Foto: B_Me
Por: Antonio Mata
Os destroços espalhados na pista deixavam antever o primeiro choque. Na sequência a subida na calçada, o impacto violento contra o gradil pintado de verde, de um prédio de apartamentos.
O ferro arrebentado e arrancado dos alicerces, a abertura no gradil, a invasão e o choque, agora frontal, contra a parede do prédio. Aço retorcido entre vidros espatifados e a mancha de sangue escorrido sobre a pedra portuguesa de desenhos sinuosos que adornava a calçada, logo ao lado da portaria do edifício.
A mão, ligeiramente estendida, indicava o esforço para sobreviver àquele sinistro. Foi realmente um acidente, imperícia, alcoolismo? Como se haveria de saber em meio a tantas coisas que ocorrem em apenas 24 horas? São tantos lugares, tantas cidades, estradas, países. O que fazer?
Apenas passava, o passo era lento, envolta em seus próprios pensamentos, não mais que 16 horas de uma tarde um pouco fria, daí o casaco vermelho vinho. Prosseguia pelo meio da calçada, uma precaução que lhe ensinaram, além de ter a alça da bolsa, cruzada sobre o peito. Ela estava perto, uns 40 metros de casa talvez. Na ocasião, estava chegando.
Dois sujeitos em uma motocicleta sobem na calçada, nem desaceleram. O que estava atrás, estende a mão direita e arranca a bolsa da mulher, forçando seu pescoço para a esquerda. Em seguida retornam ao asfalto desaparecendo do lugar, tão rápido quanto chegaram.
Repentino, premeditado, covarde e asqueroso. A mulher, sem reação, apenas cai na direção para a qual a sua cabeça foi puxada. Antes que pudesse se dar conta do que havia se passado, as pernas não mais acompanham. A cabeça, empurrada para a esquerda e para a frente bate no passeio sem defesa. O corpo inerte sobre o chão, é só o registro.
A discussão só não foi mais acirrada e grosseira, porque o porteiro do hotel fazia valer seu treinamento e experiência, afinal estava de serviço.
Havia ajudado a retirar as malas do carro, quando aquele sujeito de terno escuro e ares de autoridade, ante a recusa da mulher em descer do veículo, a agarrou pelos cabelos e a puxou para fora, a arrastando pelo acesso à portaria.
Dava para perceber que o porteiro do hotel, apenas pedia calma ao agressor, enquanto tentava levantar a mulher. Os dois balaços que recebeu no peito, de cima para baixo, o sujeito empurrando a mulher de volta para o carro, a arma, agora contra o motorista, enquanto o veículo saía em disparada. O corpo estendido no chão, do porteiro baleado, passou por mais um registro.
Quanta coisa já aconteceu sem que depois se pudesse apurar a realidade dos fatos? Quantos escaparam da justiça pela ausência de algo que ajudasse a esclarecer o ocorrido? Quanto foi esquecido e abandonado? Quantas falas criminosas foram comodamente negadas? Quantos posam de gente decente e honrada, enquanto zombam dos demais, e cinicamente se põem a rir dos ofendidos, agredidos e assassinados?
Na extensão da avenida, câmeras captaram quando um veículo invade a pista contrária. O carro no sentido contrário tenta desviar. Após o choque, perde o controle e invade a calçada, atingindo um prédio residencial. Movimento registrado nas câmeras do próprio condomínio.
O veículo que provocou o sinistro deixou pelo caminho, cor, tipo e placa do veículo. Tudo em uma sequência de imagens, do acidente, até o momento em que o motorista infrator estaciona, desce do veículo e se dirige a um restaurante, onde seu rosto fica também registrado.
Uma sequência de imagens, em câmeras espalhadas ao longo da rua. São residências, estabelecimentos diversos, câmeras de monitoramento de trânsito. A motocicleta com os dois ocupantes, executam o latrocínio, e partem, oferecendo uma ação toda registrado. Providencial, já que a mulher fora a óbito, ao bater violentamente com a cabeça no chão.
Dois quilômetros adiante, em uma manobra malfeita, os dois inconsequentes sofrem um acidente. Alguém chama o serviço de ambulância, que recolhe os homens feridos ao hospital. Com o tempo, bastou comparar a sequência de imagens para identificar os autores do assalto. De outra forma, teriam saído do hospital, ilesos. A acusação seria assalto seguido de morte.
Com a confusão criada à entrada do hotel, pedestres que circulavam pelo local, sacaram de seus celulares e fizeram o registro em primeira mão, de episódio tão trágico, ocorrido à porta do local de trabalho, do porteiro do hotel. As imagens das câmeras de segurança, completaram o registro pormenorizado da agressão brutal e insana. Rostos, agressões, fuga, tudo pelo caminho. Tudo registrado em imagens.
O tempo sempre avança, e nas mudanças que o tempo faz, propõe novas formas de se conhecer, contactar, estudar, gravar e registrar. São os tempos da informação distribuída e compartilhada, os tempos em rede. Tudo muda e se transforma em velocidade cada vez maior. O conflito humano, o choque de interesses é inevitável.
Mentes sombrias se assustam e buscam maneiras de deter tais processos, de modo a retornar à antiga segurança do anonimato, e do controle por sobre os demais. Da possibilidade de se divulgar e fixar a particular versão, até transformá-la em verdade.
Distribuída e compartilhada, a informação, desprovida de rótulos, simplesmente se opõe, cria rastro de rede, e resiste. Enxergando a todos e a tudo, o mundo de “1984”, preconizado por George Orwell, longe de se definir, vai assumindo ares de um tiro que saiu pela culatra.
Difícil de negar, bilhões de câmeras nas mãos de pessoas comuns, constituem algo ruim de se controlar, principalmente em terras acostumadas a liberdade de expressão. Cada indivíduo na sua unicidade se vê transformado em testemunha ocular da história, e em ação consciente, ou ainda por simples acidente, imagens e gravações, as mais diversas cenas, vão circular muitas vezes pelo mundo, junto a imagens de câmeras fixas, os objetos criadores de provas.
Os homens sempre foram fisgados pela boca, afirma o dito popular. Todas as palavras vão surgir. Aquelas que sempre se pôde, e sempre se quis dizer, e aquelas nas quais não se podia nem pensar. Vão surgir “do nada”, outra expressão popular. Quando tudo tiver de acontecer, lá estarão, atentas, desatentas, observando, dormitando, divertindo ou trabalhando. As testemunhas oculares da história. O homem pede, Deus dá.