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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Sobre o mar

                                                            

                                                                                                                                        Foto: Petr Kratochvil

Por: Antonio Mata

Era só o tempo de chegar em casa, tomar uma chuveirada, comer alguma coisa rapidamente e seguir para o alto do pico nordeste. Na realidade um pequeno platô, uns 150 metros, logo abaixo do pico do morro.

O pico também se erguia suavemente. Todavia por ser estreito, não dispunha de espaços adequados para se fazer uma plataforma de lançamento e demais instalações de apoio. Assim o platô era mais indicado.

O local fora escolhido não só em função da localização. Conjugava fatores importantes como direção e velocidade do vento predominante, a altura do paredão, uns 400 metros abaixo. A ausência de prédios e construções adiante, com o terreno íngreme circundado por floresta.

Tudo isso levou os entusiastas do voo livre a construírem ali uma rampa utilizada nos saltos de asa delta e para os adeptos do paragliding. Este último era a onda, a vibe de João Naruto. Assim chamado por razões óbvias, assim dizia ele próprio.

A estrada de acesso ao local, contornava a elevação, cruzando uma área de reflorestamento. Fácil de identificar pela uniformidade das árvores plantadas em espaços regulares e todas da mesma espécie e do mesmo tamanho.

Sem falar naquele cheiro de banheiro limpo, que se estendia a meio caminho da rampa, e que no início, chamava tanto a atenção do João.

Subia adiante com o equipamento fixado atrás da motocicleta. Achou por bem chegar particularmente cedo. Tinha deixado o serviço em um carro por aplicativo antes das seis horas para não atrapalhar sua chegada na rampa.

Deixou tudo pronto com antecedência. Só não prestou maior atenção em si mesmo. A noite em claro e o cansaço natural que isso costuma provocar. Até nos maiores entusiastas.

Verificou o paraquedas reserva; o capacete; luvas e óculos de sol; faca e bainha; a roupa de voo; os mosquetões e o selete. Ligou o rádio comunicador, o GPS e altivariômetro. Tudo em ordem, tratou de estender logo o velame.

O vento suave, em torno de 10 km/h, soprando da terra, ajudaria a empurrá-lo na direção da praia. Bastaria uma curva suave para percorrer o litoral confortavelmente instalado, se elevando entre 2 e 2,5m/s. A mil pés de altura (300m) já se tem uma visão privilegiada do litoral.

A temperatura é bastante agradável. Resolve subir mais um pouco. O céu estava coberto com extensa camada de nuvens cirrus. Uma camada de altocumulus era visível sobre o mar, porém ao longe, além de poucas formações de estratocumulus. Contudo, o dia estava ainda claro.

Avaliou e deduziu rapidamente que seria possível cumprir o seu voo, o qual tinha em mente durar cerca de uma hora ou pouco mais que isso, sem maiores problemas.

O suficiente para fazer valer a pena o esforço de estar ali. Era praticante do parapente a pouco mais de seis meses, contudo, havia se tornado a sua coqueluche.

A paisagem de céu; mar; a linha de arrebentação; praia e os coqueirais lá embaixo convidavam João, o Naruto por si mesmo, a relaxar cada vez mais. Cada vez mais profundamente.

O altímetro indicava que João continuava subindo. Mais que isso, impulsionado pelo vento, que aumentava lentamente de velocidade, o parapente apontava ligeiramente para o mar. Fosse por inclinar levemente na direção deste, fosse por conta da linha do litoral, que fazia uma suave curva no sentido contrário.

Com o vento nos ouvidos, o ar mais frio, a sensação de relaxamento, tudo somado com o cansaço da noite de trabalho, João cochilou. Era, mas não era o sono dos justos. Era aquele sim, o sono dos incautos e dos desavisados.

O paraglider prosseguia em seu voo cego e apagado. Ao redor as condições de tempo no litoral, não mudavam assustadoramente. Todavia, para quem está em um voo de parapente, a fragilidade do conjunto é um fato.

Logo a velocidade de voo indicada, estava cruzando os 45 km/h. sem se dar conta do que acontecia, João havia se deslocado na direção do oceano, fazendo um ângulo, que naquele momento era algo como 35 graus com a linha do litoral.

Bobagem esperar que alguém o chamasse pelo rádio. Afinal tinha resolvido sair muito cedo e não havia ninguém no morro que soubesse do seu voo. A menos que alguém prestasse atenção em sua motocicleta, no pátio de estacionamento.

A temperatura já havia caído cerca de dez graus, enquanto João, de abrigo e luvas por debaixo do macacão, se embalava, cruzando os 1500 metros acima do mar. Os 15 graus se lhe mostravam muito confortáveis.

Em dado momento, João abre os olhos. O que viu foi uma camada extensa de estrato-cumulus abaixo de suas pernas. Acima, outra cada extensa de altocumulus.

No meio, como que dentro de enorme sanduiche de nuvens, estava João ainda semiacordado. A paisagem agora era esbranquiçada e escura. Uma visão ameaçadora para quem ainda não havia se localizado.

Por conta da sombra oferecida pelas camadas, agora extensas, de cirrus e alto-cumulus, tudo estava mais escuro, escondendo a luz do sol.  Se a temperatura não o ajudava a acordar, o mesmo não se podia dizer do vento, já se aproximando do 65 km/h.

Havia derivado mais ainda na direção do oceano. João precisava acordar de uma vez e pensar rápido no que poderia fazer para retornar à terra.

João acorda de vez. Procurava pensar no que estava acontecendo. A julgar pelas formações de nuvens muito densas e pelo vento, deduziu que havia sido puxado para dentro de uma área de instabilidade. Consultou os equipamentos, o GPS e o altivariômetro.

Logo entendeu que estava sobre o mar e afastando-se para sudeste. O altímetro indicava 2100 metros. Nunca havia subido tanto. Não era uma altitude incomum para um parapente, não fosse o cenário ao redor, pouco indicado para um entusiasta.

O GPS mostrava que havia penetrado em mar aberto mais de 50 km. Muito preocupante para quem está acostumado a voos bem mais curtos e tranquilos.

Manobrou para a direita, de tal modo que o parapente parasse de adentrar o mar. Assumiu uma proa que pudesse ajudá-lo a voltar para a terra. Não seria assim tão fácil com a velocidade do vento lhe puxando para sudeste.

Resolve descer rapidamente, para a faixa dos mil metros. Executa a manobra sem maiores problemas. A dificuldade real, sabia que era manter a calma e não se deixar levar pela situação adversa. Daquilo que podia observar e se orientar pelos equipamentos, a situação era de risco, mas não de desespero. Ao menos era o julgamento de Naruto.

Mesmo estando a mil metros, uma camada compacta de nuvens estava abaixo dele. Os estrato-cumulus enfeitavam os níveis inferiores e não permitiam a visão do solo. Ou melhor do mar. Resolve continuar descendo para 500 m.

Então, enxergava a camada de estrato-cumulus logo abaixo como um grande tapete, prestes a tocá-lo com os pés. Decide continuar descendo lentamente. Penetra na massa de estrato-cumulus.

Dentro da nuvem só enxerga sombras esbranquiçadas, além de sentir as gotículas d’água que tocam o seu rosto, naquela espécie de sauna fria. A sensação de impotência é enorme.

Evitava se condenar, ainda que soubesse completamente da bobeira fenomenal em querer saltar cansado e com sono. Sabia que já tinha feito tudo errado, por um mero capricho. Já não adiantava lamentar. Tinha que sair dali.

Cola os olhos no altímetro, a única coisa visível de verdade naquele momento. Ao cruzar os 180 metros, percebe sensível melhora na visibilidade vertical. Entrementes, continua ainda esbranquiçado e não define direito nenhuma superfície.

Deu-se conta que havia deixado o estrato cumulus e agora estava dentro de uma camada de stratus. Desce a 100 metros, sem obter a visão que gostaria.

De repente, um pequeno buraco. Um daqueles que salva a história toda. Já salvou incontáveis pilotos perdidos, no passado e agora salvava João Naruto. Pela primeira vez, desde de que adormecera naquele colchão de nuvens, voltou a ver o mar. Este estava a uns 80 metros abaixo.

O buraco se fecha prosseguindo com a camada de stratus. Decide planar, descendo lentamente por precaução. O GPS ainda não indicava proximidade com a terra.

Então prossegue pouco acima dos 50 metros, enquanto tentava enxergar o mar. Nada visível, a sensação de impotência prossegue. Já havia se passado mais de duas horas, desde que retornara de seu sono nas alturas. Enfim, outro buraco nas nuvens. Menor que o anterior.

O cansaço e o esforço para manter a atenção nos instrumentos, na manobra e ao redor cobravam seu preço. Dores intensas no pescoço e na coluna, devido a posição curvada.

O rosto molhado de gotículas d’água, ora incomodavam, ora despertavam. Não bastasse a situação, sabia que ainda não havia terminado. Nada do GPS indicar proximidade com a terra.

Começava a duvidar do mapa em preto e branco no cristal líquido, mostrando o contorno do litoral. Porém, é tudo o que dispõem. Pensa em outros tempos, quando não existia nem isso. Nem em aviões, quanto mais.

Tudo é só efeito da imaginação, especulação inútil. Volta a colar os olhos nos instrumentos. Quando então, pôde notar que a linha do litoral se aproximava. Enfim, estava dando certo. Estimou em uma hora, ou uma hora e meia, para chegar no continente.

Queria descer mais, porém tinha receio de uma manobra indevida, uma rajada de vento, e de repente ser arremessado nas águas. Já havia comprado tantos equipamentos e tantos badulaques. Descobrir que ainda faltou adquirir um colete salva-vidas, seria o fim da picada e da história.

Finalmente dava para enxergar na tela de cristal líquido, que o parapente estava prestes a tocar na linha do litoral. Retornaria ao controle visual em breve. Retornaria sim, e muito alegre, se pudesse ver alguma coisa.

Seguiram-se mais quinze ou vinte minutos, João Naruto, herói de si mesmo tocava a linha do litoral. Definitivamente, foi só isso. Continuava não enxergando coisa alguma.

Desavisado sim, mas burro não. Ao Sul, o litoral tanto apresentava praias lindíssimas, como também perigosas formações rochosas. Tinha que enxergar algo e sair daquela loteria.

Precisava descer mais um pouco, cautelosamente para enxergar o mar. O risco da rajada de vento teria de ser relativizado, pois precisava enxergar. Já não surgiam mais buracos nas nuvens.

Desceu a cerca de 20 metros apoiado no altímetro. Ainda estava dentro de uma margem de erro bastante satisfatória, caso o mar estivesse encapelado, agitado. Prosseguiu por mais 10 minutos, agora fazendo uma curva mais acentuada na direção do litoral.

Repentinamente, sentiu o spray das águas nos pés e espirrando para os lados. O altímetro havia zerado rapidamente. Havia sido empurrado para baixo, sem o saber.

Levantou os pés e sentiu que ainda planava, torcendo para não ser arremessado novamente para baixo. Via a água escura e isto era tudo. Um olho buscando divisar adiante. O outro colado no altímetro. Rezava por alguma indicação de ascensão.

O equipamento indicou cinco míseros metros. O que importa é que havia sensibilizado o sistema e parecia estar subindo lentamente. Isso era importante. A terra já vai aparecer.

Aliviou o ângulo de contato com a linha do litoral, para poder costear. Não podia esquecer as rochas no caminho. Estava exausto, porém lúcido o suficiente para conduzir seu parapente.

Repentinamente delineia os contornos escuros à sua frente. É um paredão rochoso. O altímetro indicava 10 metros e já podia ver o mar. Já podia ver tudo abaixo de dez metros. Prosseguiu buscando um lugar para descer. Ainda permanecia perigosamente sobre as águas.

Notou que o altímetro subia e descia várias vezes da faixa dos 10 metros. Divisou o paredão à sua direita. Não era elevado, aparecia na altura de seu ombro direito.

Fez um ligeiro esforço para subir mais um pouco. O controle era difícil, o vento atrapalhava. Era mais fraco, mas ainda o puxava para o mar. Decidiu derivar para a direita a aproximar-se das rochas ao seu lado. Podia vê-las com clareza, estava bem ao seu lado, a velocidade subira para uns 35 km/h.

Quando sentiu que se elevava novamente, arremessou na direção do que parecia ser arbustos, para além das rochas. Aproxima rapidamente. Sente o parapente descer, sem muita margem para manobrar. O controle é difícil. Vai chocar-se com as pedras.

Instintivamente levanta as pernas. Poderia quebrar as pernas, contando que salvasse a vida, estaria no lucro e tudo bem. Reduz a velocidade.

Cruza as rochas com o topo na altura de suas pernas encolhidas. O parapente faz menção de subir ao sabor do vento, mas Naruto não quer nada disso. Atarantado, puxa os cordões que controlam o velame, interrompendo o planeio e então, cai.

Algo como quatro ou cinco metros não é lá grande coisa. Porém, por cima dos arbustos, acaba chocando-se em um galho com um dos pés. Tudo bem, amorteceu a queda. Mas também fez João tocar o solo com apenas um dos pés, e todo torto.

Solta o velame preso nos arbustos, se põe de pé e avança, capengando por uns três ou quatro metros. Caiu no chão ali mesmo. Na verdade, deitou-se. Com o tornozelo deslocado, se ajeita e adormece.

Se vai inchar ou não, não ligou muito. Havia viajado por mais de cinco horas. Agora era a vez do bem-vindo sono dos justos e dos exaustos. João, o Naruto de si mesmo, estava vivo e em terra.

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