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Tempo de mudança

                              

                                                                                      Foto : Wikipédia

Por : Antonio Mata

Nada de novo que justifique querer modificar as coisas, por qualquer razão. Mudanças posteriores não constituíam o seu forte, nem algo desejável. Circular, encontrar o que se procura, ganhar o dia e depois dormir. Era assim, já fazia muito tempo. ​

— Aqui tenho tudo o que preciso. Mesmo quando me afasto, ainda assim, encontro tudo o que procuro, além do espaço e outros compadres. Não troco essa vida por nada nesse mundo. ​

De fato, as disponibilidades para a sobrevivência eram muito satisfatórias e evidentes. Afinal, para um onívoro nesta região, comer nunca foi um problema, aceitando desde sementes diversas, até plânctons; peixes pequenos; caracóis; insetos; brotos e folhas. ​

Assim, percorre o rio, encontrando os compadres, comer e depois dormir preenchia seus dias. Não era à toa que se tratava de um peixe grande. Chegava a ter um metro de comprimento, pesando trinta quilos. Era o bicho certo no lugar certo.​

Todavia, a natureza adora pregar peças, tanto nos mais desavisados, como nos mais espertos.​

Não se tratava de um tambaqui gorducho e preguiçoso. Afinal, os tambaquis não são os únicos habitantes do rio. Havia também os carnívoros tucunarés, entre outros peixes, além de tartarugas. ​

No princípio o que havia chamado atenção, foi o comportamento dos tucunarés, cada vez mais esfomeados. ​

— Isto não chega a ser um problema, pois só comemos peixes pequenos e abundantes, além de pequenos camarões. Então, há comida para todos. Não há como se preocupar. O grande rio oferece tudo a todos. ​

Por algum tempo, isto fez todo sentido e a vida prosseguiu sem maiores complicações. Contudo, a quantidade de peixes pequenos começou a diminuir. Este foi sim, o primeiro sinal. ​

Os tambaquis, acostumados com os frutos sazonais das castanheiras e palmeiras, estranharam quando as mesmas começaram a se afastar, ou melhor, começaram a perder contato com as árvores e com as suas sementes. Para quem entendeu, foi este o segundo sinal. ​

Os tambaquis mais jovens, sabendo que poderiam se alimentar com outras coisas, não se importaram muito, a despeito de não poderem mais acessar suas sementes prediletas. ​

Um velho tambaqui, incomodado com os últimos e incomuns acontecimentos, buscou pela tartaruga, o animal mais longevo e também o mais sábio daquelas paragens. ​

Encontrou o quelônio, expondo-lhe suas preocupações, tanto quanto ao comportamento dos tucunarés, quanto à dificuldade para se obter sementes. A tartaruga ficou em silêncio, pensando por alguns instantes. Em seguida indagou do tambaqui: ​

— Há quanto tempo você não desce o rio? ​

— Não sei dizer com certeza. Mas já não faço isso há bastante tempo. ​

— Então venha comigo. ​

O quelônio mergulhou e seguiu o rio abaixo. Não teve de seguir muito e então, se deteve. ​

— Você parou. Cadê o resto do rio? —Perguntava o velho tambaqui. ​

— Pois é isso que quero lhe mostrar. Você já não pode mais descer o rio. Só pode chegar até aqui. ​

O peixe ficou pensativo com a situação apresentada pela tartaruga. ​

— Então isto pode explicar a diminuição da comida. Será que é isto que está acontecendo? ​

— Eu mesmo não sei lhe dizer, mas, no seu lugar, eu continuaria buscando saber mais coisas, sobre as coisas que estão surgindo por aí. ​

O tambaqui agradeceu e retornou para junto dos demais peixes, ávido por contar o que havia descoberto. A impossibilidade de se descer o rio constituía uma questão de muita gravidade, acreditava.​

— Continuo acreditando que você está se preocupando à toa. — Lhe dizia o tucunaré, muito confiante.​

— Como à toa? Eu vi com meus próprios olhos, o rio está bloqueado. Deveríamos avisar os demais e sair daqui logo. — Insistia o tambaqui.​

— Já que você pensa assim, então venha comigo. Vou lhe mostrar uma coisa. — Era a vez do tucunaré mostrar alguma coisa.​

O cético tucunaré, acompanhado do preocupado tambaqui, dirigiu-se à montante, subindo o rio. ​

Percorreu os caminhos habituais, visitou seus compadres, prosseguiu, avançou mais um pouco e então se dirigiu ao tambaqui. ​

— E então velho, está convencido agora? Estava se sentindo muito preso? Pois agora sinta-se solto mais uma vez. ​

Meio cabisbaixo, o velho tambaqui ouvia em silêncio, sem poder rebater a realidade apresentada pelo tucunaré. De fato, podia nadar livremente, tendo os dois em seguida  retornados para seu lugar habitual. ​

O papel de tolo oferecido pelo velho tambaqui serviu apenas para torná-lo desacreditado diante dos demais habitantes do rio. Dessa forma, todos continuaram com sua vida habitual. Circular por aí; encontrar os compadres; comer e dormir. ​

Entrementes, na medida em que o tempo avançava, começaram a surgir reclamações de que os tucunarés maiores estavam atacando os filhotes de tambaquis. ​

O tambaqui mais velho, diante dos últimos acontecimentos, não quis saber de esperar mais nada. Reuniu o máximo de tambaquis e filhotes, além dos demais peixes que quiseram deixar o local e trataram de assumir o caminho à montante, se afastando dali o mais rápido que pudessem.  ​

Não demorou muito e foi possível perceber que a profundidade, mesmo na subida do rio, não passava de dois palmos de água. O velho tambaqui deduziu então, que não demoraria muito para que o canal, cada vez mais raso, fosse logo bloqueado.  ​

Se isto tinha a ver com a ferocidade dos tucunarés, agora muito pouco importava, só queria sair daquele lugar. Enfim, a coluna de dois palmos d'água foi o suficiente para que pudessem nadar e se afastar do local. ​

Não demorou muito de que o caminho à montante se tornasse inviável. Raso demais para permitir a circulação dos peixes. No trecho ainda alagado, com a saída dos filhotes de tambaqui, o alimento foi se tornando rapidamente reduzido. E não foi só isso. ​

Os peixes de espécies menores, ante à ferocidade dos tucunarés, trataram de aproveitar a coluna d'água de uns poucos e últimos centímetros, abandonando tudo antes que fossem devorados. ​

Percorrendo os limites daquilo que já era apenas um lago, os céticos e orgulhosos tucunarés se deram conta de que estavam ficando presos. Pior, estavam comendo seus próprios filhotes. ​

Por mais que circulassem ao redor dos limites do lago, tudo o que se podia constatar, é que mesmo os limites daquele lago estavam se tornando cada vez mais estreitos. Não havia do que duvidar.​

Atônitos, se reuniram para buscar uma saída para a situação crítica, que só fazia piorar a cada dia que passava. ​

— Não há o que questionar. Ou ficaremos sem comida quando o último peixe pequeno for devorado, ou ficaremos dentro de um lago seco. É isso que está acontecendo, perdemos o nosso rio e agora este lago está secando. ​

Com a constatação cruamente apresentada, um clima de pavor se estabeleceu entre os presentes. A morte era agora algo iminente para todos. Uma questão de uns poucos dias, talvez. ​

— Vamos procurar a tartaruga. É um animal muito idoso. Talvez possa nos dizer o que fazer. ​

Às pressas, buscaram localizar a tartaruga, de modo que os aconselhasse a respeito do que fazer para salvar suas vidas. Encontraram o quelônio, expondo a difícil situação de risco que todos enfrentavam. ​

A velha tartaruga ouviu seus queixumes, já desesperados. Pensou pacientemente a respeito da situação, e finalmente respondeu: ​

— Todos aqueles que realmente queiram escapar, que desejem lutar por suas vidas, venham comigo, pois só há uma saída. ​

Os tucunarés, de olhos arregalados, se entreolharam e aceitaram acompanhar a tartaruga. Finalmente havia uma saída. A tartaruga, o animal mais experiente do lugar, haveria de lhes mostrar o caminho. Eram fortes, valentes e os mais corajosos do lugar.​

Calmamente o quelônio deixou o monte onde se encontrava. Mergulhou e se pôs a caminho do que fora a montante daquele trecho do rio. Agora lago, e secando rapidamente. Ao se aproximar da beira do lago, saiu e prosseguiu tranquilamente, caminhando. ​

Ao ver aquilo os tucunarés começaram a gritar. ​

— Tartaruga, tartaruga! Onde você vai? Não nos deixe aqui! Volte sua velha cascuda! Volte aqui! Fóssil metida, nunca será um peixe de verdade!​

Sem deter a sua marcha tranquila e calma, a tartaruga olhou para trás e disse: ​

— Eu não estou deixando ninguém para trás. Eu avisei que só havia uma única saída, portanto, vocês aí procurem me acompanhar, e calem a boca.​

Os tucunarés, mais atônitos do que nunca, em um esforço desesperado, se lançaram para fora do lago, e aos saltos, tentaram acompanhar a tartaruga logo adiante. Fez-se então uma fileira de tucunarés saltitantes que se estendia por vários metros, com a tartaruga sempre adiante. ​

Os pássaros de rapina do lugar, falcões e gaviões, observando aquele estranho e bem-vindo cortejo, não pensaram duas vezes e partiram para aquela farta e fácil pescaria. ​

Uns vinte ou vinte e cinco metros adiante, a velha tartaruga de uns 70 cm de comprimento e uns 90 quilos, adentrou as águas do rio com a mesma calma e tranquilidade de quem já viveu muito e seguiu adiante. ​

Nenhum tucunaré sobreviveu a travessia, fosse pela presença das aves de rapina, fosse pela falta de oxigênio em suas guelras. Os demais peixes, que haviam permanecidos no lago, logo encontraram no leito seco o final de seus dias. ​

Assim, os fenômenos da vida em um mundo mutável, se aproximam. Os tempos de mudança se apresentam, aos poucos. Sem que muitos, na realidade a maioria, se preocupem em observá-los e entender o que está de fato acontecendo.

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