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histórias, crônicas e contos

Tupiaçu

                                                                      Foto: publicdomain

Por: Antonio Mata

Sem interesse nenhum pelo passar do dia, pela hora que avança ou as distâncias intermináveis, tão acostumado que era com aquelas vastidões de terras e florestas. Simplesmente caminhava, como se já conhecesse todas as direções.

Se viu meio sem fala e surpreso, quando esteve de frente com aquele homem que se dizia médico. Ainda mais, médico em busca de plantas medicinais. Estranhou o que lhe parecia um súbito interesse. Afinal aquela gente não era chegada a se importar com chás, unguentos, poções dos antigos, tudo passado de um para o outro. Aprendizado que vinha desde há muito tempo.

Tupiaçu já havia assistido a várias invasões. Era por terra, por madeira, por ouro. Pensava se não seria apenas mais uma. Para roubar o quê agora? Esta era a parte que ainda não entendia. As plantas, os remédios do mato?

Pois já não tinham os comprimidos coloridos, os líquidos para injetar, os vidros cheios de xarope? Não era isso que lhes traziam quando os índios estavam doentes?

O episódio incomum suscitava dúvidas, já que o tratamento e a cura com o uso de plantas da mata, era coisa de índio. Muito pouco aceito pelos brancos. A busca diferente havia chegado e envolveria certos homens, certos índios.

Não índios, conhecedores dos espíritos da floresta. Traziam uma disputa pela coleta de grandes quantidades de plantas, de um lado. Do outro, só mais uma preocupação. Mais um esforço para que aquilo não fosse transformado em uma nova exploração abusiva.

Floresta é berço. É receptáculo de muitas coisas. É o dossel que protege da chuva e traz a sombra. É a moradia verde que traz abrigo para incontáveis plantas e animais. Desde o solo até o alto das árvores. Mesmo decompostos, é o paú e a serrapilheira que cobrem a terra e facultam a vida de superfície, favorecendo aqueles que se utilizam destes extratos orgânicos.

Não bastasse a folha de serviços impecável, eis que é chamada ao refazimento da oferta de medicamentos baseados na química e em fármacos que já não buscam mais a cura.

Guardara consigo no seu seio, e na cultura oral dos povos da floresta, os segredos da cura. No momento em que os homens amadurecem o suficiente para se deixar de lado a tradicional soberba, sobrevém a visão mesquinha da exploração predatória.

Com ela, a figura do não-índio, um tipo cínico, ávido por fazer a mediação entre a coleta de plantas medicinais e a revenda às indústrias farmacêuticas.

O não-índio surgiu da oferta indiscriminada de documentos comprobatórios de origem indígena. No entanto, toda sorte de mestiços da cidade fez registro, quando viram nisso uma vantagem. Deveriam estar somente nas mãos de indígenas.

Tais pessoas passaram a ter acesso às reservas, comunidades e terras indígenas, como se índios fossem. Quando surgiu a oportunidade da exploração e do ganho fácil, controlando a exploração silvestre, estes se apossaram da produção como se fosse um negócio organizado. A exploração moderna, disfarçada de atividade indígena havia chegado.

Os índios adentravam a mata a recolher folhas, talos, galhos e sementes. Preparavam essências e extratos. Como o sentimento comunitário junto aos verdadeiros índios não lhes é comum, estes outros usam do falso testemunho prestado para cuidarem de interesses meramente pessoais e comerciais livremente.

O resultado dessa intervenção e exploração nefasta, é que certas plantas e ervas de uso e interesse dos próprios índios, começaram a escassear, sendo preciso ir buscá-las em lugares cada vez mais distantes. Foi a situação suficientemente necessária para o ovo da serpente se fazer presente e eclodir.

Os não índios passaram a oferecer as plantas e extratos, agora considerados seus produtos, sob a forma de troca. Desde que entregassem outros, sempre em quantidades maiores. O índio agora precisava pagar, com mais trabalho, pelo que a floresta sempre lhe ofereceu, desde tempos imemoriais. Certas plantas começaram a desaparecer.

Tupiaçu assistia com preocupação a uma nova investida sobre a floresta e outra onda de exploração em detrimento dos índios. Estava evidente demais que os verdadeiros indígenas nada ganhariam com a exploração de plantas, a não ser sua escassez, pela extração indiscriminada.

— Não importa o que seja. Não importa a quantidade. Pouco ou muito, os índios acabarão sem nenhum ganho. No máximo serão chamados para fazer a coleta, recebendo em troca alguma quinquilharia.

A visão que perturbava Tupiaçu era por demais conhecida. O propósito não importava. Cumpriria sempre a lógica histórica da exploração indígena.

Descaso e expropriação, foi o que mais observou em suas caminhadas pelos sertões amazônicos. Via de regra, os índios não faziam muita ideia do que pudesse estar acontecendo, até que o malefício já estivesse feito. Sabiam pelo dano causado.

Tupiaçu deixara este mundo há mais de oitenta anos. Foi em espírito que teve toda a liberdade para caminhar, e depois para volitar por sobre as matas, conhecendo cada palmo da região. Assistiu às ondas de desmatamento, a busca frenética por ouro e outros minérios, além do avanço da criação de gado.

Estava silencioso e apreensivo. Mais que isso, sentia-se inútil. Incapaz de responder a altura. Já lhe incomodava profundamente a dificuldade para os índios reencarnarem, devido a pouca disponibilidade de corpos.

Assistiu às sucessivas levas de índios reencarnando em corpos de caboclo, o mestiço da região. Acabavam sendo encaminhados às cidades em crescimento, indo compor o substrato mais pobre e mais inculto, espalhados nas periferias urbanas, amontoados em moradias precárias, esperando por água encanada e energia. Os luxos da cidade.

Certo dia Tupiaçu recebeu uma orientação no sentido de procurar ajuda junto aos Espíritos Protetores da Floresta. Este grupo é formado por uma amálgama de espíritos. Desde antigos exploradores de indígenas e caboclos da ribeira, garimpeiros, caçadores, madeireiros e empreiteiros.

Todo tipo de espíritos que se dedicaram ao saque indiscriminado e que, arrependidos, se apresentam para a reposição do erro que cometeram. Também daqueles que, na vida material, foram defensores da floresta e de seus povos, além de simples amantes da natureza. Estes, em reconhecimento aos seus esforços e pela sua natureza pacífica, assumem a liderança destes grupos na companhia de espíritos superiores.

Estes grupos identificavam os focos de exploradores e então partiam para a difícil tarefa de intervir nos propósitos humanos de natureza predatória. Não fosse pela atuação destes grupos, criando óbices e impedimentos à exploração, ou simplesmente afugentando os animais, o dano teria sido muito maior.

São animais que desaparecem, máquinas diversas que deixam de funcionar sem razão aparente. São desencontros entre os homens, informações trocadas. O sono, o esquecimento.

Diversas estratégias são utilizadas, individualmente ou verdadeiras planificações, de modo a dificultar ao máximo a exploração. São as campanhas de desmobilização das mentes negativas dos homens.

Desde a década de 70 passaram a trabalhar e nunca mais pararam. Com o desencarne dos exploradores, o número de voluntários desejosos de se recompor ante as Leis de Deus, só cresce.

Rapidamente Tupiaçu compreendeu o valor do trabalho daquela gente. Viu um novo alento naquela forma de intervenção ativa, porém não violenta, muito menos visível. Assim, certos projetos governamentais que parecem por demais morosos e encruados, sem conseguir sair do lugar, não é que estejam encruados, é que seu tempo ainda não chegou.

Outro aspecto é que existe uma correlação entre a descoberta das riquezas amazônicas e a separação do joio e do trigo. Conhecer certas possibilidades, sem que mãos indevidas já tenham deixado este mundo, seria extremamente pernicioso, aguçando a ganância e a sede de poder. Deus proverá sim, mas no tempo certo.

Dias depois, um grupo extenso de voluntários apresentou-se para enfrentar os não índios, além de autoridades públicas interessadas em receber sua parte, em propina, para fazer vista grossa quanto ao que estava acontecendo.

O trabalho dos Protetores se iniciou dificultando as ações, onde os não índios passaram a ter dificuldades em obter informações fidedignas quanto à localização das maiores concentrações de ervas e plantas. Outra ação desmotivava os próprios índios do lugar quanto ao desejo de auxiliar estas ações.

Mais uma vez, os índios foram chamados de preguiçosos. Contudo, não era isso o que estava acontecendo. Através de sonhos e intuições espirituais, os mesmos estavam sendo intencionalmente desmotivados a participar da coleta.

Em outro nível, um segundo grupo se ocupava das câmaras legislativas, assembleias estaduais e congresso nacional, de modo a se deter o avanço indiscriminado sobre a coleta das chamadas drogas do sertão. Assim, ganha-se tempo para se organizar a exploração racional e não predatória, preservando o interesse de todos, inclusive dos índios. Neste cenário já organizado, os não índios se tornam expostos.

O que as partes envolvidas não sabiam é que o cenário, aos poucos estava sendo trabalhado para a adoção das substâncias curativas da floresta, pela substituição gradativa dos produtos medicinais utilizados em voga. Muitos destes já não buscavam mais a cura, mas a dependência do uso de medicamentos, criando uma clientela doente e cada vez maior.

Tupiaçu se viu agradecido e emocionado por conta das ações desenvolvidas e a se desenvolver. Sabia que existiam os rebeldes, que fariam de tudo para sustentar suas investidas apoiadas na ação de espíritos das sombras e sustentadas pela ganância humana. Entretanto, já podia descortinar um horizonte novo para todos.

É de ordem do Cristo de Deus que este modelo nocivo seja abandonado, com a adoção de medicamentos mais efetivos e que tragam a cura dos males. O tempo da cura chegou.

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