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histórias, crônicas e contos

Um Corgi nas ruas

                                                          

                                                                                                                                                                Foto: Lucioliu

Por: Antonio Mata

É relativamente comum que aqueles mais aquinhoados venham a desejar cães de elevada estirpe, enquanto para o espírito do cão o que importa é a experiência, o aprendizado.

O vira-lata magro das populações mais pobres  aprende a oferecer dedicação, amor, fidelidade, mesmo sob situações adversas de fome, abandono e frio.

O espírito de um cão vira-lata é de fato o mais experiente, o mais vivido. Como a escassez material não compromete de pronto seu estoque de energias sadias, eles prosseguem oferecendo-as gentilmente àqueles que se fazem seus companheiros de dificuldades, indistintamente. Sendo assim, o cão não julga ninguém, ele apenas serve.

Um cão que tenha vivenciado sua experiência terrestre nas raças de pedigree, pode se ver vitimado pela falência moral daqueles que deveriam ser seus tutores e lhes prover abrigo, atenção e alimento até sua velhice, ou enquanto durasse sua vida. Onde começa a falência do homem inicia a provação do animal. Não precisava ser assim, se o é, deve-se apenas à cegueira espiritual dos homens.

Entretanto, a espiritualidade superior, no exercício dos desígnios de Deus, e movida por pura compaixão, comumente apresenta cães já curtidos no sofrimento da Terra, no abandono cruel das ruas, para ocuparem estas vagas de animais de raça, mas que estarão sujeitos ao abandono de seus tutores, mais uma vez. O que por outro lado, não alivia de forma alguma a responsabilidade e o compromisso que estes tutores assumiram, quando ainda estavam na espiritualidade, antes de seu nascimento. Por efeito de Lei Divina terão de fazer os reparos necessários.

 

 

Na agência revendedora de automóveis, Natanael, um vendedor, havia se tornado um grande sucesso, mas não era só ele. Aproveitando os bons ventos que sopravam no mercado, realizavam vendas diárias. Tendo o feliz proprietário da loja, idealizado um turno de serviço adicional nas manhãs de domingo para atender a demanda de clientes, obtendo assim vendas compensadoras, para si, e para a equipe de vendedores.

Natanael havia se graduado em agronomia, a exemplo do pai, que sempre exerceu o ofício, tendo feito carreira como pesquisador em uma instituição especializada em ciências agrárias. Já Natanael enveredou por outros caminhos. Depois de alguns óbices rumo à independência financeira, obteve um relativo sucesso trabalhando em uma representação de máquinas e equipamentos agrícolas.

Porém, foi como vendedor de automóveis que obteve seu maior êxito. Trabalhando em uma revenda de veículos de passeio. Inicialmente veículos usados, até que um bom momento se estabeleceu, favorecendo a comercialização de veículos saídos de fábrica. Deu certo, logo o negócio se firmou. Natanael e seus colegas vendedores comercializavam carros novos como nunca haviam feito antes em suas vidas.

Casado a poucos anos com a jovem Maria Eliza, resolveu presenteá-la com um filhote de Welsh Corgi, uma raça canina muito querida pela esposa que conhecera o animal em uma exposição de cães. Uma variante de cauda curta, conhecida como Pembroke. Uma característica que Maria Luiza viu com grande simpatia, é que são baixotes (o nome Corgi vem do gaulês “corrci” que quer dizer anão), mas também são fiéis, afetuosos e cautelosos na presença de estranhos.

Ainda que na origem sejam cães de pastoreio, na cidade são cães de companhia. Na guarda, não há de se imaginar que possam meter medo em alguém, mas se saem bem como cães de alerta. Com as grandes orelhas, pelagem branca e em tons castanhos, são animais bonitos. Maria Eliza encantou-se tanto com o presente como com a surpresa. O nome do filhote, seja pela simplicidade e simpatia, seja pela pouca criatividade, acabou sendo um só, Baixinho.

O jovem casal havia optado por alugar uma casa que não precisava ser grande, mas que fosse com quintal, para que Baixinho tivesse espaço para brincar e correr. Quando o pet fez um ano de vida, ficaram patentes as suas boas características. Atencioso, alegre e muito brincalhão, Baixinho conquistou não só o casal, mas também os casais de amigos que eventualmente os visitavam, ainda que se incomodassem com o jeitão inicialmente arredio do filhotão.

Na ordem das coisas a vida do casal e de Baixinho seguiam o planejamento estabelecido pelos dois. Natanael prosseguia com as vendas na agência de automóveis e haviam combinado que Maria Eliza daria prioridade à sua graduação em fisioterapia, à qual se dedicava, adiantando as disciplinas do curso na medida do possível. O resto do dia estaria livre para estudar em casa e cuidar do Baixinho. Até aí tudo estava dando certo.

Entretanto, existem situações da vida que exigem um pouco mais de reflexão. A vida humana é feita de altos e baixos. Existe a época da fartura, da boa maré, mas esse tempo pode passar e isto pode acontecer um tanto quanto sem aviso. Uma atitude de previdência, que por aqui ainda é sinônimo de poupança, pois ficou muito gravado no imaginário popular, é sempre bem vinda para salvaguardar os interesses pessoais, mas os interesses da família também.

Só que não era bem assim que o vendedor Natanael concebia a vida. Adotara novos costumes, queria usufruir do seu trabalho. Assumiu um certo gosto e o interesse por vinhos, planejava ter uma pequena adega, ainda que meio de “h”. Aquele tipo de coisa que só a classe média explica. Novos hábitos alimentares, roupas, acessórios, mobília e aquele monte de eletroeletrônicos. Era um vendedor de automóveis, mas carro não lhe enchia os olhos.

Assim, continuou com o seu usado, muito rodado, mas conservado e eficiente. Virou um daqueles homens “branco sem praia”, e gordo.  Já Eliza, fosse por acatar as decisões do marido, fosse por pensar da mesma forma, o fato é que participava do bom momento de consumo sem maiores preocupações. No fundo achava tudo ótimo. Bastaria apenas que o cenário econômico sofresse certas mudanças para que o nível de emprego, e por consequência, o de renda, se abalasse. A bomba que derrubaria tanta gente estava sendo lentamente montada.

Quando Baixinho completou três anos o cenário mudou completamente. As vendas de automóveis despencaram, e com ela o padrão de vida de todos os funcionários. Sem expectativa de melhoria, se iniciava um processo de demissão de funcionários. Agora a realidade se mostrava particularmente angustiante para quem dependia do comercio de veículos. Sem uma mudança rápida, a loja iria fechar, e ela não veio.

Pressionado pela falta de vendas e vendo os custos de funcionamento sem nenhum retorno para cobri-los, a agência de automóveis encerrou suas atividades e demitiu todos os funcionários. Natanael se deu conta da realidade de uma forma muito pesada e repentina, ainda que já estivesse observando a diminuição das vendas, mas acreditava em um retorno breve. Ainda que as comissões estivessem cada vez menores, poderia ao menos contar com o salário nominal. Ledo engano, toda a equipe de vendas foi demitida de uma só vez.

O cenário típico que provoca o abandono de animais de raça estava pronto. Para além dos gostos e dos desgostos de quem compra animais, está a perda de renda da família. Agora Baixinho dependia dos passos seguintes e da capacidade de Natanael e Maria Eliza de se reinventarem, para usar uma expressão atual. Baixinho poderia se tornar o elo fraco desta reinvenção, pois é também um momento de se demonstrar o sentimento verdadeiro que se guarda junto a estes seres amados de quatro patas.

Os dias se arrastando sem maiores expectativas de entrada de dinheiro. As contas começam a se acumular, e o casal parte para a arte de decidir e priorizar o que vai ser pago primeiro. Na realidade, aquilo que realmente vai ser pago. Natanael, cabisbaixo, pensa um pouco antes de chamar a esposa:

— Eliza, temos uma escolha para fazer. A indenização que ainda recebi não vai durar muito. Vai ser preciso priorizar algumas despesas em detrimento de outras. Não teremos condições de pagar tudo. E logo estaremos sem dinheiro.

E prosseguiu:

— Se não vai dar para pagar tudo, logo não há mais condição de manter o Baixinho. O dinheiro não vai dar para fazer as duas coisas.

Maria Eliza, deprimida, pergunta se não haveria uma outra forma de lidar com a situação. Ainda que Natanael não dissesse nada, e de fato não disse, mas ela certamente já sabia qual era a resposta desde o início.

Então, ele acrescenta:

—Há sim uma outra possibilidade..., existe sim. É mandar o Baixinho para a casa da sua mãe. Por uns tempos..., até tudo se ajeitar, e a gente o apanha depois.

Eliza retrucou:

—Olha você sabe que a mamãe não gosta de cachorro. Diz que faz sujeira, bagunça, solta pelo e provoca alergia. Posso até tocar no assunto, mas você já sabe o que ela vai dizer.

—Está bem, mesmo assim expõe a situação pra ela, tente uma sensibilização, pois vamos precisar. Sugeriu seu marido, já acabrunhado com aquela situação. Eliza, ainda que um tanto quanto descrente, concordou.

Nestes cenários em que, por uma circunstância qualquer, a família não pode mais permanecer com o seu animal e precisa deixá-lo com terceiros, um leque de possibilidades se abre. Desde pessoas generosas que acabam recebendo o animal como se fosse deles próprios, e como tal é tratado, até situações que vão desde a falta de comida, espancamentos e abandono, ou amarrado e esquecido no fundo do quintal, pura e simplesmente.

No front doméstico, a conversa com dona Dolores, mãe de Maria Luiza, é temporariamente deixada de lado. É que Natanael consegue trabalhar como motorista de aplicativo. Pesou o fato de não possuir um veículo que estivesse em conformidade com as exigências da empresa. Seu carro não servia, alugou um veículo mais adequado, e por cerca de um ano e meio conseguiu pôr ordem nas contas, ainda que por baixo.

Entretanto, notou um fato novo. É como se de repente todo mundo tivesse resolvido fazer a mesma coisa. A oferta de motoristas de aplicativo disparou, e acabaram concorrendo entre eles próprios. Em outras palavras, o rendimento caiu. Mais uma vez Natanael se via vivendo muito precariamente. Com dois aluguéis para pagar, tiveram que deixar a casa confortável, substituída por um pequeno apartamento, no quinto andar de um prédio sem elevador.

Além disso, já não tinha mais nenhum tipo de cobertura social. Se sofresse um acidente, automaticamente ficaria sem renda. A vida havia se tornado precária. Baixinho ia aos poucos se tornando um estorvo, um gasto sem razão de ser. Desde que fora demitido, não voltou mais ao veterinário, e a ração premium que Eliza gostava tanto de oferecer ao seu pet junto com outras guloseimas, também já havia ficado tudo para trás.

Oferecia-se uma ração à base de milho e pouca proteína. Lembrava mesmo uma ração para aves. Quando a condição de renda começa a mexer na capacidade de se poder comer, é sinal de que o fundo do poço se avizinha. O casal então alegre, agora conversava pouco. Natanael tornou-se irritadiço e tendente a crises de depressão. Eliza que procurava acompanhar, ainda que em silêncio.

Eliza havia tentado conseguir trabalho para participar da despesa por várias vezes, mas o momento difícil fechava todas as portas, e se deu conta do seu despreparo para a situação que estava vivendo, parecia que nada que buscasse fazer dava certo. Decidiu conversar de uma vez com dona Dolores, sobre o apoio que poderia prestar ao casal, ficando com Baixinho.

Na manhã seguinte, logo após o marido ter saído para o trabalho, Eliza se dirigiu à casa de sua mãe, que era viúva e vivia junto com Leonardo, o filho mais novo. Ao chegar procurou rapidamente expor a situação difícil daquele momento que atravessavam e, enfim pediu ajuda. Dona Dolores lhe dirigiu as palavras nestes termos:

— Maria Eliza você sabe, e isto não é de hoje, o que eu penso a respeito de criar bichos aqui em casa. Nem quando você e seu irmão eram crianças, eu não permiti. Tente compreender isso Eliza. Leonardo não vai cuidar que eu sei, eu mesma nunca tive esta motivação. Não bastasse isto, o que você está me propondo é assumir mais uma conta. Não é mesmo?

Maior clareza impossível, Maria Eliza entendeu as palavras de sua mãe. Dois dias antes, Natanael a havia comunicado que estava chegando a hora de decidir entre ficar com o cachorro, pagar a conta de energia, ou ainda permanecer no seu curso de fisioterapia, que felizmente, era público, porém dependia do marido para pequenas despesas, e ter de pedir também estava se tornando desgastante. Era um conflito a mais.

Naquele mês, o que Natanael obtivera, subtraindo-se o aluguel do veículo e do apartamento, era menos que o habitual. Então chamou sua mulher e lhe comunicou que estaria indo para outra cidade, onde soubera de oportunidades melhores de trabalho. Iria devolver o carro alugado, assim como o apartamento e pediu que Eliza ficasse com sua mãe. Natanael estava atirando a toalha, iria tentar de novo em outro lugar.

Voltaria para a representação de equipamentos agrícolas em uma outra cidade. Quanto ao Baixinho, deixou a critério da esposa. Faria contato tão logo se estabelecesse e mandaria dinheiro tão logo isto fosse possível. Pelo menos este era o pequeno plano que concebera. E foi assim que Natanael viu seu pequeno mundo se esvair por entre os dedos tal e qual água. Sem ter o que contra argumentar, e nem vontade para fazê-lo, Eliza aceitou e foi arrumar suas coisas para o regresso à casa de sua mãe. Guardaria uns poucos objetos e todo o resto seria posto à venda.

Naquela mesma semana o casal se desfez da maior parte de seus pertences. Foi então possível, prestar mais atenção naquela enorme quantidade de tranqueiras que são compradas para ficarem guardadas, esperando uma oportunidade de uso que nem sempre aparecia. Natanael se despediu da esposa e partiu em viagem. Maria Eliza em seguida se dirigiu à de sua mãe, com o pouco que ainda ficou.

E para a perturbação de dona Dolores, apareceu com o pequeno Corgi na coleira e guia. Dolores não escondeu sua amolação, mas, deixou que o pequeno entrasse, até porque não havia naquele momento uma outra saída. Este round, fatalmente seria em outra hora, em outro dia. deixaria a filha se ajeitar primeiro, afinal era um caso de exceção e não poderia recusar a presença da filha. Era grosseria demais, até para ela mesma, pensava.

E assim se foi o primeiro mês, desde que Natanael partira e Eliza retornara à casa de sua mãe. E assim foi o segundo, e o terceiro logo passou. Com Baixinho redobrando as alegrias de Eliza, e conquistando a simpatia de Leonardo facilmente, menos a simpatia de Dolores, que estava intransigente e indisponível. O problema do final do terceiro mês, é que com ele terminou também o dinheiro disponível com Eliza.

O fruto da venda de seus pertences que havia sido dividido com Natanael para que pudesse viajar. Mas, ainda não tinha sido possível lhe repassar dinheiro algum. A provação de Dolores, junto de sua filha e, principalmente junto de Baixinho, estava prestes a começar, com o fim dos recursos da filha. Dolores irredutível, não escondia o seu desamor para com o pequeno animal.

Em uma certa manhã bem cedo, fez de conta que fechara o portão em frente de casa, mas de fato, deixando-o entreaberto. Tão logo avistou o portão, Baixinho não viu nada demais em sair um pouco e dar uma volta. E foi o que ele fez. Saiu correndo, subindo a rua, mais adiante atravessou para o lado esquerdo e adentrou pela primeira esquina que viu. Circulou alegremente pelo bairro, fez contato com outros cães de rua. Correram pularam e seguiram adiante. Em um dado momento resolveu retornar. Olhou para todos os lados e não encontrou nada que lhe servisse de referência. Decididamente Baixinho estava perdido.

Encontrou mais adiante um caminho extenso e cheio de veículos que se deslocavam na mesma direção. Na realidade era uma grande avenida que cruzava diversos bairros da cidade e então se conectava com uma rodovia. Era quase que um prolongamento da rodovia dentro da cidade. O dia encerrou-se com Baixinho percorrendo a avenida e adentrando a rodovia em busca de algo que já não aparecia mais.

A sede foi saciada em uma possa na beira da estrada. Esse tipo de água é repleta de bactérias, vírus e protozoários. Um verdadeiro coquetel de tudo aquilo que não se de levar à boca. O cenário para as infecções internas estava ficando pronto. A fome, outra igualmente muito difícil de contornar. Baixinho já era alimentado com ração muito ordinária, quando não, de restos. E agora toda a situação apenas iria piorar.

A caminhada na beira da estrada, com o tráfego levantando poeira começava e lhe proporcionar a sua primeira capa de toda sorte de sujeiras que lhe chegassem nas costas e por toda parte do corpo. Por mais que se sacudisse, se coçasse e se lambesse, o pó fino penetrava aos poucos até chegar no subpelo, sujando tudo e se aproximando perigosamente da epiderme.

Ao lamber o corpo, Baixinho criava um ambiente apropriado para o desenvolvimento de fungos e bactérias trazidos no próprio ar da estrada. Sem cuidados e perdido, um cão de raça não tem a mesma resistência e a rusticidade de um vira-lata. Está muito exposto à dermatite canina, entre outros males. Parasitas e arranhões também podem contribuir para o agravamento do quadro de saúde de um cão abandonado. Baixinho precisa de ajuda, precisa ver alguém, precisa sair da estrada.

Ao observar um pequeno aglomerado de pessoas, se dirige ao local. Pela primeira vez encontra um restaurante, ou melhor, descobre o que é um restaurante. É aquele lugar em particular onde as pessoas costumeiramente param para comer. É hora de exercitar uma das habilidades fundamentais para quem vive na rua. A arte da sensibilização de quem não quer sua presença.

Seja nas imediações do local de atendimento, seja nos fundos da casa, onde se amontoam aqueles sacos de lixo, é importante sensibilizar pessoas, se quiser comer. É a forma mais trabalhosa, porém, é também a mais “educada”. A maneira mais rápida é roubar, mas esta também cria inimigos. Então, é preferível uma lição de cada vez, se quiser ter sucesso.

Preparou-se e adentrou o local devagar procurando alguém que já tivesse sido servido. Encontrou um casal, então começou a ensaiar sua melhor cara de cachorro pidão, com os olhos bem arregalados e fixos na mulher. Sábia decisão, acostumado com as reações de Maria Eliza, das quais lembrava bem, já havia compreendido que as mulheres são mais acessíveis nessas horas.

Seguiu-se um princípio de desentendimento. O homem incomodado queria que o cão desse o fora dali:

— Some daqui vira-lata, vai encher a paciência de outro!

Foi a mulher que acorreu em sua defesa:

— Calma Reinaldo, ele só está com fome. Para um vira-lata, até que ele é bastante simpático. Só está maltratado. Jogue alguma coisa lá fora que ele vai atrás.

O homem apanhou uma cocha de frango e jogou no ar. Baixinho saiu em disparada. Ponto para ele; a necessidade é mãe da inventividade.

— Se você voltar aqui, vai tomar um chute, e quem vai dar sou eu!

Baixinho sabia que não devia ser coisa boa aquilo que o homem estava rosnando. Pelo sim, e pelo não achou melhor se afastar com o seu achado daquela manhã. Foi um bom exercício, mas teria que fazê-lo mais vezes. E não podia se esquecer dos sacos de lixo mais tarde. Seu faro rapidamente lhe mostraria o caminho, enquanto aprendia a se virar em busca de comida. Mas nem tudo se dá de uma forma tão certa assim.

Já havia destroçado a coxa de frango comendo até o osso. Nesse instante foi surpreendido por um funcionário do restaurante correndo atrás dele e querendo acertar-lhe com uma vassoura. Quanto mais corria, e depois tentava voltar, mais o homem se aproximava com a vassoura. Até que desferiu um golpe e o acertou nas patas traseiras. Com um ganido, Baixinho tombou ao chão e mais que depressa se recompôs, aquilo havia ficado perigoso. Correu mais que o homem e se afastou do local. Pelo menos por enquanto teria que ficar distante.

Vida de cachorro de rua é assim mesmo. Uma vez dá certo, outra já dá muito errado. Cachorro sem dono não é um título bem visto por ninguém, não há nada nem parecido com proteção. É preciso acima de tudo ser rápido e ágil. Uma vassourada aqui, uma paulada ali, mais uma pedrada ou um chute adiante. É bem verdade que 80% dos agressores erram seu alvo e seus apetrechos de maldade passam raspando. De certa forma, até isso ele já tinha notado. O problema maior estava, não com estes, mas com os 20% restantes. Estes machucavam de verdade.

Cachorro de rua joga roleta russa todos os dias. Tem dias que não acontece nada. Tem dias que acontece o trivial dos 80%, mas isto já faz parte da experiência de vida. O capeta, o encardido de verdade, são os 20%. Pau com pregos, pau sem pregos, pedras, seja como for, ser atingido ainda não é o mal maior. Perigoso mesmo são as lacerações, os cortes que podem provocar nas costas e nos flancos do animal.

Quanto mais profundo o corte, mais perigoso. Se for em uma parte do corpo onde não possa lamber, não poderá oferecer o cicatrizante natural que Deus depositou em sua saliva por pura bondade.

Ficará privado de seu próprio socorro, e com um ferimento aberto exposto às moscas, um prato cheio para as bicheiras (miíase), que irão comê-lo aos poucos.

Até que morra de dor, de fome, pela imobilidade e impossibilidade de obter comida, e de infecções quando as larvas começarem a consumir seus órgãos internos mais próximos. Um atropelamento talvez fosse menos cruel.

Triste fim de um ente querido de seu Criador. Exposto a ser vitimado pela ignorância e desconhecimento daqueles aos quais se apresentou no intuito de socorrê-los. Um ser enviado à Terra para promover a nobre missão de aproximação entre criações de reinos distintos, ambos igualmente nobres e destinados a um futuro tão brilhante quanto grandioso.

Ambos os seres em marcha evolutiva, sendo o cão, descompromissado de resgatar erros cometidos, pois não os possui, um grande ofertador de energias sadias, sorrisos, brincadeiras e afeto. Tudo com o propósito de amolecer o coração endurecido dos homens com suas mentes perturbadas e perturbadoras dos demais.

Oferta que não quer cessar, oferta especial do amor Divino, do Grande Espírito, de Tupã, de Manitu, do Supremo, de Deus, chame-se como quiser. O aspirante a ser inteligente se apresenta ao aspirante a anjo do Senhor.

Pelo seu valor, pelo muito que significam de esperanças de aprendizado verdadeiro, atendendo os melhores anseios de Deus, deveriam estar juntos, felizes e satisfeitos, longe do perigo indigente e traiçoeiro das ruas. A própria natureza das relações humanas tenderia a ser diferente.

Já é de conhecimento público o trabalho desenvolvido pela ciência indicando a melhoria real de enfermos e do bem-estar obtido, da parte daqueles que adotaram o compartilhamento de seus dias com um simples cachorrinho. O gesto extrapola o significado da simples posse material de um cão. Entretanto Baixinho ainda está abandonado nas ruas, e o futuro é tão incerto quanto sombrio na vida do nosso pequeno protagonista.

Exposto na chuva, sujo e magro, Baixinho é apenas uma sombra do que fora um dia. continuava vagando sem direção, vivendo um dia após o outro. A presença de outros cães, por vez, sempre era uma incógnita. Isto não significava naturalmente novos amigos para fazer companhia. Era pequeno e fraco, não podia se arriscar em disputas de qualquer espécie.

O resultado poderia ser desastroso. Até porque as pessoas não gostam de aglomerações de cães de rua. São muito mal vistas, sem falar na disputa pela pouca comida, sendo que um monte deles é maior e mais forte que ele. É bem melhor prosseguir sozinho. Prosseguia sem rumo, com os dias se repetindo, sem nenhuma expectativa de mudança. E Baixinho precisava de uma.

Estava nas proximidades de uma pizzaria, com pessoas conversando alegremente. Era final de tarde, mas a fome corroía suas entranhas. O argumento ainda era o mesmo, expor a sua cara suja de cachorro pidão nas proximidades de uma das mesas.

Procurar as faces femininas. Torcer para que não aparecesse nenhum garçom para enxotá-lo dali, ou lhe jogar pedras. Oferecer seu olhar já repleto de pus, da poeira das ruas. Estava ficando cada vez mais difícil.

A condição de Baixinho era lastimável. Sentou-se do lado de fora do salão coberto por um grande toldo. Destoava de tudo e de todos.

Na mesa poucos metros à frente, um grupo de pessoas aguarda pelo atendimento. De frente para ele uma menina de uns doze anos presumíveis estava entretida com uma revista que estava em suas mãos, e nem notou a presença do imundo Baixinho.

Ao lado estava seu pai conversando alegremente com os outros dois filhos. A família foi então servida e continuaram conversando.

A menina dividiu seu tempo entre sua fatia de pizza e a sua revista, se distanciando da conversa entre seu pai e seus irmãos. Não parecia ser nada interessante. Algo sobre futebol, um time ganhou, o outro perdeu. Faz tempo que era sempre assim. A revista da menina, a jovem Alice, trazia um artigo sobre cães. O artigo mostrava aspectos sobre uma raça específica de cães.

Que não era propriamente uma raça popular, mas, que aos poucos estava recebendo uma certa atenção dos criadores, e que aos poucos conquistava o seu público. Alice estava absorta lendo as características do animal, enquanto os homens ao lado continuavam tagarelando sem parar, sobre os últimos feitos de suas agremiações favoritas. Nada muito relevante.

João o mais velho estava de frente para ela e seu pai, portanto de costas para a rua. Já Ricardo, o do meio, estava sozinho no canto direito da mesa. Guloso, falava e comia ao mesmo tempo. Em um dado momento, Nilson, seu pai, parou de falar e começou a se incomodar com aquele bicho todo sujo, de olhar impertinente, do lado de fora, mas que não saía dali e nem tirava os olhos da mesa.

— Que vira-lata mais estranho. Falou Nilson se referindo ao cachorro pidão e sujo do lado de fora da pizzaria.

— Olha só as orelhas desse bicho. Olha só as pernas, ele tá todo errado. Ele é todo desproporcional.

— Pai fala sério. Por quê acha que chamam de vira-lata? Já viu um vira-lata todo certo? Vira-lata é todo errado. Ricardo, o guloso, de boca cheia de pizza oferecia seus comentários especializados e coerentes.

Ao se referir ao vira-lata estranho, junto com o comentário abalizado do irmão, aí sim chamou a atenção de Alice. Até que enfim o pressuposto de uma conversa que preste, ainda que fosse algo meio estranho.

E era mesmo, prestou atenção no animal todo sujo, magro e de aspecto doentio. Sensibilizava-se com a condição de absoluta precariedade e abandono dos animais que circulavam soltos pela cidade, como se já fizessem parte de uma paisagem tão suja e lastimável quanto eles próprios.

Que tal? Cães abandonados e sujos, de uma cidade abandonada e suja. Cães abandonados, gente abandonada, cidade abandonada. Vai dar tudo certo.

— Meu Deus..., pobrezinho papai. Não há nada que possamos fazer? Perguntou a menina, consternada com o que via à sua frente. Baixinho já não conseguia mais fazer cara de pidão. Só a misericórdia Divina poderia intervir a seu favor.

— Alice, até quando você pretende aparecer com essa conversa? Se eu deixasse, você iria recolher toda sorte de cachorro sarnento que aparecesse na sua frente. Terminem todos vocês que nós já vamos embora.

— Garçom, a conta por favor.

Alice se achava desolada e impotente. Abaixou a cabeça, e olhando a fotografia do animal que motivou o artigo, pensava consigo mesma, “como podem uns ser merecedores das atenções dos demais, pela sua beleza, força, agilidade, e outros viverem sem nada?”.

Nas suas aflições de pré-adolescente ainda não compreendia a ignorância e a cegueira do mundo onde vivia. Tornou a olhar para a fotografia e prestou atenção no vira-lata que estava logo à sua frente. E uma coisa então, chamou a sua atenção. Depois outra, e depois mais outra.

— Papai, quer dizer que ele tem pernas curtas e orelhas grandes?

— É o que eu vejo daqui. Não notou? Ele é um cachorro baixote.

— Papai, consegue notar a cor da pelagem dele, dá para ver?

— Ele está imundo, mas eu diria que por debaixo daquele pelo encardido, ele deve ser branco e marrom. Um baixote orelhudo, branco e marrom.

— Papai, olha a foto aqui na revista. Veja a descrição da raça.

Nilson, amoroso da filha, não queria decepcioná-la, ainda que achasse tudo aquilo uma grande bobagem. Sacudiu a cabeça contrariado e com um sorriso ligeiramente irônico no canto da boca. Mas atendeu a filha e observou a revista, a fotografia e a citação das características do animal.

Achou, meio desconfiado, que havia uma certa semelhança, em que pese o fato, do modelo vivo estar nojento. Tudo bem, era parecido, mas era só isso.

— Papai, e se for um Welsh Corgi? E se tiver fugido? E se tiver se perdido? Já viu um vira-lata com descrição em revista e tudo papai? Eu nunca vi. Na jovialidade do seu quase restinho de infância, Alice estava apostando todas as suas fichas em algo que nem ela sabia no que é que iria dar.

Nilson colocou a mão no queixo e se dirigiu a filha:

— Se você pudesse, se eu permitisse, você levaria um vira-lata de rua para casa, não levaria?

— Sim papai, só não levo porque você não deixa.

— E se fosse um Welsh Corgi como você viu na revista, você levaria?

— Só por causa disso? Eu o levaria porque agora ele é tão vira-lata quanto qualquer outro. Que diferença faz? O abandono dele é diferente? Todos sofrem igual. São todos iguais no sofrimento.

— Então, minha filha você entende que pode muito bem estar equivocada e que ele pode ser um vira-lata de verdade. Não é mesmo? E quando descobrir isto, o que irá fazer?

— Papai, não poderei devolvê-lo para a rua de novo. Eu estaria sendo injusta também, igual a todas estas pessoas que abandonaram todos estes cães.

— Então está certo Alice. Você já pode fazer sua boa ação do dia. Eu vou lhe ajudar.

— Sério mesmo? Obrigada papai!

Nilson olhou para o cachorro sujo e lhe atirou um pedaço de pizza. Baixinho abocanhou no ar e saiu correndo.

— Não, ele vai fugir! Vamos perdê-lo papai!

Nilson, que já havia pago a conta,  saiu correndo junto aos  meninos na direção que o cachorro tomou. Uns cem metros adiante conseguiram encontrá-lo. Alice se adiantou, e se aproximou do animal.

- Calma, calma amiguinho, ninguém vai machucá-lo.  Posso tocar em você, posso?

Alice tocou-lhe gentilmente, e Baixinho ficou mais sossegado. Há muito tempo ninguém o tocava daquela forma.

— Nossa, você está fedorento. Vamos para casa. Lá você poderá comer mais um pouco, mas também tomar um banho para tirar essa capa suja de cima de você.

Baixinho parecia compreender a fala da menina, e estava muito receptivo a Alice.  O cão de rua percebeu facilmente que uma boa oportunidade havia chegado e não estava disposto a perdê-la. Acompanhou Alice facilmente, até o local onde o carro estava estacionado e seguiu com a sua nova família. Os dias de rua e abandono de Baixinho haviam finalmente acabado.

Com todas as janelas do veículo abertas, pois Baixinho fedia muito, Alice, seu pai e os irmãos chegaram em casa. Alice tratou logo de descer na frente e explicar logo as coisas para a sua mãe e evitar as surpresas desagradáveis, que poderiam surgir mais tarde.

Entretanto, Geysa sua mãe, foi particularmente acessível e procurou compreender, sem maiores admoestações, o nobre gesto e os propósitos de sua filha. No caminho para casa já haviam providenciado ração, um pacote de biscoitos para o recém-chegado, além de xampu para o banho.

Alice lhe serviu um pouco de alimento e tratou de providenciar logo, um banho demorado para o novo morador da casa.

Bastou espalhar o xampu no animal e esfregar um pouco. Com aquela água suja misturada com o xampu escorrendo, a pelagem de Baixinho foi adquirindo sua coloração normal. Foi rápido que se descobriu a necessidade de um carrapaticida. Também ficaram visíveis as cicatrizes provocadas por paus e pedras lançadas em sua direção.

Felizmente, por obra do Divino suas articulações não foram atingidas, e aparentemente nenhum órgão. Alice o esfregou bastante com uma toalha, pegou-o no colo e o levou à presença dos demais que, na ocasião, estavam todos reunidos na sala.

— Senhoras e senhores, apresento-lhes um legítimo Pembroke Welsh Corgi, do rabinho cortado. Que não se deve fazer, mas já fizeram. Ele nunca foi um vira-lata, mas acho que deve ter precisado de muita força para viver nas ruas.

— Parabéns minha filha. Mas agora não acha que ele precisa de um nome?

— É mesmo mamãe, precisamos de um nome para ele. Estou aceitando sugestões.

Mas era pra já. Os irmãos de Alice são muito criativos. Um gritava, Príncipe! O outro, Barão! Ricardo: Sheik! João: Sultão! Ricardo: Baixote! João: Fugihara! Ricardo outra vez: Dart Vader! João: Esse não, Ronaldinho!

— Tá bom, já chega seus palhaços, eu mesma vou escolher! Alice pensou mais um pouco, e olhando o cãozinho no seu colo, sentenciou:

— O nome dele vai ser Patiuk.

— Como é que é, Patiuk? Indagava João repetindo aquele nome..., diferente.

— É isso mesmo, Patiuk. É simples, bonito e diferente. Disse Alice.

— Tá bom Alice, tem meu apoio no simples e diferente. Comentou Ricardo.

E foi assim que Baixinho se tornou..., Patiuk.

Vida nova, um tempo novo, família nova. Patiuk, bem tratado e feliz, rapidamente se integrou à família de sua benfeitora Alice, que agora era sua família também.

Fez o reconhecimento de toda casa e de todo o grande quintal arborizado, com frutíferas diversas. Havia mangueira, cajueiro, goiabeira, bananeira, abacateiro, e por aí vai. Tudo com muitos canteiros de plantas pelas extremidades do terreno.

Na mesa rústica feita de tábuas, a família se reunia com os vizinhos para conversar e provar frutas de época. Patiuk certamente se tornou onipresente nestes encontros, oferecendo seus sorrisos aos visitantes, desde que lhe fossem apresentados pela Alice, é claro.

E quando havia crianças se divertia, ora correndo atrás delas, e latindo muito, ora com elas correndo atrás dele.

Querido por todos e muito mimado, era sempre atencioso para com todos. Assim passaram-se os anos. Havia o passeio matinal com o Nilson, e os matutinos com Alice e Ricardo, as idas periódicas ao veterinário, os passeios na praia, com todo mundo.

Entretanto, algumas mudanças foram lentamente acontecendo. Primeiramente com João que começou a se afastar de casa com uma certa frequência, sem que Patiuk entendesse por quê. Mas estava tudo bem, João era o que menos se importava com ele.

Depois foi a vez do Ricardo que também começou a se afastar. Mas, o que doeu de verdade foi quando Alice começou a fazer o mesmo.

Patiuk se sentiu abandonado. As brincadeiras no quintal à sombra das árvores foram cessando gradativamente de uma forma muito incompreensível para ele, que ainda tinha energia para correr pelo quintal. Parecia que ninguém gostava mais de brincar.

Esperava que ao menos lhe fizessem companhia, ele que também já era um cão adulto. Estava seguro, se sentia amado quando todos estavam presentes, mas passava a maior parte do tempo sozinho na varanda, esperando alguém chegar.

Foi quando viu chegar uma moça bonita, sempre acompanhada do João, até que, com o tempo os dois se afastaram. O que Patiuk não se dava conta, é que os meninos de outrora, estavam seguindo o curso de suas vidas.

Quando Alice ingressou no curso de veterinária, João já era finalista de medicina. Já Ricardo quis viver no campo, também trabalhando com animais e foi estudar zootecnia. Assim, em um dado momento, os irmãos estavam todos fora. Então, assistir televisão junto com o Nilson e a Geysa, era a sua opção, além de ficar deitado por horas na varanda.

Por diversas vezes sua querida Alice aparecia voltando para casa junto de um sujeito meio antipático que fazia de conta que gostava de cachorro, tentando agradá-lo. Mas, Patiuk sabia que era mentira e rapidamente entendeu qual era a dele.

O malandro estava querendo levar a sua benfeitora embora. Foi a grande tempestade que se abateu sobre aquele recanto de paz e tantas alegrias, que lhe ofereceu ótimos anos muito bem vividos. Aquele sujeito acabaria por levar definitivamente a sua benfeitora para longe.

Sua querida Alice casou-se tão logo concluiu o curso de veterinária. O sinistro havia sido chamado para trabalhar em uma outra cidade, e levaria sua Alice com ele.

Tal sequência de eventos da vida praticamente definia e sentenciava a tônica do futuro da vida de Patiuk. Acordar, comer, ver televisão, descansar, comer, ver televisão e dormir.

A existência ficou diabolicamente limitada. Para um cachorro que havia vivenciado tantas coisas, e que havia sido abençoado com uma nova família, Patiuk se sentia um inútil.

As imagens de outros tempos iam ficando para trás e se perdendo, tal e qual fotografia que vai desbotando e ficando amarelada. O futuro dessa forma serviria apenas para ficar gordo, preguiçoso, ficar todo entupido e depois morrer. Ponto, tudo acabou.

Foi Ricardo que em suas andanças pelo interior, visitando propriedades e criadores de animais, e já atuando profissionalmente, quem se deu conta de algo que poderia responder melhor ao pequeno Patiuk. E quando de regresso à casa dos pais, resolveu conversar com eles a respeito do desalentado e gorducho Corgi.

Ricardo voltou a rever seus pais. Quando chegou na casa da família estavam os dois à sombra das árvores no quintal.

Relembravam episódios divertidos e alegres do passado, quando uma caneca de café na companhia dos amigos, e as crianças ao redor, valiam muito. Ricardo participou das lembranças por alguns minutos, afinal também esteve lá. Mas em dado momento puxou uma conversa pela qual vinha, até então aguardando.

— Olhem, eu estava pensando no Patiuk, sabem? Ele acabou se tornando gordo e preguiçoso, até porque está muito solitário, com poucas oportunidades para tirar proveito de suas energias. Podem ser pequeninos, mas os Welsh Corgi apreciam muito a movimentação, os exercícios.

Executavam-nos naturalmente no pastoreio. Por isso gostavam, e gostam muito do pastoreio. Patiuk tem estado apático por falta da sua condição natural, o uso de suas energias.

Já está na faixa dos dez anos, mas apreciaria muito uma rotina de exercícios moderados no campo. Quando chego aqui e ele se aproxima, ainda enxergo nele a antiga energia. Quando me afasto, enxergo a tristeza. Com Alice morando longe, e com poucas visitas, ele acabou ressentido e solitário.

Depois de expor o que pensava, Ricardo aguardou por um momento e prosseguiu:

— Recentemente fui contratado por uma fazenda que possui um rebanho de ovelhas. Como Patiuk é de origem, um cão de pastoreio, estará de volta ao tipo de vida que ele gosta. Aqui, da forma como se encontra corre o risco de morrer antes da hora. Estava pensando em levá-lo para a fazenda comigo e passar um mês com ele para ver como ele se adapta. E se desse certo, poderia passar uma temporada com vocês, outra na fazenda, e assim por diante. Vocês não o perderiam de vista, mas ele teria uma nova dinâmica em sua vida.

Geysa e Nilson apreciaram muito a sugestão de Ricardo. Afinal seria muito benéfico para Patiuk, já que Alice ao deixar a cidade junto com seu marido não pôde levar seu carrapicho  com ela.

Isto, fosse por conta de razões práticas, pois teriam que cuidar de aluguel de um apartamento, e ambos teriam que trabalhar. E a presença de Patiuk poderia ser um problema naquele momento. Sem falar que Alberto, marido de Alice, havia se casado com uma veterinária, mas não gostava de cães. Aliás, não gostava de bicho nenhum.

Profissional da área de TI, seus interesses eram outros e passavam longe dos animais. Seria necessário que, ao longo dos anos, cada um aprendesse a ceder um pouco em suas expectativas, em favor deles mesmos.

Mas Ricardo, então prosseguiu:

— Mas e aí, o que vocês acham? Alice e Alberto, quando estivessem por aqui, poderiam vê-lo na fazenda. Eu penso que o Patiuk deve gostar.

Foi Geysa quem respondeu:

— Nossa meu filho, adorei a ideia. Também acho que ele vai gostar. E poderemos visitá-lo de vez em quando. E você, o que acha? Perguntou a Nilson.

— Ora, a ideia é ótima. Tem tudo para dar certo, tenho certeza de que ele irá gostar.

— Então está combinado assim. Vou levá-lo amanhã, quando retornar à fazenda, para conhecer todo o pessoal do lugar, fazer um reconhecimento do lugar e apresentá-lo às ovelhas, assim que for possível. Vai ter um quê de novidade para ele. Poderá se adaptar aos poucos.

Mas que coisa. Para um cãozinho de companhia, que se viu na condição de cão de rua, que perambulou sob o risco de se tornar um aleijão ou de perder a própria vida, que adentrou a vida de uma outra família.

Agora, vai retornar à cena, e em grande estilo. Filme de sessão da tarde. Mas o que importa mesmo, é que a vida mais uma vez sorri para o pequeno Welsh Corgi, Baixinho, Patiuk.

Manhã de sol lindíssima, naquele setembro de início de primavera. Ricardo se levantou cedo retornando para a fazenda onde cuidava do aprimoramento de um rebanho de ovelhas. Patiuk, naturalmente já estava no banco de trás, na expectativa de “bater perninha”, uma coisa que gostava muito de fazer.

Adentrou os campos mais afastados da cidade, chegando à fazenda onde apresentou o pequeno Patiuk. O cãozinho, naturalmente reservado, ficou em silêncio junto de Ricardo, prestando atenção em tudo, mas com sua peculiar reserva. Feitas as apresentações, agora Ricardo conduzia o novo cão de pastoreio, Patiuk para conhecer suas novas companhias de dia a dia.

Acompanhava tudo com curiosidade e cheirava os bichos, buscando conhecer aqueles novos animais. Ainda que fosse pequenino, passava por entre as ovelhas do rebanho, com muita desenvoltura e sem o menor receio ou insegurança.

As ovelhas, por sua vez, o aceitaram rapidamente. Ao comando do próprio Ricardo, Patiuk se colocou ao largo dos animais e começou a conduzi-las na direção indicada, oferecendo pequenas mordidas nos cascos, e latindo muito, para que os mais desatentos se pusessem em marcha.

Era um pequeno presente o que o pequeno Corgi recebeu naquela manhã. Por ser ainda gorducho, Ricardo moderou nas atividades daquela manhã, mas foi o suficiente para que Patiuk se identificasse com o seu novo papel. Estava bastante cansado, mas feliz e satisfeito com a tarefa e as ocorrências daquela manhã. Em breve traria seus pais para conhecerem o novo cão pastor do lugar.

Na realidade, com o tempo, o pequeno Patiuk, passaria a ficar mais tempo na fazenda na companhia de Ricardo, do que deitado na varanda, na casa de seus pais. O jovem percebeu logo a preferência do pequeno pastoreiro.

Finalmente Alice pôde visitá-lo, e Patiuk, ao avistar sua protetora, que o subtraiu dos tempos mais difíceis de sua vida, saiu correndo, com as orelhas pontudas para o alto, até alcançá-la.

Estava feliz de rever a amiga de tantos anos. E Alice também, ao revê-lo tão vigoroso e ativo. Depois de festejarem o novo reencontro, Ricardo chamou o pequeno Corgi para uma demonstração de suas novas habilidades com o rebanho.

Não precisou repetir duas vezes. Patiuk, ainda vigoroso aos onze anos de idade, correu até o rebanho e começou a cercá-lo, fazendo um semicírculo, com os animais se movimentando na direção da extremidade que Patiuk deixou aberta.

Alice assistia contente a desenvoltura do pequeno amigo que um dia encontrara na rua, sujo e abandonado. Aquilo tudo era muito para ela. Então agradeceu ao irmão:

— Obrigada Ricardo. Eu mesma não teria feito melhor. Sempre quis levá-lo comigo, mas sua iniciativa foi, sem dúvida, tudo de bom. E posso ver que Patiuk adorou tudo e se adaptou muito bem.

— Que bom que tenha gostado Alice. Com uma vida ativa, bem alimentado, e cercado de pessoas que o apreciam, tem tudo para se tornar um cão de bem com a vida e muito  longevo. Foi o final feliz daquele cachorrinho que um dia encontramos na rua.

Três outras pessoas, na realidade benfeitores espirituais, interessados no bem estar de Patiuk, do outro lado da fronteira entre a terceira e a quarta dimensão, também observavam aquele final feliz.

— Bem, isto coroa de êxitos as iniciativas da pequena Alice, de tempos atrás, intuída para ser a intercessora em favor do  então abandonado e perdido Baixinho. A experiência das ruas vai servir para aperfeiçoar seu espírito ante às dificuldades e à dor. O retorno aos campos com a ajuda de Ricardo, foi uma oportunidade merecida para que tenha uma velhice digna, já que se mostrou um cão muito trabalhador, e não somente de brincadeiras.

— Sim Otaviano, mais um irmão da Criação Divina que se prepara, nos episódios mais difíceis que a Terra oferece a estes animais. Comentou Adauto, junto de Otaviano, mentor de pequeno grupo de trabalhadores espirituais, devotados ao trabalho de amparo aos animais.

— É isso mesmo Adauto. Neste momento outros tantos estão sendo preparados também, para o enfrentamento da onda de abandono que terão de vivenciar, antes que os homens sejam capazes de compreender que a onda de sofrimentos, que em breve chegará ao mundo todo, cobrando dos seres inteligentes o seu quinhão, sob a forma de reflexão pelos erros cometidos.

Continuou Otaviano:

— É no mínimo um contra senso que os homens tenham escolhidos receber cãezinhos; gatinhos; passarinhos; franguinhos; coelhinhos, e isto só para citar os mais comuns daqueles que queriam ter por perto, mas que lamentavelmente, malbaratou a oportunidade de recebê-los juntos de si e interagir com seres de outro reino, o que enriqueceria a experiência humana.

— E é muito perturbador que não tenham compreendido que estas fontes vivas de energias benéficas foram pensadas para ficar junto deles, nos lares humanos, e não nas ruas. Os homens sofrem dentro de casa, com o auxílio imediato deixado nas ruas. Comentou Hélio, o terceiro integrante do grupo de observadores.

— Também está correto Hélio. Deus lhes ofereceu milhões de animais para contribuírem aliviando suas dores, dores que já existem, além daquelas que o futuro trará. Seria particularmente útil a assepsia que fariam de um maior número de lares humanos. Ainda não é de senso comum que o homem é o grande gerador de perturbações que produz por si mesmo com o seu pensar tomado de negações à vida. Estariam mais e melhor preparados para enfrentar as adversidades de um mundo ainda de provas e expiações.

Otaviano, percebendo a frustração de seus aprendizes dedicados ao Bem, fez outra consideração:

— Porém meus amigos, não vamos nos abalar com estes pobres cenários da vida na matéria e busquemos manter as mentes elevadas. Lembremos que esta foi a lição que nos faltou quando estivemos no plano físico. Nós também já cometemos o mesmo erro.

O pequeno Corgi, correndo pelo campo, forte e alegre, era o símbolo da vida. Vida que é o grande presente oferecido a todos, infinita e bela. Vida é para sempre.

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