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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Rupert cara de cão

Por: Antonio Mata

As manhãs ensejam a vida, a renovação e o trabalho. O passeio e o lazer convidativo. O bem estar por excelência. Nem debaixo de chuva perde seu charme e sua graça.

A infinidade dos mundos habitados é bela por excelência. Os desafios evolutivos são emoldurados com toda sorte de expressões de grandeza e beleza.

Azul de ar fresco de pássaros brincando. Tudo tão bucólico, de cheiro de mato do dia que começa. Não fossem os matizes humanos. As contradições e um triste legado esmagador, carregado de mundo a mundo. Impregnado, igual pena de passarinho que caiu no alcatrão. Difícil e pesado libelo acusatório. A ferocidade, orgulho reduzido a animalidade.

Na construção reunira um grupo de pessoas de seu convívio. Sentiam-se inseguros em seus lares. Daí, estarem naquele lugar. Muito menos haviam se enganado. A vila de Algueroz precisava de um lugar assim.

O casarão de aspecto maciço, feito em blocos de granito mal cortados e empilhados, com os buracos fechados com argila enegrecida. O telhado, em folhas de ardósia sobre madeirame resistente, falava de um tempo singular. Tempo de incertezas.

As aberturas pequenas, no lugar de janelas, completavam a ideia dos autores da obra. Um lugar de defesa e resistência. A ansiedade e o medo, destoavam da beleza da manhã lá fora.

Um sacerdote de barbas longas buscava conciliar naquilo que já havia sido decidido. Quem sabe, pudesse ganhar tempo ou mesmo convencer os líderes ali reunidos.

Os elmos em ferro martelado, lanças, machados e espadas não deixavam dúvidas. Aquele dia claro de primavera trazia mais que a promessa das flores do campo.

Dia de confronto, sanguinário e perturbador. Dentro e fora do casarão, todos esperavam. O fio de esperança nas mãos de um velho que se interpunha ao aço e ao ferro. Sua vida, seu pescoço e aspirações de sacerdote, estavam perigosamente sob risco.

— O Governo Colegiado decidiu em data recente que todos são cidadãos desta mesma terra. Aqui não há forasteiros nem intrujões. Há trabalhadores dedicados. As diferenças de origem já não existem mais. Devem ficar no passado pelo bem de todos.

— Tão dedicados que são donos de mais da metade dos rebanhos.

— Como disse, Hegel, são trabalhadores dedicados. Há de se imaginar que um dia o rebanho fosse crescer. Trabalho, dedicação e paciência foram os instrumentos do sucesso dessa gente.

— Dedicados e habilidosos. Há quem sustente que têm roubado o rebanho alheio nas pastagens.

— Gente trabalhadora e ordeira não tem tempo para o roubo Hegel. Precisa rever suas fontes de informação. Não vá se emprenhar pelos ouvidos. — Mestre Ugart buscava abrir os olhos de Hegel. Então prosseguiu.

— Conseguem crias mais sadias e com maior aproveitamento das fêmeas do que vocês. O nome disso Hegel, é experiência. É conhecimento aliado ao trabalho. Façam o mesmo todos vocês e seus rebanhos também irão crescer.

Hegel, terratenente e herdeiro de muitas propriedades, via com maus olhos a ascensão daqueles trabalhadores. Mais eficientes e dedicados do que os seus. Sério e com uma cara de boneco de cera, buscava na mente algo para provar que seu sentimento de desprezo pelos demais era verdadeiro.

— No mercado apresentam o melhor algodão. Fazem a melhor tecelagem. Os desgraçados estão ficando ricos. Ao passo que nós temos pouca produção e um tecido que não se quer mais. A concorrência é desleal.

— Contudo Hegel, também é verdade que estão sempre prontos a contribuir e a colaborar. Veja o que aconteceu na última seca. A maioria das doações aos necessitados provinha deles. Ajudaram não só com dinheiro, mas também com alimentos e trabalho voluntário. Até os nossos reconheceram isso. Às vezes penso que parecem mais humanos que nós mesmos.

Hegel afastou-se por um instante. Parecia pensar. Mas, Ugart não lhe deu trégua.

— Não esqueça que só eram chamados para trabalhar como braçais, por serem muito fortes. Nunca lhes abrimos maiores espaços na sociedade. Contudo Hegel, conseguiram aprender. Absorveram conhecimentos no espaço de duas gerações.

O terratenente parecia surdo.

— Vamos resolver isso aqui hoje. Antes que acabemos trabalhando para esses cães. Uns cães danados, uns animais de rabo cortado sem dono e sem história. Filhos de cadela do beco! É isso que eles são. Esses malditos.

O monge sentia que precisava fazer algo e logo. Antes que a matança se estabelecesse.

— Hegel, Hegel, apelo para o que há de mais sagrado, para os ancestrais, para os fundadores. Aqueles que construíram a vida sobre estas terras.

— Não com esses cães imundos!

— Hegel, compreenda, eles chegaram depois. Contudo seguiram nossas leis e nossas tradições. Cresceram e favoreceram muitos de nós. Veja só, não são maus. São confiáveis e amigos, trabalhadores fortes e decentes. Sem a presença deles a produção cai Hegel. Aí sim, teremos do que lamentar.

— Pare de defender esses invasores! Animais invasores! Vão acabar tomando nossa própria terra!

Entrementes, enquanto os ânimos se acirravam, pouco antes do nascer do sol, outra pessoa buscava auxílio para a pequena comunidade. Só que de outra forma.

Escondendo-se dos soldados que guardavam o lugar, tomou a estrada rumo à cidade, ainda no escuro. Estava disposto a fazer uma corrida de quase 27km, no intuito de obter ajuda do Governo Colegiado. Uma junta governativa composta por quatro anciãos.

Foi a forma que encontraram para governar e conduzir povos diferentes e que já traziam consigo as marcas de conflitos anteriores. Onde há fumaça há fogo e Rupert, um antigo soldado, agora pequeno criador de ovelhas, tinha suas lembranças amargas. Fruto do preconceito contra os demais. O preconceito, a justificativa barata nas mãos de seres endurecidos. De cor, de religião, de raça. O preconceito de espécie, a necessidade de se apontar um inferior, marcava aquele mundo.

Na noite anterior, ao notar o acirramento dos ânimos, Rupert começou a reunir vários moradores da vila no casarão de pedra, onde ficariam mais seguros até a retorno à normalidade.

Suarento e exausto chegou à governadoria. O sol já seguia alto. Havia uma inquietação nas ruas. Um silêncio não natural, não comum naquela manhã de primavera.

Identificou-se e pediu passagem aos guardas do lugar. Recebeu um ticket numerado e um pedido de espera. Na companhia de dois soldados armados foi conduzido a extenso corredor.

Percorriam o centro do prédio, quando prestou atenção no aspecto desleixado, com objetos quebrados e lixo pelos cantos.  Mais adiante pôde ver por uma porta entreaberta um grupo de homens revirando o mobiliário do recinto.

Chegaram ao final do corredor e a um portão do lado esquerdo que dava acesso a um grande pátio. O que Rupert viu foi estarrecedor. Fazendo que sua mente alerta disparasse em pensamentos e decisões instantâneas.

Em um movimento que seus ancestrais mais primitivos não conseguiriam fazer, soltou os braços lateralmente, desferindo forte pancada no rosto de cada soldado.

Iniciou rápida corrida até uma carroça próxima. Saltou sobre a mesma e dali alcançou o muro de pedra, se agarrando nas reentrâncias, até pular do outro lado, chegando à rua e fugindo dali. Pela rua de fuga, percebeu populares apontando para ele e patrulhas, na verdade milicianos percorrendo as ruas próximas.

Iniciaram uma perseguição a pé. Rupert derrubou um cavaleiro próximo, atirando-o ao chão. A galope, tomou o rumo da estrada de volta. Precisava desesperadamente reunir seus pares.

Obter armas e resgatar os moradores dentro do casarão de pedra. Cortou caminho pelas trilhas adjacentes, para ganhar tempo e para fugir das vistas de possíveis perseguidores.

Dirigiu-se a vilarejo próximo. Lá chegando ficou claro que a notícia do golpe de estado ainda não havia chegado. Esta foi a visão repentina de Rupert, pouco antes. Os quatro membros integrantes do Governo Colegiado haviam sido depostos e degolados no pátio da governadoria.

As cabeças dos representantes que defendiam sua gente estavam no chão do pátio, quando de sua chegada. Acertadamente, supôs e rápido que seria o próximo na degola.

Alertou o vilarejo e a ajuda que pôde obter, foi a companhia de mais quatro cavaleiros. Os demais ficaram para ajudar na fuga dos moradores da vila. Logo haveriam soldados por perto. O tempo era cada vez mais curto.

Rupert sabia das diferenças entre os povos. Antigas e difíceis. Mas estava estupefato com a situação. Parecia estar dentro de um grande pesadelo, sem hora para acabar. Só pensava em retornar logo a Algueroz.

Nas proximidades da vila já era possível observar grossas nuvens de fumaça. Hegel parecia ter levado adiante seu comportamento insano e criminoso. Mais próximo puderam ver que parte das tropas de Hingel havia se dirigido à vila, deixando guarnição menor em volta do casarão de pedra.

Prevalecendo-se da força bruta dos Canidae, investiram ferozmente contra a guarnição que fazia a guarda do casarão, desbaratando a tropa. Os remanescentes se puseram em fuga. Pouco mais de trinta pessoas estavam retidas no casarão e fugiram em seguida, antes que o grosso das tropas pudesse retornar ao lugar.

Com um punhado de defensores faziam uma retaguarda para que os restantes pudessem fugir, enquanto a vila era saqueada e roubavam o pouco que havia.

A caminhada se estendeu sem que houvessem perseguidores. Buscavam as montanhas ao norte da região. Baluartes elevados de incontáveis povos de plano físico, em fuga na história ruidosa das humanidades universas e primitivas.

— Os batalhões Rupert, os batalhões! — Gritavam os mais eufóricos e coléricos ao verem Rupert se aproximar. Fora comandante de um dos três batalhões formados para o exército, sob as ordens do Governo Colegiado, que já não existia mais.

Uma seleção dentre os mais fortes e hábeis Canidae. Em combate, eram perigosos. Valiam por quatro soldados humanos, sendo por isso muito respeitados.

Os caras de cão e corpo de homem constituíam uma tropa a se evitar. Podiam ser grandes, fortes e destemidos, mas seriam capazes de tomar conta de uma creche, onde angariavam a confiança e o carinho das crianças humanas.

A tal ponto que quando as crianças cresciam, não conseguiam entender o preconceito e as demonstrações de desprezo contra eles, da parte de seus próprios pais.

Aquele povo, detentor das bençãos da lealdade, da brandura e da atitude pacífica, havia chegado na condição de pacificadores. Os humanos os viam como invasores.

O segmento humano da nação estava dividido. Nem todos apoiavam o golpe de estado, muito menos a expulsão dos Canidae. Não os viam como animais, mas como seres inteligentes e capazes. A despeito das tentativas de certos teóricos, estudiosos dos canídeos, em classificá-los como uma sub-raça e interessados em diminuí-los.

Sua prosperidade, enriquecimento e lealdade, jogaram por terra esse discurso obtuso. Porém, abriu as portas para a inveja e o rancor de alguns, como Hegel. Por estúpidos que fossem, mas influentes junto aos mercadores e produtores humanos. Estes temerosos de perder a disputa pela produção de carne, leite, lã, algodão e tecidos, preferiram apoiar Hegel.

Rupert sabia que uma caminhada extensa estava se delineando no horizonte. A ascensão de sentimentos mais nobres teria, primeiro, que suportar o orgulho e a ganancia dos humanos.

Os pequenos grupos se tornaram uma multidão em fuga, rumo às montanhas. Logo os preparativos para obtenção de recursos para alimentos, máquinas e armas iriam começar.

Os Canidae abririam caminho com o instrumento evolutivo mais antigo que existe. A guerra, a destruição e a exaustão que sempre provoca. Antes que novos valores pudessem ser somados àquela humanidade. Restava saber por quanto tempo.

O amor de Deus exige mensageiros, não importando a espécie.

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