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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Terra e água

 

                  

                                                                                            Foto: Geanebarfrei

Por: Antonio Mata 

Colocou os pertences na canoa, além de sacos de alimentos, recém adquiridos no mercado da cidade. A manhã mal se delineava quando decidiu partir. Empurrou a canoa e ganhou o rio no intuito de chegar em casa antes do pôr do sol.

Normalmente chegava com uma hora de vantagem. Poderia chegar antes se possuísse uma rabeta, o pequeno sonho de consumo da beira de rio. Sonho que já cruzara os dez anos, de um sonho que não se cumpriria.

Dinheiro não é fácil de se obter. Vende-se a pupunha barata, para se comprar o arroz caro. O trajeto entre a cidade e o vilarejo não era novo. Já o fizera muitas vezes. Na ausência do motor são os braços fortes e o remo que vão levá-lo para casa. Os eventuais imprevistos do caminho eram bem conhecidos.

O banzeiro provocado pelos barcos maiores, remoinhos na imediações dos pedrais, que poderiam puxar a canoa e prende-la no lugar, até que finalmente afundasse. O ataque de sucuris e jacarés, junto às margens exige cuidado e atenção.

Isto não significa que acontece o tempo todo. Significa que estão lá e o barqueiro não pode esquecer. As tempestades por vez, exigem remar para a beira, e até parar para não perder a canoa, ou a vida. É uma forma de se viver, e o homem aprende.

Estava conduzindo muito peso, mais que o habitual, devido a uma aquisição de cereais trocados por farinha, e mais o que foi comprado à pedido da vizinhança. A canoa exigia mais esforço, porém nada que assustasse o canoeiro.

Remando junto à margem do rio, para escapar de um pedral precisou se deslocar mais para o meio das águas, quando ameaçava chover. Em uma situação de normalidade, teria feito uma parada de segurança, deixando a travessia para ser feita após a chuva, por conta do peso que já carregava. Incautos são os homens, que por precipitação acabam tomando decisões erradas, cujo ônus, às vezes se torna irreversível.

Prosseguiu no meio do canal, na expectativa de cruzá-lo rapidamente, podendo retornar para junto da margem direita logo em seguida sem maiores problemas.

Com a travessia em curso, a chuva forte caiu, como um aguaceiro, tão repentino quanto comum na região.

Não havia como retornar.

As águas o empurravam mais para o meio. O afunilamento aumentava a velocidade no trecho, enquanto a chuva intensa deixou-o com uma dupla preocupação, manobrar a canoa por entre as pedras, e ainda ter que esvaziá-la com uma cuia, para que não afundasse na tentativa.

O sobrepeso com o qual havia iniciado a jornada de retorno, a velocidade das águas e a canoa acumulando água, configurou a armadilha. O que o homem fez, somou-se ao que deixou de fazer e a aquilo que a natureza simplesmente sempre faz. A sobrecarga, os cuidados dispensados e a chuva comum e repentina, que aumentou o peso da canoa, pondo-a a pique.

O canoeiro não se chocou com as pedras, nem foi atraiçoado pela  velocidade no trecho do canal. Tudo era sabido e conhecido, menos sua pressa inútil e desnecessária.

Canoa a pique, se debatia por entre as pedras com seu corpo deslizando nas águas, sem nenhum controle. Viu o redemoinho se aproximar, sabia que estava lá. Se ainda estivesse na canoa, braçadas fortes no remo e a canoa seria posta à direita, deslizando em total segurança. O redemoinho não estava muito forte e sim pequeno. Podia ser feito. Só não aconteceu assim.

A nado por entre as pedras, e cansado de se debater, mudou-se o cenário de forma assustadora. O redemoinho tornou-se mortal, e agora o sugava para debaixo, sem que conseguisse impulsionar o corpo para fora.

Lutava pela própria vida desesperadamente. Manteve-se com o rosto fora das águas e se debatendo inutilmente por cerca de dois ou três minutos, até que sucumbiu ao cansaço e principiou um mergulho de não mais que quatro metros, mas o suficiente para ficar retido no fundo, enquanto sufocava.

O corpo inerte balançava ao sabor da corrente que o retinha no local. Ficaria ali, sem vida, até que algum peixe mais vigoroso o descobrisse e viesse mordiscá-lo. Um chegou para mordiscar, os demais logo farão o mesmo, até que vorazmente, deixarão tão somente os ossos. É a lei da sobrevivência na natureza, onde um serve de alimento para outro. Mesmo seus grãos, seus cereais, tão logo fossem descobertos, serviriam de alimento a peixes não tão vigorosos, mas igualmente famintos.

 

O estado de pânico acompanha o espírito, na condição de seu último registro na matéria.

— Josué, você me ouve, pode me ouvir?— Uma voz o chamava pelo nome. O espírito assustadiço e confuso, não sabe no que pensar. Aquilo simplesmente não batia com seus últimos registros de naufrágio. Se acreditava sonhando, tamanha a contradição.

O homem, em vida, assumira uma atitude de ceticismo a tudo o que pudesse significar espírito, ou vida espiritual. Julgava pensamentos inúteis, coisa de gente desocupada. “Homem morto é merecedor do buraco, e isso é tudo,”— dizia.

Aquela voz lhe chamando pelo nome, e a mão sobre seu ombro, faziam tanto sentido quanto estar conversando com um estranho, por entre as águas, e no fundo do rio, logo após ter se afogado.

— Josué, se acalme, tranquiliza o teu coração e vem comigo.

Lentamente aquela figura foi se afastando, trajando uma espécie de capa muito leve e colorida, em tons de verde e azul, com cintilações muito claras.

Alguma coisa fê-lo lembrar de um peixe de aquário, que tinha visto certa vez na cidade. Por patética que fosse, foi a melhor aproximação que conseguiu, dentro daquele cenário surreal, onde a capa era mero detalhe.

Fez menção de avançar na direção do outro homem, quando se deu conta de que continuava preso no redemoinho, e no fundo. Virou-se e observou seu corpo preso nas pedras e balançando da cintura para cima. Tentou mais uma vez sair dali, sem entender o que fazia fora do próprio corpo. Mais uma vez foi em vão.

— Ei você, pare com isso e venha logo, não temos o dia todo. Saia daí de uma vez.

Juntou suas forças e finalmente conseguiu sair da área de ação do redemoinho e se afastou. Olhava para trás, e o corpo preso estava lá balançando do mesmo jeito. Antes que o homem com a capa colorida desaparecesse, andou; ou nadou; ou se projetou na sua direção dele. O fato é que, não sem esforço, conseguiu alcançá-lo. Queria explicações.

— O que está acontecendo aqui, o que houve?— Eu não entendo, — dizia atônito.

— Josué, você é um homem acostumado a viver na beira do rio. conhece os domínios das águas, do ponto de vista de quem se adaptou a esta vida para trabalhar, se deslocar, se divertir, enfim para viver.

— Até aí eu entendi. O que estamos fazendo dentro do rio? Eu estava preso nas pedras.

— Sim é verdade, e agora não está mais. Quer maior prova de que o seu ceticismo, sua descrença, foram-lhe inúteis? Você está tão vivo quanto eu, rapaz.

— Continuo sem entender.

— Não faz mal, apenas me acompanhe. Você vai compreender aos poucos.

Os dois homens prosseguiram, quando então Josué pode avistar pouco adiante construções de uma forma que não teria como descrever, lhe faltariam as palavras. Era qualquer coisa que lhe lembrava uma cidade pequena, dentro das águas, em uma espécie de cúpula incolor.

Os prédios reluzentes, pareciam mudar de cor constantemente. Mais uma vez as cores brilhantes, em vermelho, laranja e verde, se misturavam com cintilações douradas, como se refletissem a luz do sol. Não estava escuro naquele lugar. Sentia-se dentro d’água, mas sem sufocar, e aos poucos, notou que já era possível se mover com mais facilidade.

Muito do mal-estar provocado pelo afogamento já havia passado, sentia-se por inteiro, e tal e qual um viajante que chega em um lugar desconhecido e é convidado a apreciá-lo.

— Aqui não é uma cidade Josué. E sim um posto avançado. Aqui nós recolhemos os náufragos de toda sorte de episódios envolvendo o rio.— Dizia o homem, e prosseguiu.

— Desde crianças, que por descuido dos pais, se precipitaram nas águas, até grandes naufrágios com as embarcações da região. Certamente que existem ainda grupos que atendem aos naufrágios ocorridos em alto-mar.

O canoeiro procurava se situar mais um pouco, e por isso perguntou:

— Se estamos dentro do rio, como estamos respirando, por que eu não me afogo mais?

— Você está em outra dimensão da vida, e aqui nesta dimensão, o ar já não é mais o mesmo. Quem precisa daquele ar é o corpo físico, e o seu ficou preso nas pedras. Seu espírito não precisa daquele oxigênio. Este que você respira é mais depurado.

Josué tinha dificuldade para entender o que se passava. Era tudo muito diferente.

— Não ligue muito para isso, você vai descobrir aos poucos.

— As pessoas recolhidas ficam vivendo aqui embaixo? — Indagava Josué.

— Aqui funciona como um centro de recuperação. Assim que seja possível e seja autorizado, poderá se deslocar para as cidades, nas profundezas ou não. Alguns, por pura afinidade, preferem permanecer como aprendizes, no que são bem-vindos.

— Quando poderei rever a minha família?

— Da mesma forma. Recupere-se primeiro, engaje nas atividades do posto, e poderá pleitear uma visita à sua família. Veja só, você se apresentar como um canoeiro, não significa de modo algum que tenha sido sempre assim.— Prosseguia.

— Na medida em que você recupere suas memórias passadas, terá mais facilidade para se localizar e entenderá com mais clareza o valor que os grandes rios tiveram em sua vida.

 Então foi assim, conversando, que adentraram o posto de socorro, mantido pela cidadela dos náufragos, a serviço do Cristo de Deus.

 

                                         

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