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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Tempestade

                                                             

                                                                                                                                            Foto: John Fowler

Por: Antonio Mata

Abre os olhos, com a cara de espanto naquele breu. Palmilha ao redor procurando por uma lanterna. Se põe de pé e caminha sob o impacto do susto que ainda perdura.

Tem pressa em abrir a janela e prestar atenção às águas correndo lá fora, no silêncio da noite, ali adiante. Quietude de todas as noites, e que agora estranhamente lhe incute medo.

Procura definir alguma coisa com a pouca luz da lanterna. Consegue focar o terreno ao redor. Se mostrava seco, e pelo visto o rio estava onde deveria estar. Fica mais aliviada, enxergando o rio com aquele mínimo de luz, coisa de uns 20 metros adiante.

Ainda se acalmava daquela impressão ruim falando a si mesma, “Foi só o susto mulher, foi só um pesadelo”. Fechou a janela e recolheu-se à sua rede.

Amanhece na vila, na alegria dos pássaros e no colorido da ribeira por entre as matas. Lindaura é professora na pequena escola da comunidade do lugar. Os doze anos passados na vila lhe trouxeram o gosto pelo povoado e por sua gente. O tempo de ver crescer uma leva de meninos e meninas, metade dos quais já tinha ido embora.

Querida, por conta do convívio com as crianças, o sentimento chegava às famílias que tinham por ela grande afeição.

Tocava seus dias entre as coisas da escola, o casal de filhos e o esposo, que se ocupava da pesca, e de pequena casa de farinha, quando havia produção.

No convívio com a vizinhança; nos afazeres da sobrevivência local; as conversas no fim de tarde; a caneca de café com os amigos; as eventuais visitas aos povoados e cidades próximas. A vida seguia o ritmo manso ditado pelas águas.

Os noticiários e programas através do rádio e tv, mantinham a vila conectada com o resto do mundo. Colhiam assim o pouco contato e conforto disponível, já que às 21 horas, o gerador a diesel, que havia sido ligado três horas antes, seria desligado, encerrando o dia para todos.

Pensava na situação dos filhos que em mais dois anos concluiriam o Ensino Fundamental, e não queria que interrompessem os estudos, antes de concluírem o Ensino Médio.

Isto ensejaria mudanças que fatalmente os afastaria da vila, rumo à cidade mais próxima, e mais bem equipada. Este então, era o plano.

Quando o piso da palafita já não tem mais para onde subir, quando o flutuante precisa elevar a amarração, sendo que o tempo seco é o mais adequado para fixá-lo no leito, próximo à margem, tem-se um problema. Se o rio se elevar demais, e muito rápido, a fuga do local poderá se apresentar como única saída.

Se há uma coisa que cria desassossego no povo da ribeira, é enchente para além do esperado. Na enchente não tem pescado, os estoques de comida precisam ficar a seguro das águas.

A mobilidade local diminui, o risco para as crianças menores e o isolamento aumentam. Uma enchente não pode pegar a vila de surpresa. Acostumados com a elevação das águas, se adaptam até certa medida. Uma elevação repentina, é tão nociva quanto se ocorresse nas maiores cidades. Enchente com tempestade é uma combinação perigosa.

Como se antecipar, prevenir, se os elementos não são totalmente compreendidos por todos? Escapava da lógica da ribeira, da lógica dos homens.

O noticiário já apontava para o excesso de chuvas nas cabeceiras dos grandes rios. A população interpreta como sendo a cheia habitual, de todos os anos. É o que se sabe, tem sido assim há muito tempo. É pela repetição que o homem fixa as peculiaridades climáticas da região e do seu lugar. Só não seria desta vez.

Com o passar das semanas as águas subiram, em um fenômeno tão comum como a noite e o dia. Todos já sabiam o que fazer. Mais uma semana ou duas, e as terras ao derredor estariam cobertas com meio metro de água, ou pouco mais.

Ainda estava irrequieta com aquele pesadelo. Tinha visto toda a população em apuros no meio da noite, sob a chuva e o vento, tentando salvar as crianças, os poucos pertences, e a si próprios.

— Vai ser durante um temporal — dizia Lindaura.

— É o quê mulher, o que é que você está dizendo? — Retrucava Anselmo, ante as palavras dela.

— É isso mesmo que você ouviu. Aquele sonho não foi à toa, estão nos avisando, e eu acho que temos que fazer alguma coisa.

— Mas até parece que você nunca viu enchente. Vê se não fica espalhando estas histórias, senão o povo se apavora logo. — Anselmo, de forma cética, alertava sua mulher.

— Queria estar errada, acreditar que foi um engano. Só não é isso que eu sinto.

Diferentemente do que Anselmo imaginara, e em que pese a consideração que tinham por Lindaura, e suas apreensões, os 417 moradores do local não deram maior atenção à professora, pois entendiam — e vários moradores defendiam este ponto de vista — que o fenômeno era normal, e que alguma variação para mais, estaria tudo dentro do previsto.

Um sonho, ou mesmo um pesadelo, era pouco para movê-los daquele lugar. Era preciso dar conta das tarefas do dia a dia, e logo os receios da professora acabaram comodamente esquecidos. Tudo muito humano, um ser por demais acomodado.

Alta madrugada, quando entre relâmpagos e trovões, corre até a janela. A lanterna não se fazia necessária. Os clarões iluminavam com grande intensidade. As águas agitadas do rio já se aproximavam na altura do piso de sua casa. Portanto, já existia uma coluna de 70 cm até o solo. Precisavam sair dali rapidamente.

Se debatia na noite, até Anselmo acordá-la. Aturdida buscava colocar as ideias no lugar e se dirigir ao marido.

— Não dá mais, não podemos ficar aqui — dizia Iolanda, — precisamos procurar outro lugar para ficar. Um local mais elevado.

— Então poderíamos ficar na altura do cemitério. Lá já é mais elevado, o rio não alcança.

— Não alcançava Anselmo, mas poderá muito bem alcançar. Você devia ter visto o aguaceiro que eu vi. Amanhã vamos adentrar a terra firme e subir para além do cemitério. — Sentenciou Iolanda. Já interpretava seus sonhos como verdadeiros alertas, e o que quer que fosse precisava de providências rápido.

Na manhã seguinte tomaram a picada rumo a terrenos mais elevados que pudessem receber os habitantes do vilarejo. Com a ajuda de um grupelho de homens e mulheres que se sensibilizaram com os sonhos, quase proféticos, que a professora estava recebendo, começaram a desmatar uma clareira, de modo a receber um pequeno casario.

Se a palavra convence, e o exemplo arrasta, o fato é que aquele grupelho cresceu, recebendo novos voluntários.

Limparam o terreno, observando árvores mais fragilizadas, derrubando-as antecipadamente, para que não viessem a tombar por sobre o arraial, e a madeira de imediato aproveitada. Lindaura frisava a sua preocupação com os ventos fortes, fixados em sua mente de uma forma tão sutil.

Os homens acatavam de muita boa-fé suas instruções e cuidados. Também reforçaram a trama da cobertura de palmeiras e as amarrações no madeirame.

A vantagem da casa de caboclo é que ela foi concebida para abrigar rápido, e com um mínimo de trabalho. Não há nenhum luxo nas paredes de tábua e nas coberturas de folhas de palmeira, mas que oferecem um pouco de segurança e abrigam da chuva.

O arraial com um punhado de barracões foi construído no espaço de pouco mais de um mês. Trabalho debaixo da censura, do deboche e dos risos dos demais, vendo naquilo uma enorme perda de tempo e esforços, já que ficavam longe do rio, e sem nenhuma necessidade, pensavam.

O rio alimenta; hidrata; transporta; refresca; elimina dejetos e auxilia nos afazeres locais. Para muito além do que os olhos podem ver, o rio suaviza a alma; energiza o corpo e ajuda a devolver o equilíbrio, abrindo a mente à contemplação. O pé no chão reconecta o homem à terra.

A ribeira é sanatório de almas necessitadas de repouso, ante as tragédias  do embate milenar dos homens. Se um dia foram europeus, norte-americanos, africanos ou asiáticos, isto já não importa mais. Agora são caboclos em uma existência de repouso  para todos, e de despertamento, para aqueles que assim o desejarem. Não estão lá de graça, nem por acidente. Porém, os tempos são chegados.

Ora, então às vistas dos homens, a heroína perdera o juízo. Seria fácil dar razão aos cochichos e sarcasmos da vila, não fosse aquilo que empurrava aquela mulher. A percepção da exceção, a visão daquilo que nem todo mundo está pronto para ver, muito menos para entender.

Iniciou-se o tempo de se esperar pelos acontecimentos. O humanamente possível de se fazer, havia sido feito. Não demoraria muito, e logo teriam o veredito da “natureza”, e sem meio termo. Ou “os heróis da vila”, ou “os tolos do arraial”.

A noite se põe mais uma vez, não sem antes deixar antever as grossas nuvens naquele crepúsculo, cheias de umidade para a noite. Não era a primeira vez, nem seria a última. Não para Lindaura, que  de terço na mão, expunha sua fé e confiança na Divina Providência, que a todos atende nos momentos críticos da vida.

A vila dormia a sono solto. Não havia o clarão repentino, nem o roncar dos trovões. Ninguém viu, nem a jovem professora, mas aquela meia dúzia de cabeças de gado, além dos cachorros daquela ribeira, discretamente tomaram a trilha rumo ao novo arraial. Isto por razões que, se os homens guardam dúvidas diante de certos fenômenos da vida, os animais guardam as certezas.

Não custou muito mais, e o cenário estava montado. Se sentiram a variação nos ventos; na pressão; na umidade; ou se foi naqueles coraçõezinhos; ninguém percebeu. O fato é que em determinado momento, as galinhas que estavam presas, botaram para fazer um escândalo, fácil de se ouvir no silêncio habitual, até pelo caboclo mais surdo.

Queriam acompanhar aquelas que alguns moradores, por hábito, criavam soltas. É que estas, já haviam dado no pé de galinha, correndo picada acima, muito pouco se importando com mucuras, ou o que mais houvesse pelo caminho. Nem uma trinca de onças as fariam ficar mais tempo por ali. Defender a vida é uma necessidade, nem que seja só para escolher como morrer.

Onisciente, Onipresente, Onipotente, Criador por excelência. Aquele cacarejar desesperado de galinhas querendo sumir dali, teve a eficiência que as sirenes dos morros do Rio de Janeiro, pela sensatez dos homens, terão um dia.

Um corisco e um estalo no céu, o vento repentino e intenso, o clarão denunciador, se unem e anunciam a chegada do perigoso cortejo. O céu está prestes a desabar. Arauto e heroína, finalmente se encontram.

Ela salta da rede, só não faz mais isso sozinha. A lanterna pouco importa, onde os clarões se sucedem. Anselmo a acompanha, enquanto ela pega as crianças e junta uns poucos pertences, ele recolhe meia saca de milho e meia saca de feijão, a macaxeira ainda pode esperar.

Não saiu sozinha mesmo. Na vila, uma pequena multidão se reunia no terreiro ao centro do casario. Embasbacados, crentes e céticos observavam o rio e os céus, com as águas já chegando a seus calcanhares. O cenário era dramático, intenso, cinematográfico, e belíssimo na sua grandeza.

Aos gritos e instruções da heroína, soltaram as galinhas restantes e trataram de reunir crianças, sacos de grãos e pertences jogados às costas, enquanto as águas subiam para além das canelas. Dúvidas e descrenças foram deixadas sob as águas. Só pensavam em sair dali, enquanto o aguaceiro buscava seus joelhos.

Puseram-se em marcha na direção do arraial, com a picada iluminada por inteiro. Retardatários foram postos para fora com água acima da cintura e a corrente se fazendo sentir. Choveu torrencialmente naquela noite.

Ela segue na frente e abriga sua gente nos barracões. O vento é forte e a tempestade intensa, chovendo pesadamente. Quem nasceu para conduzir não se importa com chuva. Quer ver o último chegar. Percorre os barracões querendo saber se já estão todos abrigados. Todos presentes e tudo muito apertado, mas vai dar para suportar até o final da tempestade. Em poucos dias fariam novos barracões para alojar melhor a população.

A linha extensa de tempestades que parecia não ter fim, finalmente enfraquece e dissipa. Entornara seu aguaceiro em um grande espaço, porém anormalmente grande em extensão. Atingiu diversas localidades, vilarejos e cidades da região. Todos sentiram o furor daqueles dias.

O amanhecer se faz no pequeno arraial. A vila estava totalmente debaixo d’água. Nenhum telhado ou palhoça visível. Também a maior parte do pequeno cemitério se encontrava submerso. Foi através de pequeno rádio de pilha que começaram a ganhar fé de tudo o que acontecera.

O número de óbitos na região poderia ter sido menor. O descuido, aliado à descrença ajudou a ceifar as vidas de mais de duzentas pessoas, nas estimativas do primeiro dia, fora a centena de desaparecidos naquela confusão. Os órgãos públicos meteram-se em disputas, onde buscavam salientar o erro de um, ou a ausência do outro.

Postas em ação, as autoridades centrais buscaram prestar apoio às populações isoladas e sem alimento. A pequena comunidade que assistiu ao crescimento dos filhos de Lindaura, somente recebeu auxílio no oitavo dia após a tempestade. Os víveres já estavam se esgotando quando um helicóptero chegou ao local.

— Sabíamos que vocês estavam aqui. Infelizmente muitas pequenas comunidades se viram isoladas e as equipagens se viram por demais ocupadas, as missões se sucedem.— Explicava o jovem comandante da aeronave de socorro, trazendo cestas básicas que atendessem temporariamente, enquanto a rede de apoio se ampliava e acelerava o serviço.

— Os Catalina não poderiam vir até aqui?— Perguntava um velho morador local, saudoso de outros tempos, ainda que desinformado.

— Compreendo sua preocupação amigo, mas os antigos Catalina foram desativados no início dos anos 80, do século passado. Infelizmente não dispomos mais de hidroaviões. Mas os aviões que puderam ser adaptados para pousar na água, já estão no serviço.

Descarregado o pequeno helicóptero, a tripulação deixou o arraial para receber nova carga e partir para outra missão, até o seu retorno em três ou quatro dias.

Acreditava-se que as águas baixariam mais rapidamente aos níveis habituais. Desta vez, entretanto, não seria dessa forma.

Para os homens, tal conhecimento ainda não chegou, mas a Amazônia estava entrando em processo acelerado de reconfiguração de sua hidrografia. Diversos rios estão se deslocando para a definição de outro leito. Na realidade estão recuperando paleocanais, antigos caminhos por onde suas águas fluíam no passado remoto.  

Os rios mudam de percurso de tempos em tempos. Só que dessa vez existem cidades e vilas pelo caminho. Estas vão ser encobertas permanentemente. Quanto a população, normalmente terá tempo para se deslocar e fundar uma nova sede.  

Recostada na estaca do alpendre coberto de palha, olhava para o céu que havia retomado seu azul habitual. A passarada fazia sua revoada, a floresta emoldurava o rio, enquanto espelhava-se na superfície. Junto aos demais, ela ainda aguardava que as águas baixassem pelo menos um pouco. Anselmo se aproxima e pergunta.

— E então, está disposta a ir embora agora?

A heroína olhou para a paisagem mais uma vez, e disse.

— Sair daqui? Só quando precisar de Ensino Médio para as crianças. No mais, não quero sair daqui não. Não tem gente que diz, “aqui é a minha terra”?— Pois é, aqui é a minha pátria das águas.

 

Trabalhe no bem, ampare quem precisa e seja feliz assim.

Este mundo é seu, faça por onde ser o herdeiro.

                                           

FIM

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