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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Triste retorno

     

          Foto: pixabay

Por: Antonio Mata 

Povos vão e vêm pela história do mundo. Fatores de expulsão, atração, fixação. Mudanças climáticas, riquezas, guerras e perseguições. A vida segue o seu curso normal indiferente aos anseios humanos. Sempre teve as suas próprias razões.
 
Forças invisíveis para uns, ignoradas por muitos, absolutamente coerentes para poucos, conduzem os grandes cenários da humanidade. Os homens não são joguetes, fantoches, bonecos ou zumbis. Todos são detentores de vontade própria, sempre com a possibilidade de fazer ou deixar de fazer. Porém, a marcha na sua totalidade, nos seus principais passos evolutivos, não é definição sua.
 
A República Centro Oriental da Banda do que já foi esquecido. Do Norte, do Sul, do Oeste? Que diferença faz? Cruzar 100 anos de dominação esgotou fisica e economicamente aquela gente. Ou seriam 200? A ideia de independência trazia novos ventos. O passado de tantas perdas não deixava saudades a ninguém. 
 
Novos ventos, novos alentos, são sempre bem vindos. Aqueles eram ventos quentes por sobre a terra seca expandindo o deserto. Teria inspirado a expressão "o deserto das mentes humanas"? Só perguntando.
 
Independência era só uma ideia. Não adiantaria perguntar, ninguém sabia o que era isso. Da experiência dos seus pais e avós, só sabia de duas coisas. Era difícil, e depois piorou. Da infância lembrava do muito que comeu de biscoitos de barro e sal. A terra seca, a água naturalmente pouca e suja. A choupana do mesmo barro, quente durante o dia, muito mais quente no verão de todos os anos. 
 
A paisagem sempre monótona, a morte a rondar-lhe os dias. As crianças morrem, os vizinhos morrem, os distantes morrem, assim se conta. Alguém veio contar. Para saber que era tudo igual. O pouco milho do plantio, o pouco arroz, disputados a ferro e fogo. A fome ronda todos os campos. A desertificação que começou e nunca mais cessou.
 
Existem aqueles que fogem para as cidades. Todos amontoados em casebres miseráveis, e a promessa de viver e morrer mais próximos. Lá trabalho não há, a comida é pouca, a água suja é pouca, O asfalto é mais quente, a vida é mais quente, a indigência é mais presente.
 
Trabalhar é carregar coisas, qualquer uma. Carregar e descarregar caminhões. Carregar em carroças ou nas costas e descarregar depois. Por comida, ou por algumas moedas. Prostituição de meninas esquálidas, em pele e osso, por tostões, por comida.
 
O caminhão tombou na estrada por conta de uma curva mal feita, pois estava rápido demais, e cheio demais. Foi assim que saquearam a carga esparramada no chão empoeirado e amarelo de terra batida. Quando chegou já haviam carregado quase tudo. Bem que achou ainda um objeto grande, de louça branca, meio quebrado na ponta, na base. De resto parecia bom e novo.
 
O século XXI prometia ser o século das descobertas. Aos 22 anos, olhando pela primeira vez para aquilo com cara de idiota, procurava entender para que diabos servia. Não bastasse estar quebrado, o fundo ainda tinha um buraco. Deve ter sido por isso que resolveram deixar aquele troço para trás. Convencido que estava da sua inutilidade, fez o mesmo. Achou que deu azar, quem sabe chega na frente depois.
 
Na noite das barrigas vazias os homens conversavam.
 
— Aqui é o inferno. — Dizia um, desalentado, olhando para o céu estrelado.
 
— Aqui é o inferno. — Concordava outro, entre a desilusão e a fome.
 
— Aqui é o inferno.
 
Já havia se propagado, já existia coro. O pensamento era um só e invadia a mente de todos. Pensamento rastilho de pólvora. Aqui é o inferno.
Era uma dúzia, duas, trinta, quarenta. Um bando de gente. Se achavam esquecidos de tudo e de todos, e uma única certeza. Aqui é o inferno.
 
As mentes haviam se fechado para qualquer possibilidade outra. Haviam desistido de vez.
 
— Temos que sair daqui, sumir daqui. Não há mais nada, as pessoas estão se matando por nada. Quem ficar, acabará morto.
 
Aquele sentimento crescia e dominava a todos no desejo desesperado de encontrar outro lugar para se viver. Já não era mais a esperança de vida melhor, era simplesmente fugir dali, sair dali. Venderam a pouca comida que havia para comprar uma vaga.
 
Adentraram as embarcações rudimentares e lotadas que ofereciam a travessia por mar. Começava a aventura quase suicida da travessia. Cruzar à noite para fugir das autoridades que não os desejavam, e os poriam de volta, deportados, sem sequer terem chegados.
 
O barco fedia, a travessia fedia. Quem vai saber de verdade quantos morreram no mar? Que tipo de registro existe em barcos clandestinos e sem nenhuma segurança? Quem vai saber da fome, da sede, da incerteza e da ilusão?
 
— Por aqui chegaram doze. Será que foram os primeiros, de lá onde nasceu a ideia de largar o inferno e cruzar o mar?
 
— Não sei não. Tem uns três ou quatro ali que eu não conheço não. Aquele magrelo que só tem um dente na frente foi o último a entrar no barco, mas ele chegou e não foi devolvido. Não tem os dentes, mas tem sorte. Foi a sorte dele que o ajudou.
 
Um terceiro, ainda perdido e pouco interessado em festejar, ainda pergunta:
 
— E agora, o que vamos fazer, como vamos sair daqui?
 
— Vamos aguardar a autorização para sair do campo. Aí então vamos para o norte. Vamos a pé, de trem, do jeito que der.
 
Ao completarem 30 dias tiveram de deixar o campo, onde recebiam comida, depois de muito tempo. Fosse com autorização para prosseguir, fosse para nova deportação. Assim, lentamente, uma parte seguiu de trem, o restante teve de avançar, até poder embarcar mais adiante. 
 
Entre sucessivas deportações e retornos, houve quem levou mais de seis meses nessas tentativas. Muitos daqueles verdadeiros indigentes sendo deportados, tornavam a engrossar a onda de imigrantes. Não é que a onda aumentasse, eram eles voltando.
 
Gradativamente vão concluindo a viagem e se reunindo no destino. A esperança de emprego ainda é limitada. As autoridades ofereceram um pequeno auxílio. A palavra auxílio se torna pouco compreendida, e para muitos o sentido simplesmente se perde. O auxílio, para a grande maioria, era mais dinheiro do que jamais obtiveram em suas vidas. 
 
Evidentemente receber um auxílio financeiro se tornava uma grande expectativa. Auxílio é dinheiro sem ter que trabalhar posto nas mãos de homens jovens. Não importava que fosse uma ninharia. Nem sabiam o que era uma ninharia, não chamariam aquilo de ninharia, não na terra miserável de onde vieram.
 
Já o auxílio, sem a contrapartida sob a forma de trabalho, pois não era salário, todos adoraram. Estava logo ali na sua frente, não precisavam buscar por ele.
 
O prato cheio de confusão estava apenas começando a ser servido. Com a barriga cheia, algum dinheiro no bolso, e a mente vazia de referências que os localizassem melhor, e sem ter que se preocupar em fazê-lo, o que também lhes prendeu a atenção naquelas terras foram as mulheres. Muitas mulheres bonitas e independentes. E muitas delas vivendo só.
 
Sentimentos distorcidos fomentados em mentes soltas e desocupadas. Aquilo corria de boca em boca, mais que o próprio rastilho de pólvora, "É bonita, é bonita, é bonita. Vive só, vive só, vive só." 
 
Não foi desprovido de propósito, mas houve quem lembrasse de episódios ligados à exploração de mulheres durante a Segunda Guerra Mundial pelo invasor opressor. Conexões da vida, fiapos de lembranças daquilo que se acreditava esquecido e sepultado. Explodiu em uma onda de estupros, sem precedentes, que ninguém imaginava que justamente ali, pudesse acontecer.
 
Ilusão demais acreditar que seriam vistos como iguais. Era praticamente impossível se aproximar delas. A ideia do auxílio como uma ninharia, talvez ajudasse a entender melhor as coisas. Naquelas terras, nas quais custaram tanto a chegar, tudo era por demais diferente. Relacionavam-se no âmbito de seus próprios grupos. 
 
Já estavam isolados. Acabaram por construir pequenas comunidades de imigrantes, onde a língua era a sua, a cultura era a sua, a religião, as ideias e mesmo as frustrações. Nada de mais, muito imigrante fez o mesmo por todo o mundo, são laços de apoio mútuo. 
 
O ovo da serpente, aquele que não se vê, pois é o fragmento, no registro de memória na mente dos homens. Ligações espirituais com o passado desajustado de cada um. Na ausência do desejo de integração, sobreveio o preconceito e o desprezo, que começou a crescer e a se tornar mútuo. 
 
Por que não sonhar, imaginar uma nova terra do seu próprio jeito? O modo de viver dos demais já não lhes dizia mais respeito. Nem a língua, a educação, a história, a música, nada. Eram muitos e na maioria homens, e por isso se sentiam fortes. Decidiram interpretar as ações de apoio ao imigrante, segundo o seu próprio modo.
 
Badernas se tornaram batalhas campais, onde a polícia local era recebida a pedradas e pedaços de pau. Surgiram as primeiras ruas e perímetros onde os cidadãos nacionais, e nem a polícia, já não tinham mais acesso.
 
Os desenganos, as desconfianças, as visões equivocadas uns dos outros, estavam todas se cumprindo. O extenso cenário de conflito se definia. Novos e antigos usurpadores. Aqueles mesmos que exploraram, depois humilharam, deportaram, assassinaram, estavam todos de volta à cena do crime.
 
O grande palco de antigos morticínios estava de volta, tudo muito bem montado, preparado para que todos pudessem receber os frutos daquilo que um dia se fez.
 
Espíritos condenados a expurgar a penúria de suas mentes guerreiras e doentias em regiões de expiação, estavam de volta às terras onde, um dia, atuaram como senhores orgulhosos e gananciosos de seus feitos de expansão e dominação, e por isso foram banidos, condenados a renascer em regiões miseráveis, de penitência e grande sofrimento no planeta Terra.
 
É o exercício da Lei de Causa e Efeito, citada pelo Mestre Galileu ao aludir ao ferro que fere.As mesmas culturas e os mesmos nacionais que agora desprezavam, são aqueles mesmos espíritos que em tempos passados foram enganados e cumpriram suas ordens, provocando o grande morticínio que marcou suas vidas.
 
Nada mais fazem do que retomar sua própria índole. Querem retornar ao mando, não importa o argumento ou a desculpa, querem o poder, querem mandar. 
 
Eles mesmos, que agora se apresentavam como imigrantes, e que em outros tempos, lhes insuflavam à soberba, ao preconceito e ao desprezo pelo outro. Isto por todos que, nos episódios da história dos homens, desgraçadamente caíram em suas mãos por diferenças políticas, ou considerados raças inferiores, ou porque simplesmente sofreram a invasão de seu país.
 
Quanto menor e quanto mais mascarado o sentimento de Deus, maior o da violência e do egoísmo. Estavam prontos e se sentiam capazes, para mais uma vez ditarem aos demais sua própria visão de mundo, de vida e de Deus. Neste mundo não há inocentes, o que existe é incompreensão. 
 
Não é o mundo que está prestes a acabar, mas o tempo da incompreensão e do desamor, para que uma Nova Terra possa se estabelecer.
 
Adentra-se o ato final de uma história que se iniciou há muito tempo nos ventos da civilização, e cujas lições ainda não foram totalmente aprendidas. Uma reprise, uma repetição em outro lugar, em outro mundo. É tudo o que irão obter. Até que suas mentes se cansem desta agonia irracional e milenar. 

 

 

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