Foto: Wikimedia
Por: Antonio Mata
O garoto nunca soube propriamente como foi que tudo aquilo aconteceu, e a razão pela qual viviam se mudando para lugares diferentes. Não adiantava perguntar, não lhe diziam.
Do pouco que sabia, pois era repetido com frequência, Hapal entendia que havia muito medo de serem atacados. Só não sabia pelo que e como. Da feita que era algo perigoso, simplesmente atendia os chamados de sua mãe, sem maiores preocupações.
Aprendera a enxergar com um mínimo de luz, quase na escuridão. Lamparina feita em pedra sabão acesa, só o suficiente para encontrar alguma coisa e depois se apagava, pois era muito valiosa. Havia pouca gordura animal para queimar.
Por outro lado, quando se viam ao sol, era estonteante e ficavam temporariamente cegos, até se acostumar com tanta luz. Era um momento de grande vulnerabilidade, pois andavam de cabeça baixa. Recolher lenha e betume, estes sim, eram ofícios femininos que lhes permitiam se afastar da entrada das grandes galerias.
Foram poucas vezes, mas já havia presenciado paisagens de grande beleza. Ainda que sua mãe nunca o deixasse se afastar mais que quarenta ou cinquenta passos. O que só era permitido a pequenos grupos de homens armados. Estes podiam se afastar. Normalmente eram caçadores e coletores de alimentos. Pensava consigo mesmo: "um dia vou crescer e vou sair lá longe com os homens".
Era comum que as mulheres se reunissem junto à entrada da grande galeria. Ali tinham luz o suficiente para costurar, utilizando agulhas de osso. Enquanto as mulheres do grupo costuravam ou cuidavam de outros afazeres, como preparar comida, por exemplo, outra era encarregada de entoar um cântico, enquanto prestava atenção no céu e por entre as nuvens. Era a sentinela dos céus. Não era permitido conversar ou distrair a sentinela.
Hapal tinha completado dez anos quando passou a acompanhar sua mãe para buscar lenha para o fogo, considerado um ofício feminino. Levaria mais um ano, antes que pudesse acompanhar os homens em pequenos afazeres. Como aprender a manejar o arco e flecha para caçar gafanhotos.
O grupo de mulheres e algumas crianças havia se afastado da entrada da galeria, não mais que uns 1500 metros. Estavam ocultos por debaixo das árvores, quando Hapal presenciou pela primeira vez, o motivo de todo aquele medo. O mesmo do qual, só conhecia por histórias de seus pais e dos demais.
O que assistiu, com sua mãe lhe puxando para baixo, na vegetação, foi o somatório de todas as narrativas apavorantes, desde o seu nascimento. A sentinela começou a gritar:
— O fogo, o fogo do céu! É o fogo do céu! Gritava sem parar.
Por mais que gritasse, os mais jovens pareciam não entender. Ficaram embasbacados olhando para cima, procurando delinear no fundo azul, o que de fato estava se aproximando.
— Dragões, dragões! Corram daí depressa, vão matar a todos! Todos para dentro, quem ficar vai morrer!
Quando os mais velhos passaram a gritar também, um frenesi tomou conta de todos que estavam próximos da galeria.
Só não foram rápidos o suficiente.
O último terço, cerca de 60 pessoas que se atrasaram, foi fulminado ali mesmo envolto por uma nuvem de fogo. Ao correrem todos ao mesmo tempo, a entrada, com não mais que uns quatro metros de largura, se tornou estreita demais.
Hapal presenciava tudo estupefato. Todos em silêncio, torcendo para não serem vistos. Depois que tocaram fogo na entrada da galeria, passaram a atirar bolas na direção da entrada. Estas quando chegavam ao interior, explodiam levando o fogo mais adentro, como a perseguir os fugitivos.
Pareciam pássaros de grande tamanho, quando sobrevoavam o local, buscando mais vítimas. A imagem era assustadora. Agora o pequeno Hapal compreendia o porquê de todo o medo. Era por isso que viviam dentro das galerias.
Terminado o ataque, Hapal, sua mãe e os demais, deixaram o local onde estavam e buscaram o ponto de entrada. O cheiro de carne queimada era nauseabundo. Pessoas chorando, outros gritando. Ao todo foram 84 mortes e dezenas de feridos.
Com o passar dos dias, as notícias chegavam de outros pontos, de outros trechos daquela enorme sequência de túneis interligados. Haviam realizado ataques em pelo menos 12 pontos de acesso diferentes. Já os conheciam. Por mais que construíssem novas entradas, camuflassem tudo e obstruíssem as antigas, eles voltavam com a mesma violência espalhando o mesmo pavor.
— Foi assim que perdemos seu pai e seu avô, Hapal. É assim que somos mantidos aqui embaixo, afastados da vida lá fora. Dos rios, das cachoeiras, das matas, das flores e das campinas.
— Por que isso tudo não acaba?
— Eu não sei Hapal. Quando nasci, já vivíamos assim. Sua avó e sua bisavó também viveram do mesmo modo. Não sei por que querem nos matar dessa forma.
As palavras de sua mãe enchiam o garoto de tristeza, que traziam mais indagações. Muitos anos se passariam, antes que pudesse obter respostas minimamente coerentes.
Chegou aos vinte anos e tornara-se um caçador com aos demais homens. Junto ao fogo, as conversas prosperam.
— Antezil, como foi que toda essa história dos dragões começou?
Era Hapal se dirigindo a Antezil, o caçador mais idoso do grupo.
— Não sei exatamente. É tudo muito antigo.
— Por que querem nos matar? Quem são eles?
— Há muito tempo, fazia as mesmas perguntas. O pude saber é que houve uma grande guerra. Um grande morticínio que envolveu seres da terra e seres do céu. Parece que nós apoiamos o lado errado, ou sei lá. Meu pai e seus irmãos também viviam no subterrâneo.
— Nunca se conseguiu pegar um daqueles pássaros? De onde eles vêm? Parecem vir sempre do mesmo lado. E se nós os seguíssemos. Pelo menos caminhando na mesma direção?
— Se nos encontrarem, já sabe que morreremos todos. Não é?
Entrou na conversa um certo Hanoactil.
— Também penso que deveríamos buscar fazer alguma coisa. Isto nos persegue desde os tempos dos nossos antepassados. Estamos vivendo como ratos. Somos conduzidos de volta às ratoeiras, sempre que assim o desejam. Temos que fazer algo.
— Palavras de um tolo! Os mais moços possuem esse furor de acreditarem que podem fazer tudo, resolver tudo!
— Não Antezil. Hanoactil tem razão. Se começarmos a nos preparar, um dia poderemos fazer algo. Poderemos contra-atacar.
— Como se não se sabe onde nem quando irão atacar? Indagava Antezil.
Hapal apenas repetiu as próprias palavras:
— Se começarmos a nos preparar, um dia poderemos fazer algo. Poderemos contra-atacar.
Os jovens caçadores se juntaram a outros e mais outros. Logo dezenas de caçadores estavam idealizando seus planos. Uns bem insanos, outros heroicos, e outros bem idiotas. Todavia, uma coisa era inegável. Os caçadores do subterrâneo eram homens corajosos.
Muito se pensou e muito se fez no sentido de se enfrentar os dragões. Seriam necessários mais dois anos, antes que pudessem colocar em prática um destes planos. A ideia por si só era simples, exigindo apenas paciência, mas também destreza, aguardando que os pássaros de fogo aparecessem no lugar certo.
Até que finalmente, esse dia chegou.
Por todo o ano repetiram o mesmo ardil. Um grupo de homens e mulheres se afastava do acesso aos túneis. Porém haviam cavado pequenos abrigos ao longo da trilha, de tal modo que pudessem se esconder diante de um ataque. Em outra linha de abrigo, uma centena de caçadores montavam guarda constantemente.
Uma das mulheres, de sentinela, deu o aviso.
— Eles voltaram, o fogo do céu! O fogo do céu!
A população desabalou a correr na direção da entrada. Em dado momento, desviaram para dentro dos abrigos. Nisso os dragões desciam para iniciar seu ataque e incinerar a todos mais uma vez, como de costume.
O caçador mais idoso, Antezil, havia se convencido e conduzia o grupo de caçadores. A partir de estruturas montadas em apoios de madeira, grandes arcos horizontais foram expostos. Outro grupo, este treinado por Hapal, deitaram-se, segurando grandes arcos com os pés, enquanto aguardavam a passagem dos pássaros de fogo.
Ao se aproximarem, e antes que disparassem fogo, iniciaram o disparo de dezenas de petardos, no intuito de alcançar os pássaros. A surpresa dos caçadores veio logo em seguida. As setas que acertavam nos pássaros resvalavam, como se possuíssem um couro muito duro. Lançaram fogo sobre os homens. Nova passagem para novo ataque e nova carga de setas.
Hapal notou que dessa vez, um dos petardos parecia ter penetrado um dos pássaros. Mas, isso foi tudo. Estavam todos boquiabertos. Enquanto os homens se davam conta da sua ineficiência, um dos pássaros, aquele que havia sido atingido, começou a fumegar, soltando grosso rolo de fumaça preta. Afastou-se dos demais e iniciou uma descida.
Na boca pequena, havia uma coisa que prendia a atenção de Hapal, e por mais que perguntasse dos caçadores, ninguém sabia responder. Havia percebido que aqueles animais não batiam as asas, mesmo quando precisavam subir e se afastar.
Agora o animal estava descendo, fumegando e parecia não poder subir. Era o que Hapal tanto queria.
— Corram na direção do pássaro! Se ele descer até o chão precisamos estar lá!
Perseguiram o pássaro na esperança de que pudessem capturá-lo. Deixaram a floresta junto ao rio e a segurança de seus esconderijos próximos à entrada dos tuneis. Corriam acompanhando o feixe de fumaça negra. O pássaro dava sinais de que não conseguiria escapar, voando cada vez mais baixo.
O animal cruzou um bosque e logo a seguir, em uma clareira, principiou sua descida, aparentemente suave, contudo, chocando-se no chão fazendo grande estrondo. Com o impacto uma das asas do grande pássaro soltou-se, o que impressionou a Hapal e aos demais, cada vez mais próximos.
— Cuidado, ele pode lançar fogo mais uma vez! Cuidado com o seu pescoço longo! Gritava um dos homens.
Enfim o pássaro ferido parou e continuou expelindo fumaça negra. Se aproximaram ao redor do pássaro, evitando ficar na sua frente. Hapal viu surpreso, que o animal não se movia, apenas continuava queimando e expelindo fumaça.
Hapal estava confuso. O animal não possuía penas. Havia uma espécie de couro duro desconhecido. Precisavam chegar mais perto. Estava intrigado com o fato de o animal não expressar nenhum movimento. Estaria finalmente morto?
De súbito o animal assustou a todos abrindo aquilo que pensavam ser sua cabeça. Os homens aguardavam para ver o que poderia acontecer. Era como se o alto da cabeça tivesse se elevado.
Hapal resolveu acabar com as especulações. De um salto, se pôs de pé junto à cabeça que se abria. O que viu foi incomum, confuso e assustador. Algo que jamais poderia imaginar. De dentro da cabeça do pássaro, alguém olhava para ele, com olhos semelhantes a uma cobra. Um calafrio percorreu o corpo do valente Hapal.
Fosse o que fosse, deveria matá-lo? Deveria retirá-lo de dentro da cabeça? O ser com olhos de cobra possuía um corpo parecido com o dos caçadores, ainda que o ser parecesse maior. Todos estavam a postos. Ante qualquer reação hostil, Olho de cobra acabaria sendo morto ali mesmo.
Lentamente o ser foi deixando o interior da cabeça e se pôs de pé. Era visivelmente maior. O rosto era impressionante, lembrando vivamente a cara de um réptil, porém sem um grande focinho. Olhar sempre estranho e agressivo. Bastou que pusesse os pés sobre as asas do pássaro e os caçadores atiraram sua lanças, assustados ante a possibilidade de serem eles mesmos atacados pelo gigante Olho de cobra.
Hapal ordenou que fizessem um aparato com paus para transporta o corpo sem vida. Queria que todos dessem uma olhada em seu inimigo. Era a primeira vez que capturavam um deles.
Quanto ao pássaro estendido no chão, estava morto. Tão morto quanto o gigante com cara de cobra. O couro duro do bicho era mais fino que o sílex de suas facas. Talvez por isso não pudesse bater suas asas. Alguém recolheu o pedaço da asa que havia se soltado para levar com ele. E isso foi tudo.
De qualquer forma, Hapal não se convencia de que aquilo fosse um pássaro, ou um dragão, mesmo que nunca tivesse visto um para comparação. Aliás, o bicho estendido no chão não lembrava um animal, de jeito nenhum. Sem nenhuma resposta, Hapal, simplesmente parou de pensar naquilo.
Naquela noite, os caçadores ao redor do fogo, junto aos anciãos expuseram tudo o que foi obtido e dialogaram longamente a respeito daquele perigo difícil de lidar. Temiam que outros pássaros viessem reclamar a morte do que havia se perdido. Acreditavam na possibilidade de quererem vingança.
De todo modo, o povo dos subterrâneos prosseguiu vivendo dessa forma por mais algum tempo. Até que os pássaros não mais voltaram. Aparentemente, haviam desistido de acabar com eles.
Por sua coragem e ousadia no enfrentamento dos homens com cara de réptil, Hapal assumiu o papel de líder de seu povo. Cumprindo jornadas de exploração cada vez mais extensas, na companhia de um grupo de seus, agora guerreiros, encontraram o que parecia ser cidades e templos, completamente destruídos.
Souberam então que a guerra das narrativas dos antigos envolveu vários povos, de regiões muito distantes, e não apenas o seu. Muitos perderam tudo o que tinham, mas principalmente, muitos perderam suas vidas. Aquilo tinha sido um grande flagelo. Quando contava como haviam derrubado um dos pássaros de couro duro e mais delgado que as lâminas de sílex, todos ficavam abismados.
Contar sobre o homem com cara de cobra, criava perguntas as mais diversas, sendo ele e seus guerreiros muito festejados pela coragem, a ponto de um dos povos resolver acompanhá-los na viagem de volta. Hapal concordou e voltaram todos juntos. Sabia que haviam sofrido tanto quanto sua própria gente, e que os dois povos juntos, seriam certamente mais fortes.
Na viagem de volta todos puderam observar o resultado da exposição prolongada ao sol, em suas peles bronzeadas. Quando chegaram, eles próprios pareciam um povo diferente do seu. Pôde rever a esposa e os filhos, ainda todos de pele pálida, lembrando pessoas doentes. Seu povo tinha cara de gente doente.
Gradativamente, começaram a deixar os subterrâneos, até reconstruírem suas vidas junto ao povo vizinho, construindo aldeias próximas aos rios. Nunca mais souberam dos gigantes com cara de cobra. Foi Hapal quem proibiu que ensinassem aos mais novos o caminho para os subterrâneos. Por garantia, deu ordens no sentido de bloquearem os acessos.
Com o avançar dos anos, começaram a perceber uma coisa. O frio estava diminuindo lentamente, se comparado com tempos mais antigos. Por outro lado, as florestas estavam se tornando cada vez mais presentes. Pareciam crescer com o aumento das chuvas. Lugares antes ocupados por campinas extensas, agora estavam recebendo muitas árvores, cada vez maiores.
Em certas ocasiões, era Hapal que ficava sobre o monte, acima das florestas e do rio, observando os céus. Sua mulher, então perguntava:
— Será que algum dia eles voltarão? Ainda teremos que voltar ao subterrâneo?
— Não, nunca mais. Nossa gente vai povoar a terra e as florestas distantes, agora é nossa vez. Respondeu Hapal.
Os milênios cruzaram as terras do mundo, como sempre costumam fazer. Das lendas da cultura oral, do povo de Hapal, muito pouco chegou até os dias de hoje. Apenas pequenos fragmentos de pouca compreensão, já adulterados pelo próprio tempo.
Quanto aos grandes subterrâneos, se estendendo por muitos quilômetros, e as ruínas das cidades, acabaram sepultadas pela floresta densa que os sucedeu. Seus resquícios têm sido encontrados nos últimos anos. Quem sabe assim, conseguem encontrar o distante fio da meada.
FIM