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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Soprados ao vento

Por: Antonio Mata

Até onde pôde notar, as faixas e manchas em tons castanhos foram sendo substituídas por uma estreita linha branca. Como que a deixar a marca, um limite.

Muito extensa, até onde não deixava mais se ver. Foi quando tudo ficou azul reluzente e depois mais escuro, até o negrume chegar. Sem outra possibilidade, apenas assistia.

Então a imensidão azul prosseguiu, sempre mais adiante. Parecia tomar conta de tudo. Já não via mais nada ao redor. Era só o azul e o frio, fosse noite, fosse dia.

Quando menos esperava a linha branca tornou a aparecer, bem adiante. O castanho também voltou, como uma mancha. Dessa vez era pequena em meio a imensidão azul.

Lá foi depositado, como quem assiste o final de grande viagem.

Curioso expansivo e desbravador. Esperava, mesmo sem pensar nisso, que o tempo avançasse e trouxesse os sonhos ao seu devido lugar. Estes, logo poderiam trazer a realidade.

Tanta gente saía a remar nas grandes canoas. Até os ventos cruzarem os mares. A vela tosca era aberta. Para onde seguiam, só podia imaginar. Da beira do mar aguardava sua vez.

Nem por isso estava parado. Aprendera a reconhecer sementes. As épocas de plantio, a forma e quantidades a se distribuir no terreno. Para que não houvesse desperdícios. Assim se podia levá-las nos barcos.

Razões importantes norteavam aquelas ações. Muito atentos à possibilidade de se encontrar terras suscetíveis ao povoamento na imensidão das águas.

Descobriram a possibilidade de se proteger a vegetação e os cultivares dos ventos intensos que varriam os terrenos. Também aprenderam a evitar o excesso de sol. Tanto quanto a guardar a água da chuva. Eram os instrumentos necessários a expansão e contra uma superpopulação.

Pacientes, operosos e dedicados. Sabiam que dominar os ventos era algo a exigir trabalho permanente. As muretas e cercas de adobe, pedras, galhos, bambus. Formas de sustentar o terreno. Criando faixas protegidas para se plantar.

Aos poucos, estação após estação, surgiam pequenos bosques. Que por vez ajudavam a proteger mais terras. Assim, outra aldeia podia se estabelecer no lugar. Uma geração preparava a terra em que a outra iria viver.

 Chegou então, o tempo de navegar e expandir seu mundo insular. No caminho, a descoberta de outros povos, outras gentes. O momento de Liko encontrar seu próprio destino.

 

Rumores de guerra e fome

— Para muito além, de onde as canoas alcançam, veio a notícia.

— Que tipo de notícia? — Indagava a seu tio o jovem Liko.

— Notícia de morte.

—Por causa do quê?

— Não sei direito. Parece que o lugar está se perdendo. Uns apareceram lutando com outros de lá mesmo. Quando isso acontece, é porque já surgiu a fome. Se deixar, depois vem a morte. Acho que cresceram muito. Havia muita gente, gente demais. Não sei direito.

— Acha correto que levássemos alimentos até eles?

— Se todos concordarem será muito bom. Será que sabem cuidar da terra? Preparar a terra, proteger dos ventos, escolher as sementes e saber esperar.

— Não poderíamos ensinar? Eu poderia seguir com o grupo.

— Vejo que está disposto a trabalhar. Se conseguir fazê-lo será uma grande conquista. Lembre-se de que é muito distante. Vão precisar de navegadores experientes. Na leitura das estrelas, dos ventos e das correntes do mar.

Reuniram o conselho dos anciões para se tomar uma decisão. Na ocasião prevalecia a opinião de Lanakila, o vitorioso.

— Essa ideia de se levar comida para gente que nem ao menos se conhece é absurda. Estes estoques são para o nosso povo. Eles que plantem sua própria comida. Não é só isso... — Lanakila prendia a atenção dos demais com seus argumentos.

— Se estão querendo se matar, o que os impediria de descobrirem o caminho até nós, fugindo da fome e então roubarem nossas ilhas? Atacariam nossa gente trazendo a destruição, a guerra e a morte até nós. Quem irá responder por isso? — O argumento do ancião era verdadeiro demais para ser menosprezado. Já se formava esta decisão, quando Alika, o guardião da ilha, tio de Liko, pediu para falar.

— Tudo o que diz Lanakila é expressão de toda a sua experiência no cuidado dos povoamentos e na navegação. Uma coisa muito ligada e dependente uma da outra. Só queria salientar que, se pudermos ajudar em um momento de dificuldade, de um possível inimigo podemos fazer um amigo. — Então completou.

— Deixemos que um pequeno grupo de homens leve um pouco de alimento. Mas, permitam que meu próprio sobrinho vá junto e lhes ensine a produzir sua própria comida. Seguiriam em um ou dois barcos. Isto seria suficiente.

Todos aguardavam a decisão dos anciãos. Lanakila ainda falou.

— Concordo se for apenas um barco, só uma canoa e três homens. Um deles será Liko. Não receberão navegantes mais velhos. Levem mais dois moços.

Com a anuência de Lanakila, a despeito do pequeno e pouco experiente grupo e dos poucos alimentos disponíveis, os anciãos concordaram com a proposta.

 

Superstição e fé

No dia aprazado Liko, o broto que nasce, Keone, como a areia e Nalu deixaram sua ilha natal rumo à mais distante dentre as viagens de Nalu, a onda. O navegador mais experiente do grupo.

A lua cheia apareceu no céu e sumiu de novo. Naquela noite, já estava de volta e iluminava as águas do mar mais uma vez. Quatro dias depois, chegaram ao destino.

Foram recebidos com curiosidade e uma certa hostilidade. Liko, atento a tudo tratou de oferecer uma parte dos alimentos, enquanto solicitava que fossem encaminhados ao líder local.

Não foi rápido e nem sem dificuldades, porém, a barreira linguística ia sendo superada, sempre acompanhada de gestos e sinais. Enquanto o vocabulário aumentava.

Na companhia de Keone e Nalu, Liko pôde lhes mostrar como superar as dificuldades na ilha para poder produzir alimentos. Dessa forma, tão logo se compreendeu, passaram a receber todo o apoio. Levantaram as barreiras contra o vento, com todos os materiais disponíveis. Prepararam a terra e finalmente realizou-se a semeadura. Agora era preciso aguardar.

Na companhia de Etana, o alto e forte, um dos ilhéus que conhecera, pôde obter algumas respostas a observações que fazia e questões que acabava formulando.

Uma era muito relevante.

— Etana, por onde andei, desde que cheguei aqui, não vi um único bosque ou árvores de pé. O que aconteceu aqui?

— Muito simples, foram todas cortadas. Era preciso aplacar os deuses. Para que a comida voltasse e tudo ficasse em paz novamente. Vocês aqui têm a ver com os deuses.

— Vocês acreditam que os deuses nos enviaram?

— Sim, de que outra forma poderia ser? As pessoas já estavam com fome. Melhor ainda, vamos deixar o povo do vento passando fome e nós não.

— Povo do vento? Tem mais gente aqui?

— Tem sim, o povo do vento é assim chamado porque pegam os ventos de frente em suas terras. Aqui, deste lado da ilha o vento é menor. Foi por isso que os deuses mandaram vocês para esse lado da ilha e não para o povo do vento. Entendeu agora?

— Não sei se entendi Etana. Espero que seus deuses tenham razão e queiram de fato lhes ajudar.

— Venha comigo, vou lhe mostrar uma coisa. Na realidade são várias coisas.

Depois de uma caminhada não tão longa chegara a um magnífico local, cheio de estátuas enormes voltadas para o mar. Tudo era visto à meia distância para não chamar a atenção de terceiros.

— Veja, são os Moais, os guardiões da ilha. Quanto mais guardiões tivermos, melhor. A ilha estará mais protegida.

— Como fizeram tudo isso? São muito grandes e é muita coisa.

— Sim, era preciso de muita madeira e era preciso que fossem muito grandes.

— Ainda existem árvores aqui?

— Eu não sei, mas elas estão desaparecendo.

De volta a aldeia, Liko reuniu-se com Keone e Nalu.

— Há outra população do outro lado da ilha. Parece que ainda não sabem da nossa chegada. Eles parecem estar dominados por antagonismos e isso tem a ver com seus deuses. Mandaram cortar as árvores para fazer estátuas gigantes. Só que a madeira está acabando. A terra desprotegida está sendo varrida pelo vento. Do outro lado se pega o vento principal de frente.

— E agora Liko, o que você acha? — Perguntavam os dois.

— Precisamos convencer o povo daqui desse lado da ilha a trabalhar junto com o povo do vento. Se houver um ataque antes de fazermos a colheita, estaremos perdidos. É melhor conciliar do que confiar na sorte. Temos de convencê-los.

Os homens são então reunidos, ante ao chamamento de Liko e Etana. Já todos os homens presentes, Liko expõe as dificuldades e a urgência de se tomar uma decisão. Ao concluir sua fala, a resposta veio em coro.

— Não, não, não! Morte ao povo do vento! Não merecem viver foram eles que começaram a disputa de Moais. Merecem morrer sem terem o que comer. — Todos gritavam em uníssono. Liko não encontrou nenhum apoio e ainda despertou os rancores e a selvageria daqueles ilhéus. Sequer sabia o que o povo do vento pensava. Continuaria sem saber.

Naquela noite Liko, Keone e Nalu conversavam e pareciam desiludidos com tudo o que havia ocorrido. Pensavam em deixar o lugar e ir embora. Parecia que o velho e experiente Lanakila tinha toda razão. Agora já era tarde.

Ouviram passos ao longe.  Em meio a luz tênue da lua minguante, puderam distinguir a silhueta de dezenas de homens.

— Será o povo do vento? Se for estamos perdidos, dizia Keone.

Aguardaram por mais algum tempo até se aproximarem. Nalu abriu um largo sorriso.

— São os nossos, está tudo bem.

Contudo o que Liko observava eram homens armados de clavas, lanças e machados de pedra.

— Corram, corram, vão nos matar! Corram para o barco!

A correria desesperada valia a manutenção da vida daqueles três homens. O grupo agressor partiu em perseguição daqueles que poderiam ter sido seus melhores amigos. A ilha havia se tornado um ninho de vespas.

Na correria desabalada rumo ao único barco, Keone foi atingido nas costas por uma lança. Liko já dentro d’água, ajudava Nalu a colocar o barco no mar. Foi quando, ainda dentro d’água, foi golpeado na cabeça por uma clava, tendo morte instantânea.

Nalu, ferido nas costas, remava desesperadamente, procurando se distanciar dos agressores. Levava consigo uns poucos legumes e pouca água. Que havia levado consigo, quando os três se encontraram para conversar.

Não se soube mais de Nalu e de sua embarcação.

Na ilha, logo na manhã seguinte, o povo do vento temendo que na gritaria da noite recente, estivessem pedindo a proteção dos deuses para um ataque, adiantou-se e decidiu atacar primeiro.

Naquela manhã toda a plantação foi queimada, a aldeia principal foi invadida e destruída. Assim, os homens que poderiam ajudá-los estavam mortos ou desaparecidos. Nunca conheceram Liko, Nalu e Keone, ou souberam de seus propósitos.

A ilha entrou em crise com a maior parte do povo morrendo de fome. Ficaram apenas os Moais, os guardiões da ilha. Entre a conciliação e a destruição, preferiram a segunda opção.

Os polens soprados ao vento, sempre semearão a vida por onde passarem e os ventos os conduzir. É de sua natureza para a sustentação do equilíbrio da vida. Já as decisões e as consequentes responsabilidades por seus atos, estas serão sempre dos homens.

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