágica. Só não era proveitoso ficar afirmando isso aos quatros ventos. Talvez não gostassem.

As reuniões se sucediam, até que se buscasse compreender melhor os propósitos dos ancestrais, gente que buscava contato através de Yahtí, trazendo instruções que facultassem um melhor entendimento da vida.

Aparentemente, as pessoas não andavam muito satisfeitas com Yahtí. Como por exemplo, os grandes líderes dos mais altos clãs do império. A nata da nobreza Tamey.

Dessa vez Yahtí recebera um pedido singular. Daí o reboliço daquele povo, pois ainda estavam digerindo aquele monte de coisas. Para certos líderes aquilo era sem sentido, trabalhoso demais e grande demais.

Opiniões à parte,  a maioria reconhecia como necessário e estavam dispostos a prosseguir com a empreitada sugerida.

Afinal, o que causou tanto falatório no seio dos grandes clãs? É que de modo muito categórico, quase agressivo, Yahtí afirmava ter recebido uma visão.

Nesta visão todo o povo era orientado a obter grandes blocos de rocha de diversos tamanhos, e selecioná-los de modo que pudessem se encaixar com facilidade. Daí ser preciso comunicar e sensibilizar os líderes.

As rochas cinzentas, as mais comuns, teriam uma aplicação geral. As rochas de cor avermelhada, seriam separadas para outro tipo de aplicação diferenciada. Já as rochas mais claras, quase brancas e as de cor preta, ou cinza muito escuro, por serem mais raras teriam uma finalidade igualmente diferente.

Duas obras, uma magnânima, a outra algo de natureza desconhecida.

— Yahtí, para quê precisamos de um lugar para olhar para o céu se posso fazer isso de pé na beira do rio? E por quê razão precisa ser tão grande? Não poderia ser menor?

— Não somos nós, são os deuses.

— Para quê você precisa ficar lá no alto?

— Não sou eu, são os deuses.

— Para quê precisam ficar lá em cima?

— Eles não ficam lá em cima! Não vêm que é só uma representação? Eles vivem lá em cima e nós aqui em baixo!

Estava se tornando bem evidente que Yahtí precisava de apoio.

As discussões se estendiam entre os líderes, dia após dia, diante da visão de Yahtí.

Constituíam as partes centrais da visão, uma indicação das rochas e a necessidade de extraí-las; a construção de um templo e a construção de um observatório, além de prédios menores próximos. A visão prosseguiria com maiores detalhes. Preocupava aos líderes o fato de ter de explorar pedreiras em lugares diferentes para obter os tais blocos, além das distâncias cada vez maiores. Quantos escravos iriam precisar só para a realização daquela empreitada? Tais pedreiras estariam todas em território Tamey?

 

Era noite e os representantes dos grandes clãs estavam reunidos ao redor de grande fogueira cerimonial quando recebiam a comunicação de Yahtí. Bastou concluir a exposição da visão, quando algumas pessoas se levantaram, sem compreender os propósitos daquele trabalho.

Um deles era Zoeh. Não estava preocupado em desrespeitar o velho Yahtí. O que lhe afetava era a transferência de homens fortes, escravos do império, da força de sustento do povo Tamey.

É que todos os homens e mulheres livres já possuíam suas próprias ocupações, e o que estava sendo pedido era reservado aos escravos. Não estava disposto a aceitar nada que significasse deslocar seus valiosos escravos, difíceis de se obter.

De fato, eram poucos e o trabalho na pedreira insuficiente para suprir a demanda sugerida por Yahtí. A principal matéria prima dos Tamey sempre fora a madeira.

Havia também Paiteh, incomodado, caso alguém sugerisse a utilização e o afastamento, fosse de homens, fosse de mulheres, para longe dos campos de cultivo. Habitando terras ruins, colhiam pouco alimento das terras.

Assim, fosse a caça, a coleta e o plantio, nada era propriamente dispensável. Precisavam sustentar os níveis de obtenção de alimentos. Paiteh possuía um forte argumento para manter seus agricultores fora daquela história.

Ficava mais ou menos evidenciado, uma certa rejeição a adoção de ideias.

Já as rochas, seria preciso cortá-las no formato indicado por Yahtí, e conduzidas a um grande vale, a ser preparado para receber um grande templo, onde uma pirâmide seria o elemento central da construção.

Em outro ponto não muito afastado, um conjunto menor em forma retangular, recebendo vários prédios, formaria o que hoje é conhecido como observatório astronômico. As duas construções quando prontas, deveriam representar exatamente o que Yahtí vislumbrou durante a sua visão.

Estes seriam os primeiros, viriam outros, esta era a ideia. Porém dessa forma seria possível aplacar os deuses. Se não fosse da maneira como haviam indicado, todos estariam sujeitos a uma morte horrível e dolorosa. Era fundamental que os deuses fossem atendidos e aplacados para não despertar sua ira.

Por quê isso, agora que as coisas estavam em ordem e os Tamey estavam prosperando? O número de escravos e demais braços para o trabalho se mostrava suficiente, sem a visão de Yahtí.

A adoção de tais construções exigiria uma multidão de escravos e o consequente aumento na disponibilidade de alimentos. Isto era o mesmo que um indicativo de guerra.

Não que se importassem com a sorte dos escravos, só estranhavam a necessidade daquelas obras monumentais. Afinal, os deuses já eram adorados em santuários menores, feitos até mesmo em madeira, os mais comuns. Eram fáceis de se fazer, e estavam em todos os lugares. Os mais antigos queriam os escravos disponíveis em atividades mais úteis.

Contudo, ia ficando evidente que Yahtí não estava interessado em manter as coisas como estavam. Yahtí, o mago dos Tamey, desejava a obtenção dos recursos necessários através da guerra.

Outra proposta consistia em algo como um sistema de cotas. Cada uma das tribos e dos clãs dos povos menores, formadores do império, enviaria um certo número, dentre os seus próprios cativos para a realização da empreitada. Além de fornecerem tributos sob a forma de alimentos.

Yahtí sabia que necessitaria do apoio de Inti, o imperador, o favorito dos deuses. Era a união tradicional de forças para se triunfar sobre as mentes descontentes e dos desconfiados. O poder central, aliado aos deuses venceria mais uma vez.

Ao final das discussões, chegou-se a uma solução combinada. Uma parte dos escravos seria obtida nas guerras, como de costume. A outra parte seria obtida junto às tribos e aos clãs dos povos menores, que seriam obrigados a enviar escravos.

Enfim, a decisão foi tomada. Yahtí felicitou a todos e aos deuses também. Estava em estado de graça. Levaria ao conhecimento de Inti, o imperador.

As ideias e sentimentos dos homens, às vezes passam ao largo de seu próprio entendimento. Semeiam sobre a terra sem o saber. Sem que ninguém se desse conta, aquele encontro marcaria também, o começo do fim. O ano era 792 d.C.

 

Em tempos passados, assistiram a ascensão vertiginosa daquele que viria a ser o seu imperador. Até então, os clãs eram liderados fragilmente por Ipanqui, o líder de todos os clãs Tamey.

O guerreiro Inti Urqu, após uma grande vitória contra os inimigos dos Tamey, assumira a liderança dos guerreiros, e se tornara o homem de confiança, o braço direito de Ipanqui.

Antes de assumir a liderança dos guerreiros, em 722 d.C., o jovem Inti Urqu, então com 21 anos, percorrera vastas terras, desde as montanhas da grande cordilheira, onde conhecera vários povos, até as florestas que cresciam onde o sol nascia, terras igualmente habitadas.

Inti não era nenhum tolo. Presenciou guerras entre povos rivais, e não foi uma nem duas vezes que se viu à beira da morte, fosse por ser um estrangeiro, fosse por ter se aliado ao grupo errado e participado de tais embates.

Uma dessas ocasiões, foi quando quis conhecer mais de perto o poder de determinado grupo de guerreiros, suas armas e suas estratégias. Inti, foi quem primeiro percebeu a fragilidade de seu próprio povo e a necessidade de aproximação de todos os  clãs, organizando as tribos sob uma mesma liderança.

O século VIII d.C. assistiu os muçulmanos invadirem a Hispânia e o surgimento do reino das Astúrias, na península Ibérica.

Assistiu o ocaso e o consequente desaparecimento da dinastia Tang, na China, que entrou em convulsão na luta contra os árabes do Islã, só se recuperando no século X.

O Império Romano do Oriente, também sob pressão muçulmana, ano após ano, perdia suas terras, e com elas o poder. Na África oriental, o Império de Gana se formava, a partir do controle das rotas comerciais e cobrança de tributos.

Todos estes povos já conheciam a fundição e o trabalho com o minério de ferro. Já conheciam o gado, e haviam domesticado o cavalo ou o camelo, de longa data. Isto que facilitou o aumento da população, as trocas de mercadorias e o crescimento do comércio, além do emprego militar.

Nessa mesma época, até onde se sabe, na América do Sul nenhum império havia sido minimamente organizado. Ainda que a necessidade de unificação dos povos pudesse ser entendido como algo desejável. Todavia, sem as facilidades disponíveis em outras regiões do globo, este projeto civilizatório se mostraria ainda mais exigente.

O cenário não era animador. Os povos indígenas sul-americanos, no séc. VIII, não conheciam a escrita, não conheciam a metalurgia do ferro, e não dispunham de montarias, nem de animais de tração mais adequados.

Estes povos também não conheciam a roda. As lhamas andinas não servem como montaria e só transportavam cerca de 35 quilos. Na Europa, Ásia e África, era bem diferente. O burro transportava cerca de 100 quilos. Uma mula podia transportar mais de 200. Camelos descansados transportavam mais de 250 quilos, podendo chegar a 350.

Assim, a relativa falta de conhecimentos que ajudassem a consolidar e ampliar culturas, como a escrita e a tecnologia do ferro, além da pouca disponibilidade de animais de tração e carga, aliadas à fragmentação dos povos, constituíam elementos comprometedores.

Criavam uma espécie de fantasma, que ninguém vê, mas ele está lá. Este era o mundo de Inti Urqu e a dimensão de seu desafio ao almejar o poder.

As viagens de Inti, por sobre terras desconhecidas e povos que não falavam sua língua, era atividade de risco. O pequeno número de viajantes, não mais que quatro homens, poderia ter sido assassinado a qualquer momento, por grupos hostis.

Ainda assim, por mais perigoso que pudesse ser, acreditava que era muito mais fácil ocultar um número restrito de homens, do que uma tropa com uma ou duas centenas de guerreiros e suprimentos.

A expedição deixara o vale do atual rio Casanare, na atual Colômbia, partindo para o sul, até o vale do rio Magdalena, prosseguindo para o sul, até as imediações de Quimbiri, às margens do rio Ene, no Peru. Pelas localizações atuais.

Já de retorno, avançaram a nordeste pelas terras dos Mashita. Continuaram a nordeste, até alcançar as cabeceiras do atual rio Purus. Dirigindo-se para o norte, cruzaram o rio Juruá, e continuaram para o norte até cruzar os rios Marañon e Putumayo.

Prosseguiram pela mata até alcançarem mais uma vez o rio Casanare, quando  finalmente retornarem para casa.

Tal expedição, não se deu sem dor, privações e perdas. Às margens do rio Ene, se depararam com os hostis Anayán, tendo sido aprisionados por dois dias. Cientes de que seriam mortos, planejaram a fuga para a noite do segundo para o terceiro dia. Obtendo êxito, em fuga, caminharam por toda a noite por terras e matas desconhecidas.

Com os corpos lacerados por folhas que cortavam como navalhas, e completamente exaustos, diminuíram a passada, avançando na escuridão a duras penas.

Ante a proximidade de seus perseguidores, dois membros da expedição foram capturados. Ao resistirem, acabaram mortos no mesmo local. Os dois restantes, Inti e Murai, prosseguiram até alcançarem as terras dos Mashita, porém por precaução, não travaram contato direto com este povo, preferindo manter distância daquele grupo. Caçavam,  pescavam e encontravam  raízes pelo caminho.

A despeito do risco, puderam conhecer outros povos menos hostis, nas imediações dos rios Juruá, Marañon e Putumayo. Contudo, isto não se configurou uma regra, tendo de tomar cuidados dobrados no trato com povos estranhos, com frequência.

A expedição de Inti levou pouco mais de dois anos, e foi o suficiente para construir um retrato dos povos e das terras que percorrera. O que lhe ficava muito evidente, era a necessidade de se reunir seu próprio povo, e os povos dispersos, pelos atuais Peru e Colômbia.

Viu terras cultiváveis sendo aproveitadas, enquanto outras regiões dispunham de pouco alimento. Observara discretamente, objetos de prata e ouro, além de fontes de vidro vulcânico, a obsidiana. Esta última para fazer lâminas para facas e machados.

Tais observações o motivavam a prosseguir com o sonho do estabelecimento de rotas comerciais, no lombo de lhamas, que contribuiriam para a aproximação destes povos. Aos poucos Inti Urqu, assentava os elementos para a sua empreitada.

O objetivo, ainda que não soubesse defini-lo com clareza, poderia significar a fundação de um império unificado nas terras da América do Sul.

Era fundamental unir o seu próprio povo, que vivia disperso nas terras ao norte. Teria primeiramente de sensibilizar o povo Tamey. Foram necessários mais dois anos, antes que suas ideias amadurecessem e de fato pudessem conquistar pessoas que compreendessem tais necessidades e que pudessem contribuir decisivamente para a sua realização.

A identidade guerreira era parte do povo Tamey. Os homens respeitavam guerreiros vencedores. Precisava dar mostras de coragem e destemor na batalha, contra os povos inimigos dos Tamey. Isto não demoraria a acontecer.

Um conflito por conta de áreas de caça próximas, foi o pomo da discórdia para a guerra. Os Tanmesy, parentes distantes dos Tamey, há tempos que se metiam em rusgas por conta dos limites territoriais entre os povos, e acabaram acusando os Tamey de invadirem o território Tanmesy.

Era conhecedor do terreno e havia sobrevivido a uma expedição de desbravamento, a qual ninguém sonhava fazer. Inti havia se tornado conhecido no seio de seu povo. Agora precisava conquistar o seu respeito. Foi posto na liderança de apenas 300 guerreiros. Murai o acompanhava.

A oportunidade esperada havia chegado. Não adiantava querer contar com muitos homens e meios. Os líderes, por mais que apreciassem a trajetória de Inti, simplesmente não lhe dariam.

Era fundamental que tirasse o máximo proveito de seus guerreiros. E isto exigiria mais que músculos e armas. Um plano eficiente que o fizesse desaparecer, ludibriar o inimigo, e só aparecer no momento do golpe certeiro.

Idealizou um plano, ao mesmo tempo ardiloso e perigoso. Com dois dias de antecedência, seu pequeno grupo de guerreiros deixou as terras Tamey, se dirigindo por terras inóspitas, entre florestas, rios e animais selvagens, até se aproximar das aldeias dos adversários.

Tendo os guerreiros já partido para o combate nas terras dos guerreiros Tamey, Inti Urqu, segundado por Murai, atacaram três  aldeias Tanmesy.

Em seguida um pequeno grupo de guerreiros retornou conduzindo um punhado de mulheres e crianças. Enquanto isso os demais guerreiros se ocultavam nas margens de um rio.

As mulheres e crianças Tanmesy, ao avistarem seus próprios guerreiros, buscaram escapar, enquanto seus captores fingiam se reunir para comer. Lentamente esboçaram reação, gritando e urrando, entretanto sem se apressarem em capturá-las de volta.

Então, com os Tanmesy  envolvidos em se preparar para a refrega, fizeram os líderes saber, através das mulheres e crianças, o que ainda estaria ocorrendo em seu próprio território. A primeira parte do plano já estava funcionando. Era preciso aguardar a decisão do líder guerreiro.

Outu, o líder Tanmesy, precisava tomar uma decisão. Estavam diante dele três possibilidades. Prosseguir e combater os Tamey, retornar com seus guerreiros e salvar sua gente, ou destacar um grupo de guerreiros que partiria imediatamente em socorro às aldeias sob ataque.

O líder Outu escolheu a terceira opção, que se mostraria a pior de todas, pois fragilizou suas forças. Era o que Inti Orqu esperava que fizesse. Afinal a tropa de guerreiros Tamey estava bem na sua frente. Considerou então que seriam provavelmente, poucos atacantes, envolvidos com as adeias. Não queria abandonar aquele confronto.

Inti havia manobrado inteligentemente, por sobre o orgulho e a soberba do inimigo. Cerca de 1200 guerreiros Tanmesy foram enviados de volta às aldeias por Outu. No caminho, acabaram emboscados pela tropa de Inti, que já os aguardava. Durante a travessia do rio com água até o peito, a força deteve o movimento.

Foram  atacados com flechas durante todo o percurso, não podiam deixar o rio sem serem alvejados dos dois lados do rio. Os duzentos homens que conseguiram chegar às margens acabaram mortos com clavas e machados.

A primeira parte do plano, completou-se com absoluto sucesso. Inti rapidamente retornou ao campo de batalha principal, onde os combates estavam prestes a iniciar. A coluna de Inti permaneceu oculta dos olhos de Outu.

Quando Outu iniciou o ataque, rapidamente se posicionou no flanco esquerdo dos Tanmesy, fazendo a base da letra “L”, enquanto os guerreiros Tamey faziam a linha vertical, que receberia o impacto das forças invasoras.

Alvejados com flechas, o ataque de Outu começou a perder força, quando então, ao comando de Inti, avançaram e atacaram o que restava do flanco esquerdo dos invasores Tanmesy. A manobra antecipou a derrota de Outu e de seus guerreiros. O plano de batalha de Inti se completara com enorme sucesso.

Quando Outu se afastou, deixava atrás de si, 3000 guerreiros mortos. Encontraria pelo caminho os corpos da força de 1200 guerreiros que enviara para proteger as aldeias. Inti havia atacado apenas as três primeiras aldeias Tanmesy, tocando fogo, destruindo, porém sem se ater a matanças.

Não se tratava de bom coração. Para a execução da primeira parte de seu plano, precisava de tempo, não era seu propósito matá-los, queria de fato atingir os guerreiros. Precisava deixar as aldeias a tempo de montar a emboscada no rio.

Isto permitiria  atacar e destruir seu adversário, sem, contudo, cansar suas tropas. Estas poderiam retornar rapidamente para cercar o flanco esquerdo dos Tanmesy, já na batalha principal.

A vitória dos Tamey fez inverter a balança do poder na região, com Outu tendo suas forças reduzidas a cerca de 2 mil guerreiros, sendo pelo menos 500 deles, muito feridos. Enquanto os Tamey, tendo perdido menos de 400 combatentes, manteve mais de 5 mil em condições de combate.

O plano de Inti Orqu foi considerado espetacular por seus líderes. Pelo mérito, pela coragem e pela inteligência, foi aclamado chefe dos guerreiros Tamey, braço direito de Ipanqui, o velho chefe Tamey. A primeira parte de seu plano principal, rumo ao poder supremo, ocorrera de modo magnífico.

Inti Urqu, valendo-se de um ardil, vencera Outu e os Tanmesy. Logo se organizaria uma expedição de caráter policial, para assumir o controle do território Tanmesy.

Para assegurar a fidelidade do povo, o restante dos guerreiros de Outu foi desbaratado e o mesmo foi morto. Estabeleceram então um sistema de prestação de tributos, a serem pagos pelos derrotados. Inti, era o idealizador de todas estas ações.

Suplantados em número, e com o recebimento de obsidiana, indispensável para o fabrico de armas, controlado por Inti e os guerreiros Tamey, os Tanmesy perderam sua autonomia. A  obsidiana era importante, pois permitia a produção de pontas de flechas e de lanças, machados e lâminas cortantes. As armas feitas só em madeira eram menos letais.

A despeito disso, o ciclo de guerras tribais terminou, e a possibilidade do comércio com os Tamey e povos vizinhos, contribuiu para reduzir o impacto da tributação Tamey. Ao longo dos tempos os Tanmesy perderiam sua identidade cultural, absorvidos que foram pelos vencedores.

Ipanqui, chefe dos Tamey, reconhecia e admirava não só as qualidades guerreiras de Inti, mas também a forma como estabeleceu o controle sobre os vencidos, porém sem derramamento de sangue, e de forma a favorecer os Tamey.

Assim, nomeou Inti Urqu, que já era o líder dos guerreiros,  controlador das recém-criadas rotas de comércio, e mandatário das terras Tanmesy, para a cobrança de tributos. Nada aconteceria naquelas terras que não fosse do seu conhecimento.

Para assegurar que suas ordens seriam cumpridas, nomeou Murai, seu comandante da guarda e assuntos internos, junto aos Tanmesy, além de receber mil guerreiros.

Paralelo a isto, enviou os guerreiros vencidos, para a extração de obsidiana nas montanhas, próximo aos cumes vulcânicos. A decisão era simples, trabalhar na extração de obsidiana, e nas pedreiras que logo surgiriam, ou apenas morrer. As mulheres e os demais se juntariam à produção agrícola, no plantio principalmente do milho, mandioca e batatas.

Este grupo inicial de controle da população, comandado por Murai, acabaria por receber jovens guerreiros locais, e a se unir às mulheres Tanmesy, trazendo uma nova geração de crianças Tamey, no seio do povo Tanmesy.

Era o início dos processos de  absorção cultural. Até hoje, muitos daqueles que detêm o poder, e a loucura que ele traz, ainda fazem isso. Sufocar o povo vencido, até que ele desapareça pelo fim de sua herança cultural.

Passaram-se pelo menos oito anos. Inti, que fizera sua primeira expedição de reconhecimento das terras que entendia como sendo o seu mundo, aos 21 anos, agora contava 31 primaveras.

Logo após o território Tanmesy, se iniciavam as terras dos  Inkanqui. O mandatário já havia enviado seus espiões para  observar seu território e o seu povo. Foi assim que Inti ficou sabendo da disputa interna entre duas facções rivais. Aos poucos, sem fazer alarde, conquistou a confiança dos Anqui. Estes controlavam apenas 3000 guerreiros. Já os Inkan, controlavam 5000 homens, desejosos de atacar e destruir os Anqui.

O cenário estava pronto para mais um ardil e mais uma conquista  de Inti Urqu. Pensava em expandir o comércio, descobrir jazidas de prata e ouro, abrir novos caminhos nas matas e nas montanhas para os comerciantes, assim como para suas tropas.

Na realidade, por debaixo de todo este sentimento progressista, de aproximação dos povos, o jovem estava começando a se deixar seduzir pela sede de conquista.

Secretamente, negociara uma aliança com os Anqui. Pequenos grupos de guerreiros Tamey, disfarçados de caravaneiros, participariam do comercio com os Inkanqui, de modo a terem acesso fácil às aldeias, que por sinal estavam crescendo.

Na nova estratégia de Inti, os Anqui deveriam atrair os guerreiros Inkan para o campo aberto, oferecendo a oportunidade de um combate decisivo. Na realidade o sonho dos Inkan, para se livrarem da presença dos Anqui de uma vez por todas. Era Inti Orqu, mais uma vez manobrando habilmente por sobre o orgulho, o ódio, e o preconceito dos homens.

No tempo estabelecido, os guerreiros rivais se apresentaram, enquanto as tropas de Inti, permaneciam ocultas nas proximidades, com espiões prontos conectá-los ao combate, tão logo recebessem ordens.

Inti, que de tolo, nunca teve nada. Inti, o ardiloso, trazia consigo 4000 guerreiros Tamey, 3500 dos jovens guerreiros Tanmesy, e mais 2500 guerreiros de grupos menores diversos, tributários da expansão Tamey.

Era proveitoso para os chefes menores, fosse politicamente, fosse militarmente, e comercialmente também,  estarem bem relacionados com os Tamey, o povo que havia enriquecido e que controlava as rotas de comércio, assim como a maioria das pedreiras e minas, e a produção agrícola. Isto assegurava privilégios para os chefes menores, porém só para eles e seus seguidores diretos.

Os Inkan confiantes na vitória sobre os Anqui, se apresentaram, cheios de soberba e desprezo pelos adversários. Quando viram a menor tropa dos Anqui no campo de batalha, partiram para cima dos adversários com a certeza de desbaratá-los rapidamente.

Isto não se dava à toa. Os Inkan vinham das tradições de famílias de caçadores e clãs guerreiros, ao passo que os Anqui, eram tradicionalmente pastores de lhamas e agricultores. Por sinal, idealizadores e responsáveis por uma rede de canais de irrigação, que assegurava o crescimento do povo Inkanqui.

A habilidade na ampliação dos campos cultiváveis era uma possibilidade que Inti Urqu, desconhecia. Não queria que fossem destruídos, ou escravizados nas mãos dos Inkan, pois o que tinham de ferozes, tinham de estúpidos e ignorantes. Inti estabeleceria o equilíbrio da balança de poder, mas do seu modo.

Os guerreiros Inkan atacaram os Anqui, com ferocidade anormal, ávidos que estavam de dar uma lição a aqueles agricultores infelizes. Na corrida para cima dos Anqui, gritavam:

— Já plantou o milho, já plantou batata, já tirou o leite? E agora, e agora? Agora, vão morrer!

O grito visava diminuir e humilhar o adversário, que aguardava cruzarem o campo para o impacto fatal, o momento de decisão.

Os Anqui sentiram a pressão. Do embate de escudos, logo a seguir perdem a linha de defesa e o combate se torna um amontoado de homens lutando pela própria vida.

Rapidamente, ainda que tenham abatido 1000 guerreiros Inkan, lutando bravamente, também perderam 2000 homens dos seus. O líder dos Anqui olhava ao redor e não conseguia ver os guerreiros de Inti.

Os combatentes restantes ficaram na relação de 4 Inkan contra 1 Anqui. Estavam a um passo de serem massacrados. Foi quando Inti Urqu ordenou o ataque de seus guerreiros. Em formação, a  passo acelerado, 10.000 guerreiros descansados e bem armados, adentraram o campo, por detrás da posição original dos Inkan.

Quando os orgulhosos Inkan se deram conta do que estava acontecendo, as lanças dos novos senhores da região perfuravam as costas dos guerreiros Inkan, estes cansados e espalhados no campo. A sorte mudou de rumo.

Dessa vez, eram os remanescentes dos guerreiros Inkan que estavam sob ameaça de serem dizimados, pura e simplesmente. Com os Inkan cercados, Inti ordenou que a peleja cessasse.

O ardiloso, que não era tolo, nem benevolente, só estava pensando na imagem dos invasores, no estabelecimento de uma nova governança, uma nova ordem, que certamente, não seria Inkan, e muito menos Anqui.

Os 1100 guerreiros Inkan remanescentes foram capturados e reduzidos à condição de escravos. Encaminhados às minas, terminava assim a linhagem altaneira dos caçadores e guerreiros Inkan. Na realidade, por mais de 200 anos haviam assegurado a grandeza de seu povo, no ciclo interminável da guerra.

Desgraçadamente, tomados de soberba, não compreenderam o mal que haviam plantado com o espírito de casta que estavam sutilmente buscando implantar, ainda que não fizessem a menor ideia do que viesse a ser uma casta, uma linhagem hereditária de guerreiros. Um grupo que se assume como superior aos demais.

Os homens no mundo são assim, não medem consequências, não sabem o que fazem.

De volta aos Tamey, Inti Urqu foi recebido como um herói. Aniquilara ardilosamente com um exército de 5 mil Inkan e 3 mil Anqui, que não compreenderam que o seu poder estava na união de todo o povo, agora dominado por estrangeiros.

Três anos depois, com a morte do idoso Ipanqui, Inti Urqu se tornou seu sucessor natural e inconteste. Ipanqui partiu para a terra do outro lado da vida, na sua concepção, satisfeito. Deixava não uma tribo, mas diversas, com pelo menos 260 mil súditos de povos diversos.

Inti, já não assumiu como chefe, mas como imperador, no ano de 735 d.C. Havia finalmente galgado o ponto mais alto da montanha. Os Tamey estavam se tornando a nobreza da região, com 320 mil vassalos a seu serviço, fornecendo bens, guerreiros e escravos.

A roda do tempo giraria por mais 25 anos. A população do império  ultrapassou os 700 mil habitantes. As mulheres Tamey, beneficiárias da riqueza de seu povo, já não tinham mais a necessidade de trabalhar na lavoura.

Passaram a ter poucos filhos e a gozar de uma forma de vida que estava, gradativamente, se tornando cada vez mais urbana. Os homens livres só se aproximavam das minas, caídos em desgraça, como punição.

O trabalho no campo e nas minas era realizados por escravos, ou senão, por aqueles considerados inferiores. Os vencedores e construtores do império, haviam se tornado orgulhosos e se intitulavam “Tamey, os superiores”.

Nada mal para quem tinha como imperador, Inti Orqu, o Sol da Montanha. O grande sol que brilhava sobre todos, principalmente sobre seus escolhidos, seus eleitos, os valorosos Tamey.

Assim adquiriram novos hábitos, mais de acordo com uma nobreza real. A população original de 40 mil habitantes, quase não cresceu, mal chegando aos 55 mil habitantes. No início havia menos de 4 mil escravos na capital Tamey. Este número passaria para mais de 12 mil.

Na realidade, somente uns 6 mil tinham acesso à nobreza. Mas como a vaidade falava mais alto, todos se sentiam integrantes de um povo nobre, senhores de muitos povos.

O imperador Inti, havia se tornado o senhor de um exército de 100 mil guerreiros. O reino mais rico e mais poderoso da região.

Dominava territórios que se estendiam da atual cidade de Caracas, na Venezuela, passando por todo o litoral no mar das Antilhas, até o primeiro terço do atual Panamá, prosseguindo pelas praias do Pacífico Sul, até as imediações da atual cidade de Pisco, no Peru.

Daí subia para nordeste, até o Alto Purus, prosseguindo ao norte até a atual cidade de Benjamim Constant, na Amazônia brasileira. Daí prosseguia-se até Cucuí, no Brasil, dirigindo-se ao norte, até alcançar o rio Orinoco, e então prosseguindo até Caracas.

O imperador Inti Orqu, tendo criado seus domínios, agora tinha sua mente tomada por outras miragens, ou mais exatamente, perturbações, fruto do embate humano, onde a maldade deixa rastros indeléveis na mente dos vencidos, deste e do outro lado da vida. O imperador desejava a proteção dos deuses.

Já possuía tudo o que a riqueza, o prazer e o poder podiam oferecer. Estava desejoso da manutenção de seu vasto império e da segurança, para si e para os seus. Ansiava por estabelecer uma dinastia no império Tamey. Tinha então, 59 anos.

Foi quando mandou chamar o velho Yahtí, já quase centenário.

Uma espécie de astrólogo, astrônomo, curandeiro que só atendia aos poderosos do império, e profeta. Yahtí não era um homem propriamente bem-visto, e estava longe de possuir reconhecimento. Apenas estava lá. Isto não importava muito, desde que pudesse ficar ao lado de Inti.

Já não andava sendo carregado por escravos em uma liteira. Conduzido aos aposentos do imperador ficou sabendo de seus planos para ascender aos céus, na condição não apenas de mais um dos deuses. Queria ser o deus na terra. O deus entre os vivos.

Para isto funcionar precisava de toda a lábia e verborragia de Yahtí, no sentido de convencer os líderes dos clãs superiores a acompanhar Inti nesta empreitada de divinização da figura do imperador. Era evidente que almejava o poder supremo sobre todos os povos, fosse pela força da crença, fosse pela força das armas. Isto já existia, o resto era só alucinação e soberba.

Aliás, já fazia algum tempo que queria se livrar dos radicais, na realidade opositores, dentre os líderes dos altos clãs Tamey. Aceitava a presença dos nobres de sua gente, desde que entendessem que ele, Inti, o sol da montanha, já não era mais um deles.

Obtido o apoio dos líderes, deu-se início ao ambicioso projeto de criação de um homem-deus.

Os povos anexados ao império pela força, passaram a fornecer cotas anuais de homens e mulheres escravizados para o serviço nas pedreiras, no transporte por terra sobre roletes e nos rios, além da construção do grandioso templo. Os construtores adotaram o formato piramidal, próprio da visão de Yahtí. Com os blocos rochosos organizados em degraus.

O imperador ficou satisfeito com a proposta e ordenou que cada lado da pirâmide quadrangular teria mil degraus.

Quando Yahtí comunicou aos construtores, estes ficaram receosos de que tudo cedesse em função do peso, e destruísse a câmara mortuária que ficaria no interior da pirâmide. Yahtí então, sugeriu 365. Um degrau para cada dia do ano. Os construtores contraindicaram, e ofereceram uma pirâmide com 100 degraus. Yahtí sabia que o imperador não iria aceitar, e por sua conta mandou que fizessem com 365 degraus.

A alegação era simples. O imperador, e muito menos o seu curandeiro, que já era muito idoso, não poderiam subir até o alto facilmente. Carregá-lo, poderia ser um risco assumido, se o homem caísse de lá de cima. E o imperador era a salvaguarda de sua própria vida.

Outro aspecto é que quanto maior o templo, menor a chance do imperador ver tudo ficar pronto. A estimativa era de se construir em 20 anos, só que levaria muito mais.

A roda do tempo girou por mais 12 anos. A construção realizada, estava ainda na faixa de um terço, e, portanto, longe da finalização. Os construtores nunca haviam recebido tamanha incumbência, e por isso tocavam o projeto aos poucos, com receio de algum erro. Além disso, oferta de blocos de rocha era insuficiente, e epidemias matavam os fracos escravos. Enquanto isso o imperador mandava aumentar os impostos sobre os povos do império, para compensar as perdas.

Nem os outrora felizes Tamey, por serem um povo nobre, foram poupados. Mais escravos, mais grãos, mais ouro, mais pedras. O imperador Inti Orqu, o sol da montanha, completara 71 anos.

Submetidos a pesados tributos, e por terras muito extensas, com comunicações precárias, o controle do império tornou-se um disseminador de corrupção. Os recursos começaram a ser desviados. Ante à falta, aumentava-se a cobrança sobre a população mais uma vez.

A insatisfação aumentava a olhos vistos. Menos aos olhos do imperador, que cercado de bajuladores, cujo maior sempre fora o velho Yahtí, permanecia alheio aos fatos e às reais condições de seu império.

As conspirações se iniciaram, até que duas das regiões mais ricas do império se sublevaram. Quando Inti soube finalmente do ocorrido, já havia um exército pronto a desafiá-lo.

Encaminhou-se às terras do sul com um exército de 80 mil guerreiros de povos diversos, de encontro aos traidores e conspiradores. Foi quando descobriu que o líder dos traidores era seu então braço direito, Murai.

O mesmo que o acompanhara na expedição de 50 anos atrás. O começo de tudo, sobrevivendo aos ataques de inimigos e aos perigos da selva. Seu fiel Murai.

Aos 67 anos, rico e idoso, Murai poderia ter prosseguido, vivendo  nababescamente. Só não aceitou o repasse cada vez maior de impostos que observava. Isto lhe trazia dificuldades, tendo que lidar com grupos revoltosos nas terras sob sua governança. Decidiu conspirar, pois também se sentia prejudicado.

Mirai reuniu 60 mil guerreiros, convencidos de que lutavam por suas famílias e sua gente. Murai, de tanto observar aquele que fora seu imperador, também aprendera a manobrar sobre as mentes dos homens.

Encontraram-se em terreno de planície para um embate clássico, homem a homem.

Bobagem, Murai conhecia os ardis de Inti, e não se deixaria enganar tão fácil. Inti havia ocultado parte de seu exército em um bosque próximo. Tropas de Murai, contornaram o bosque e tocaram fogo na mata, de tal modo a afastá-los do exército principal. Ante ao afastamento expostos em campo aberto, foram atacados pelos de arqueiros de Murai. Então uma tropa de guerreiros completou a matança.

Murai então fez menção de fugir e deixar o campo. Inti, entendeu que era uma armadilha, um truque para atraí-lo, e decidiu permanecer onde estava.

O que Inti não sabia é que Murai fizera um segundo grupo de guerreiros contornar o campo, enquanto transcorria a primeira batalha e percebeu que a venceria. A seu sinal, os três grupos avançaram e cercaram o corpo de exército principal de Inti.

Tendo de lutar em três frentes, Inti assistia seu exército se perder ante as sucessivas nuvens de flechas, seguidas de estocadas em toda a linha de frente. Era o fim, entre dezenas de milhares de mortos, o discípulo finalmente superara o seu mentor.

Ao saber da derrota de Inti Urqu, seu protetor, Yahtí jogou-se do alto da pirâmide incompleta. A mesma de sua visão, já muito no passado. Os tempos ilusórios de glória e grandeza haviam finalmente terminado.

Inti Urqu ainda conseguiu escapar, sendo perseguido pelas forças de Murai por dois anos, até ser localizado e morto, em 774 d. C. Sua cabeça retornou às terras de Murai na ponta de uma lança.

A vitória em batalha, dois anos antes, teve um custo brutal. Para destruir os 80 mil combatentes de Inti, Murai perdera, ao final das contas, 45 mil guerreiros. Vencedor, foi aclamado imperador, sem um exército capaz de submeter todas as tribos.

Alianças regionais destruíram e fragmentaram o outrora poderoso império. O enfraquecido e velho Murai, tornou-se então, o imperador do sul. A parte que conseguiu manter.

Murai, companheiro de aventuras de Inti, aos 17 anos, já contava com 69. Foi imperador por sete efêmeros, pobres e violentos anos, morrendo aos 76 anos, em 779 d.C. As terras se tornaram exauridas e a fuga de escravos, um fato. Então sobreveio a fome.

Como não deixasse sucessor, o império do sul desabou antes de poder crescer. A fragmentação do poder por conta de lutas pela sucessão, determinou o fim de qualquer chance de sobrevivência.

O sul se dividia. As obras monumentais já haviam sido abandonadas. Comandantes militares amotinaram as tropas remanescentes, de maneira que Murai não pôde mais governar. Enfim, pois acabaria assassinado por seus próprios generais.

Sem o imperador, bandos de bajuladores foram assassinados. Yahtí, o curandeiro e profeta, já não estava mais ali. Na realidade Yahtí mentia em suas visões. Um homem obsediado, perseguido por espíritos tão gananciosos e tão perturbados  quanto ele mesmo. O próprio Inti, em certo momento começou a acreditar que Yahtí não passava de um impostor.

Com o esfacelamento visível, o último exército, de 15 mil homens era composto de 4 mil Tamey e diversos outros povos. Foi o pivô de sua falência. Não havia mais um exército coeso para proteger os orgulhosos Tamey.

Com o apoio de forças regionais, os 11 mil antigos guerreiros do império, cercaram os 5 mil guerreiros Tamey remanescentes e estes acabaram dizimados.

A porta estava aberta para a pilhagem do povo Tamey, humilhado, violentado, conduzido aos grilhões, e finalmente assassinado. O banho de sangue exterminou 80% da nação Tamey. Mantiveram os habitantes simples de pequenas aldeias que viviam da subsistência.

Estes eram habitantes de comunidades mais pobres e mais ligadas ao esforço da sobrevivência da vida diária. Longe da algazarra das cidades que se organizavam, e do amontoado de badulaques que os nobres chamavam de riqueza, se tornaram tendentes ao despertamento da fraternidade, pelo esforço de se ajudarem uns aos outros.

Aprenderam a enxergar o Criador a partir de coisas simples. A beleza do nascer e do pôr do sol, o céu estrelado, o canto dos pássaros, o vento fresco soprando pelas florestas e rios.

Havia um punhados destes homens e mulheres simples espalhados pelas terras do mundo de Inti, aos quais o imperador nunca dedicou um único olhar.

De uma forma inesperada, as outrora estratégicas minas e pedreiras perderam muito de sua importância. Com as estradas tomadas de salteadores, o comercio desapareceu. O mundo de então estava se fechando. Uma mostra de como o ser humano tem dificuldade para olhar para si mesmo e então compreender este mesmo mundo ao redor.

Os mais ricos, em parte, encaravam os templos, ou o esforço para construí-los, como sinal de opressão, indicação da ira dos deuses. A outra parte como um mal necessário.  Todavia, muita gente entendia que foi a partir dali que tudo começou a dar errado.

Os mais pobres, as viam como sinônimo de escravidão em massa dos homens, pelos muitos que para lá foram conduzidos à força. Ricos ou pobres, equivocadamente, todos trocavam o efeito pela causa. Ainda hoje existem minas e obras monumentais onde se trabalha sob duras penas, e  são apontadas por alguns como as causadoras do sofrimento.

Pareciam estar fartos de um império que os dominasse. Não foi possível recriar um império no norte. Não com diversas tropas regionais se encarando e rivalizando mutuamente. A cidade parecia um projeto que não deu certo, fadado ao fracasso pelas invasões. Preferiram o retorno à vida primitiva no campo.

Após sucessivas lutas que estabeleciam um predomínio precário por este ou aquele povo, sobreveio o cansaço, por conta da destruição e da fome. Por volta de 795 d.C., nada lembrava que ali existira um império altivo e combativo, a não ser as ruínas de um templo e de um observatório incompletos.

No espaço de três gerações, já não se sabia mais para quê fizeram aquilo. Os blocos de rocha, fracionados em pedaços irregulares, foram utilizados no casario próximo.

De Puma Punku a Machu Picchu, de Stonehenge a Angkor Wat, do antigo Egito à Amazônia. As pedras falam. Murmuram as palavras daqueles que foram tocados em suas almas e em seus corações. Uns construíram por convicção, outros por escravidão.

A aqueles mais pobres, empurrados por sua fé em uma força superior, compreenderam os propósitos de sua estadia no mundo das ilusões. Ao longo dos anos, pereceram e foram conduzidos a mundos onde não tivessem de ser aprisionados ou perseguidos, por sua bondade e sua fé.

Já todos os demais, prosseguiram deixando seus registros em pedra. A maioria ainda soterradas e esquecidas. Acharam por bem se dedicar ao bloco de pedra, sem perceber o espírito que emanava dos próprios homens, o real motivo de estarem ali.

As pedras falam e contam daqueles que ficaram para trás, quando os blocos rochosos, transformados que foram, em cenários da soberba, do preconceito, da violência e do egoísmo. Indicavam ainda, o peso imensurável a retê-los sobre a Terra.

Estas são as ruínas daqueles que se foram, pois não mais precisavam delas, mas principalmente de todos os demais, que continuam, até hoje, prisioneiros das mesmas ideias de poder sobre os demais, das mesmas pedras que eles próprios puseram em seu próprio caminho.

  

                                            FIM

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