Foto: Jean Gemerle
Por: Antonio Mata
Não teve jeito, foi um pé de vento daqueles, seguido de muita água. Arregaçou parte do telhado. A manhã tempestuosa deixava seus estragos pelo caminho. Os primeiros noticiários do dia davam conta dos estragos por sobre a cidade.
— Menos mal, foi tudo muito rápido e foi logo cedo. Ao menos todos puderam dormir. O que fazer do dia, a gente vai vendo aos poucos. Não dá para sair de casa e deixar o telhado como está.
Era Matias, avisando Eloisa, sua mulher que ficaria em casa para cuidar do telhado, enquanto ela seguiria para o comércio de secos e molhados como de costume.
Providenciou uma escada e subiu ao telhado para dimensionar o tamanho do estrago. Pôde então notar que os danos comprometiam algo como ¼ da cobertura.
Telhado antigo, à base de telhas de cimento amianto, algo que já não se usava mais. As telhas estavam cheias de fissuras, anunciando o fim de sua vida útil.
Não tinha mais reposição. Havia sido substituído por telhas sem amianto, que porém eram tendentes ao encharcamento. Precisaria de dezenas de telhas para reparar aquilo, e ainda assim, seria apenas uma meia sola, pois todo o resto já mostrava que deveria ter sido trocado há tempos.
— É isso mesmo que você está vendo Matias. Se reparar só a parte danificada, você vai ter um ¼ do telhado recuperado e ¾ prestes a dar problemas depois.
Este era Ailton, amigo e antigo vizinho, cujo telhado havia sido poupado. Ainda que estivesse às voltas com muita água no quintal. Subiu no telhado com o amigo apenas para compartilhar uma opinião a mais.
Matias olhava tudo sem tomar uma decisão.
— Olha, é só uma sugestão. Lá na casa do meu irmão, quando teve de reparar o telhado, trocou tudo por telhas metálicas. São inteiriças, mais resistentes e duráveis. Além disso, você não vai ter o problema de encharcamento.
Matias anuiu com o amigo e tratou de por em prática a sua sugestão, afinal todo o telhado já pedia uma substituição, ao invés de remendos que poderiam comprometer tudo depois.
Providencia tomada e serviço executado a contento, os inconvenientes daquele pé de vento logo ficaram para trás. Assim, a vida pôde seguir seu curso com o serviço na loja, na companhia da esposa.
Domingo de loja fechada e folga para todos. O casal aproveita para levantar da cama um pouco depois. Lá fora a passarinhada, com costumes e horários próprios, já tinha feito sua algazarra matinal, anunciando a manhã clara e ensolarada.
O casal ainda aproveitava as primeiras horas do dia para dormir, quando aquele negócio começou. Toc! Toc! Um pequeno intervalo e depois: Toc! Toc! Toc!
A mulher, com jeito de quem ainda não queria se levantar, põe o travesseiro por sobre a cabeça e retoma o sono.
Faz-se alguns instantes de silêncio. Dali a pouco, como se alguém estivesse batendo no telhado, começou de novo: Toc! Toc! Toc!
— Matias, o que é isso? Como se pode dormir desse jeito?
— Não faço a menor ideia.
— Faça alguma coisa, sei lá!
— Não ligue, não estrague sua manhã. Seja o que for, vai parar.
— E se não parar, não se dorme mais?
A despeito do incômodo dos moradores da casa, o barulho prosseguiu. Parava, dando a impressão que havia encerrado. Dali a pouco, aquela pancada voltava. Toc! Toc!
Eloisa fechou a cara pelo resto do dia.
Ao entardecer, o cochilo preguiçoso de Matias sobre a rede. Adepto que era de que as coisas vêm, as coisas vão. Só que além do eventual canto dos pássaros, possuía uma nova e impertinente sonorização. Toc! Toc! Toc!
Irritado, Matias retomou a escada e subiu à borda do telhado, no intuito de identificar alguma coisa. E conseguiu. Um sabiá tranquilamente sacudia o que parecia ser um grilo, ou um gafanhoto, e dos grandes.
Não entendeu direito se o propósito era amaciar, cortar o inseto em dois ou terminar de matá-lo, para então terminar de comer o bicho. O fato é que o pássaro batia febrilmente com a sua presa sobre o telhado metálico, até atingir seu intento.
O telhado novo, metálico de folhas inteiriças, reverberava aos sucessivos impactos do bico do animal, que só queria se alimentar. De fato, o culpado pela amolação atendia pelo pomposo nome de exoesqueleto. Os insetos maiores costumam ser envolvidos por essa coisa.
O passarinho tinha que quebrar aquela armadura, primeiro, se quisesse comer o bicho. Logo notou que não era apenas um pássaro. Vira e mexe, sabiás, mas também pardais se revezavam na operação da fábrica de fazer barulho.
A natureza não lhes fez um abridor de exoesqueleto. Para nós também não, aí alguém inventou o abridor de latas. Bom, é para isso que serve a inteligência. Ajuda a fazer coisas.
— Era só o que me faltava. E agora, o que fazer? Como tiro essa passarada daqui? Logo eu que não tinha nada contra eles.
Para os pássaros, as opiniões de Matias interessavam muito pouco. Afinal, estavam apenas cuidando de suas vidas. De todo modo, para o bem e alegria dos moradores do lugar, mesmo aqueles que possuíam telhados metálicos, aqueles pássaros tinham hábitos diurnos. Procurando insetos de hábitos diurnos. Imagine se fosse o contrário?
Enquanto isso, dois passarinhos conversavam. Na realidade reclamavam, daquele sujeito de pé, ali na escada. Olhando para eles com cara de mau.
— Ei, o que será que ele está dizendo? Não entendo coisa alguma.
— Não faço ideia. Deve ter passado o dia com fome ou com dor de barriga. Aí vem aqui para cima, como se nós fôssemos o grande problema da vida dele. Nem no domingo se pode comer em paz. Nem no domingo.
— Será que não quer apenas comer um inseto?
— Nem que quisesse, eu não vou dar o meu. Dá um trabalhão para quebrar.
— Tenho outro aqui. Deixa que eu mesmo quebro e dou para ele.
— Você é que sabe.
O passarinho generoso pegou gafanhoto, saltou até próximo do homem, e...
Toc! Toc! Toc! Toc!
Matias, boquiaberto com a audácia daquele pássaro abusado, começou a esmurrar o telhado, tentando tirar o bicho dali.
— Chô! Some daqui! Sai, sai, sai!
Os passarinhos, assustados e constrangidos por aquele ingrato, foram embora. Mas só por enquanto.
O morador, pensativo e de mão no queixo, imaginava uma forma de se livrar daquele problema.
— Isso não faz sentido. Resolvi um problema às custas de outro. Pior, nunca ouvi falar nisso.
Sabido ou não, os passarinhos estavam lá e cuidando de encher suas barrigas. Talvez houvesse apenas um exagero de Matias e de Eloisa. Talvez fosse por pouco tempo. Nada que um pouco de paciência não ajudasse a contornar.
O dia se transformou em uma semana, que virou um mês. Nem Matias achou uma solução, nem os passarinhos pararam de lhe tirar o sossego. O barulho diurno passou a fazer parte dos sons da casa. O principal deles.
Até que o homem se deu conta de algo que não tinha prestado atenção antes. Uma parte pequena do telhado ficava sob uma frondosa mangueira, junto ao muro, na casa do vizinho do outro lado. Foi o que lhe chamou a atenção.
— Então é isso. Eles pegam o inseto e procuram um lugar à sombra para poder comê-los, mais sossegados. É por isso que eles fazem essa amolação toda, e sempre aqui. E agora? — Perguntava Matias, enquanto falava consigo mesmo.
Só havia um problema, se Ailton era seu amigo, Laurêncio, do outro lado, era o vizinho azedo, de pouca conversa. A solução encontrada por Matias incorria em uma poda da mangueira no quintal do vizinho azedo.
Sabendo que perguntar não ofende, dirigiu-se até a casa de Laurêncio para expor a questão. Explicou que a mangueira nunca lhe foi incômodo, pois a queda de frutos, que era sazonal, ocorria a baixa altura sem apresentar problemas. Estava apenas preocupado com a questão dos pássaros.
Depois de muita conversa e esclarecimento, Laurêncio concordou em podar a parte da mangueira que chegava até o telhado de seu vizinho. Feita a poda, esteticamente ficou meio feio para a árvore, mas, ao menos o problema havia sido superado.
Em parte.
É que a mangueira se situava do lado do sol nascente, portanto projetando muita sombra sobre o telhado de Matias. Até por volta das 10:30h, Matias ainda estaria sob o risco de receber seus inquilinos do telhado.
Eloisa, como quem cutuca o seu marido, comentava.
— Quero ver quando estiver o céu nublado. Essa história de toda não terá resolvido nada.
— Não se precipite à toa. Veja que nesse caso, poderão pousar em qualquer lugar, em qualquer telhado. Vão acabar dispersando pelos telhados do bairro.
— Faço votos de que você tenha razão.
Resiliência, é a capacidade de adaptação às mudanças. Isto diz respeito tanto aos animais como aos homens que dividem os espaços da cidade.
Domingo tranquilo, preguiçoso e de muito sol. Toc! Toc! Toc! O despertador na cabeceira marcava 07:35h.