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histórias, crônicas e contos

Sob a sombra e a luz

                                                                           

                                                                                                                                                Foto: Lucia Barreiros, lubasi por Flickr 

Por: Antonio da Mata

Por um momento circulava de maneira até despreocupada. Observando detalhes pelo caminho, cruzando de uma rua para outra. Subindo lentamente, chegara na Rua Monteiro de Souza, onde se encontra com a Av. Lourenço da Silva.

Encontrou bastante facilidade para atingir a Rua Tamandaré. Como já findava o dia e muita gente se retirara para seus lares, o centro antigo da cidade estava aberto a quem quisesse transitar à toa por ele.

Se de um lado era solitário, por outro, era mais tranquilo; permitindo seu passeio de final de tarde sem maiores transtornos. Era recém-chegado no lugar e apenas fazia uma passagem de reconhecimento. Afinal estava em um local que lhe era por demais diferente e novo.

Foi providencial a colocação de passarelas, tanto na Rua Tamandaré, mas também na Rua 15 de Novembro, e no início da Avenida Eduardo Ribeiro também.

Assim, mesmo estando aquele trecho da cidade submetida a uma enchente, era possível circular pelo local. Era interessante observar aquele monte de gente circulando naquelas pontes improvisadas, como pudera constatar pouco antes.

Procurou situar-se melhor dentro de tudo aquilo que estava observando, ocorreu-lhe uma ideia simples e útil. Atendendo seu interesse de recém-chegado, encontrar alguma coisa para comer.

Enquanto fazia isso, notou pelo caminho, algo que prendeu sua atenção. Eram os animais que ficavam sozinhos vagando pelas ruas, tão solitários quanto ele próprio. Eventualmente se reuniam, para logo depois se afastarem de novo. Isto de certo modo o agradou, tanto pelo vagar como pela solidão.

Fazia considerações sobre aqueles bichos, imaginando se tivesse que escolher um que por ventura o agradasse. Não gostaria de um que fosse lá muito sujo. Também, que não fosse muito magro, desses com cara de bicho abandonado.

Imaginava um cão, no melhor estilo “cachorro de madame”. Um animal que fosse de boa forma. Aquele vai e vem pelas ruas do lugar, bem que haveria de lhe deixar frente a frente com aquilo que imaginava.

Ao invés de ficar rodando pelas ruas todo perdido, feito cachorro sem dono; mudou de plano. Resolveu encontrar um lugar onde pudesse tranquilamente aguardar pela sua passagem.

O trânsito de pessoas já havia diminuído bastante, isto em função da hora. Em breve os vira-latas daquele lado da cidade haveriam também de querer se recolher. Agora, era um detalhe importante, pois não estava nem um pouco interessado em sair atrás de cachorro.

De mentalidade prática, escolheu a confluência entre as pontes da Rua 15 de Novembro, Avenida Eduardo Ribeiro, no prolongamento rumo à Avenida Floriano Peixoto; margeando o antigo prédio da Alfândega.

Junto à esquina, bem no início da Eduardo Ribeiro há um poste, a partir do qual pode-se avistar as passarelas. Era mais que suficiente para aguardar o seu escolhido.

Não precisou esperar em demasia. O crepúsculo já anunciava o fim daquela tarde de sábado quando o animal de sua atenção se aproximou, vindo da Avenida Floriano Peixoto. Era exatamente aquilo  que esperava.

Animal relativamente limpo, a despeito do abandono, e de aspecto ainda sadio e robusto. Sinal de que alguém certamente poderia estar lhe alimentando. Existem pessoas que são assim, mesmo que não adotem o animal; colocam vasilhas na rua onde possam se alimentar. Não é que foi uma boa ideia?

Isto lhe convenceu de que também era portador de uma boa iniciativa, e que de repente poderia ter encontrado aquilo que poderia se tornar relevante. Aquele tipo de situação em que um, ajuda o outro; tudo em defesa da vida e do meio ambiente; é claro.

Aproximou-se lentamente sem ser notado. Não queria assustar, isto não faz parte da sua forma de enxergar o mundo que lhe rodeia; assim como aos demais. Desejava dar ciência de sua presença no último momento.

Uma surpresa, é isso! Como quem oferece uma grande surpresa, e não um enorme susto. A ideia de assustar não lhe era natural. Ao se aproximar o seu cão, dirigiu-se a ele com cautela, no intuito de surpreendê-lo com a sua presença. Tal como quem afirma satisfeito, “então é você, finalmente o encontrei”.

 

Foi repentinamente que sentiu qualquer coisa brusca; indevida e áspera a lhe envolver o pescoço. Tomou um susto tremendo, enquanto aquela coisa, enviada por algum demônio de todo desconhecido, lhe apertava tremendamente até quase sufocar.

Ante o susto, fez um movimento rápido, de modo a dobrar o corpo e buscar se desvencilhar daquele demônio infernal. Ato contínuo sentiu mãos fortes a querer lhe prender. Lhe esticavam com força, imobilizavam. O pavor tomou conta de todo o seu corpo.

— Juarez, segura perto da cabeça, não solta de jeito nenhum.

Dizia uma voz alto e bom som.

— Ronaldo e Levi, segurem no meio e junto da cauda. Ela já está no enforcador, só não deixa se enrolar. Segura firme, vamos retirar o bicho de dentro d’água.

— Hein, sargento. Quando ligaram avisando que havia uma sucuri circulando no centro da cidade, pensei logo que fosse um trote. Mas o caboco, insistiu tanto...

— Deu seu nome, identidade e endereço. Falava com tanta segurança sobre o bicho, que fui obrigado a acreditar. Não é que era verdade? Dizia Juarez, achando graça daquela ocorrência, tão bizarra, e agora tão urbana.

Campos, o sargento, ajudava a imobilizar o animal de cerca de seis metros de comprimento e retirá-lo de dentro d’água. Tomava cuidados no sentido de não o ferir na refrega.

Precisava fazer isto sem se descuidar da segurança.  Foi sem dúvida, a ocorrência marcante daquele final de tarde.

Um grupo de transeuntes acorreu ao lugar com seus celulares em punho, de modo a registrar aquele evento inusitado.

Estavam loucos para obter uma ótima sequência de gravação. Sonhando de antemão com um milhão de “views”.

De preferência antes da meia-noite; e com um pouquinho de sorte, saindo em edição nacional no jornal das oito.

Outros, observando o tamanho da bicha, e ao terror que provoca nos homens, apelavam aos policiais:

— Mata ela seu guarda; isso é perigoso, mata logo!

— É seu guarda; come ela no terçado! Aproveita que ela tá presa!

A equipe, treinada e consciente tanto do risco, mas também do seu papel, apenas ouvia aquele monte de bobagens, sem se importar muito. Achavam graça daquilo tudo.

Foi algo singular como a serpente, ora se escondia sob as sombras, ora se ocultava sob o reflexo da cidade nas águas. Agora, vai contar isso lá no sul para ver se alguém acredita.

Imobilizado o belo animal, foi posto dentro da viatura do Batalhão de Polícia Ambiental; para ser conduzido a quem de direito. Em condições de segurança para o animal e para a própria equipe, que, sem alarde chegou, e em seguida; sem alarde se retirou do local.

Mas afinal, e o cachorro? Aquele vira-lata bonitão; de bom aspecto e barriga cheia?

Bem, presenciou aquilo tudo, não entendeu nada, e foi embora.

Moral da história:

Nem sempre para se viver, se precisa de um milhão de “views”, basta uma alma caridosa e de boa vontade, e uma vasilha com um pouco de ração.

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