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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Urbanas origens

                

                   Foto: Wikimedia Commons

Por: Antonio Mata 

 

O lugar, já bastante familiar, e por mais simples e singelo que pudesse ser, para ele ali de pé, haveria de despertar profundas e vívidas lembranças. 
Quando se aceita o fenômeno da vida em suas muitas facetas, é assim. Se pobre ou rico, é só mais um detalhe. O espírito que emana de cada um é quem comanda.
 
O que de fato contou e conta é a experiência vivente, aquela que o espírito conduz, e que é capaz de enriquecer, de prosperar. Para uns, o bolso, para outros, a mente, para outros  tantos, o bolso e a mente. Assim se fez, e assim se faz a história e a vida.
 
O que separa o ser habilidoso com as mãos e capaz de cuidar de todos, algo tão marcante na vida das mulheres, por exemplo, daquele(a) de visão empreendedora, que enxerga oportunidade onde só se vê pobreza? Resposta: nada.
 
Não há diferença alguma, pois um precisa do outro. Um precisa fixar as bases para que o outro possa construir a sua própria história. O ato de cuidar é tão fundamental quanto o de empreender. Quando um é sacrificado, o equilíbrio se perde e o outro se vê prejudicado.
 
No sopé do morro a habitação modesta de pouco conforto, não deixava às vistas indicações daquilo que os homens costumeiramente chamam de prosperidade. No entanto, ela poderia muito bem-estar lá. 
 
Há um ser em particular, capaz de sustentar sonhos, ideais e iniciativas. Aqueles elementos construtores da realidade para os demais. Há de se salientar este aspecto: existe sobre a terra aqueles, que por suas próprias características são capazes de sustentar realizações.
 
Mesmo que se entenda que não são as suas. Ledo engano, tais realizações começaram exatamente ali, a partir de suas mãos. Se é tolhida em seus valores, em seus talentos, isto não é nem nunca foi responsabilidade sua. Sua presença é tão indelével, que é capaz de influenciar não só a geração logo adiante, mas também a segunda, aquela que ainda não chegou. Está somente em espírito, apenas aguardando.
 
Empurrados em um canto, por cima da placa de concreto, de pequena laje sobre o banheiro para sustentar a caixa d’água, lá estavam os objetos, meio que esquecidos e por isso, semidestruídos. Nada propriamente de valor.  
Analfabeta de acordar na madrugada para pôr a trouxa de roupa lavada na cabeça. Pegar o primeiro ônibus e se dirigir aos bairros das madames, na sua rotina de cuidar, lavar, passar e entregar.
Seus filhos já haviam ganhado o mundo, portadores de tudo aquilo que pôde lhes oferecer. A vida pobre, de poucos ganhos, mas decente. O tipo de pessoa que sempre acreditou no trabalho.
Não tinha muito tempo havia adotado um menino, já aos sete anos, pois sua mãe já não podia criá-lo. Este não perdeu contato com a família original, mas com o tempo assumiu a vida simples no sopé do morro como sendo a sua também.
Lúcida e decidida, não tirava os olhos de seu novo rebento. Quando precisava se afastar pedia para que a vizinha o recebesse por algumas horas, até o seu retorno.
 
Ensinou o garoto a respeitar os demais, aquilo que é dos outros, e a respeitar os horários. O começo da disciplina. Quando as crianças começaram a ser recrutadas para conduzir drogas, passou a solicitar ao garoto que esvaziasse os bolsos na sua presença, assim como a mochila da escola. Cenas que aos poucos o tempo levou.
 
— Umas semanas atrás, o Anísio foi arrumar um bocado de coisas aqui por casa. Jogou fora um monte de travancas que havia aí por dentro. Depois resolveu lavar a caixa d’água. Fazia era tempo que ninguém cuidava disso. Foi quando achou por detrás da caixa, mais travanca ainda.
Maura continuou a contar.
 
— Alguém meteu por lá um bocado de troço velho. Deve ter sido sua mãe mesmo. No meio daquele monturo, sabe o que foi que apareceu? Eu peguei e guardei de novo. Não quis pôr no lixo não. Sabe lá se ela não guardou pensando em você? Foi só por isso que deixei aí.
 
Os cabelos embranquecidos e sempre presos, tia Maura foi até os fundos e retornou com dois objetos. Duas coisas que faziam parte da história. Quem diria que alguém se daria ao trabalho de guardar? Ora quem, a mãe da gente.
A pequena caixa de engraxate feita com sobras de tábuas de azimbre e depois pintada pacientemente com tinta azul escuro, cedida por um dos vizinhos.
É bem verdade que Zulmira resistiu à ideia de ver seu moleque, ainda aos dez anos, na rua com caixa de engraxate na mão. A necessidade de se complementar seus ganhos modestos acabaram falando mais alto.
 
Estava tão carcomida, que se empurrasse com um dedo faria um buraco. Ainda que danificada pelo tempo, cumpria seu papel na evocação de lembranças. Afinal, por dois anos, foi como arranjou seus primeiros trocados, seu primeiro emprego.
 
Já o segundo objeto, não tão depauperado, mas nem por isso deixava de possuir suas marcas. Sim, aquela não havia sido a primeira, mas a última lata de manteiga, aquela de cinco quilos, que havia preparado com o esmero que pôde reunir.
Fazia-se uma abertura mais abaixo, na lateral da lata, colocando uma chapa perfurada por dentro. Embaixo era um braseiro. A parte de cima acomodava os pacotes de amendoim, em forma de funil, torrado, salgado e aquecidos no braseiro. Este foi o primeiro produto que ofereceu na vida. A exemplo de tantos outros garotos, era assim, vender de dia e estudar à tarde.
 
Pegou a lata, o fogareiro improvisado. Quantos garotos fizeram um daqueles? Aquele fogareiro lhe ofereceu a chance do seu primeiro dinheiro bom. O suficiente para poder fazer uma pequena poupança. Foi assim o começo de tudo, separando e guardando um pequeno excedente. Esta era a lição.
Os dias trariam algo do qual nunca havia escutado falar, e que de repente, fazia muito sentido. Fosse para sua atividade, fosse para o lugar, fosse para o produto. Tudo se viu aberto a mudança. Palavra simples repleta de significado, diversificação. Contava então quinze anos.
 
Enquanto os outros garotos gastavam seu dinheiro da venda de amendoim, Zulmira o ensinara a poupar. Todos os dias que saísse com seu fogareiro para vender amendoim, deveria guardar nem que fosse umas poucas moedas.
 
Quando a droga começou a tomar conta do morro, manteve seu filho envolvido com o amendoim. Aos poucos, acabaria participando também. 
Chegou o tempo de aplicar suas ideias sobre diversificação. A base seria o próprio amendoim. Logo faria a paçoca, e logo entenderia que só poderia vender em pacotes menores. O cone precisava diminuir. Se Zulmira acompanhava o andamento das coisas, Rodolfo buscava compreender melhor, novas formas de aumentar o seu rendimento.
 
Foi neste ponto que Zulmira, que nunca estivera fora, entrou de vez na história de Rodolfo. A venda de amendoim passou a envolver mais três garotos, enquanto Zulmira cuidava da produção do dia. Deixou a lavagem de roupa, pois sem ter que se deslocar constantemente, o desgaste era menor e a renda maior do que lavar roupa. 
Quando Rodolfo resolveu assumir a parte comercial administrativa, deixando sua lata com outra pessoa, aquilo começou a assumir ares de uma microempresa. E Rodolfo, apoiado por sua mãe, o empreendedor sem o saber.
 
Aos dezoito anos, estava evidente para o rapaz que aquilo já não era mais um negócio de sobrevivência. Estavam crescendo, um passo de cada vez.
 
Não demorou muito, chegou o pé de moleque, o doce de amendoim. Zulmira sozinha já não dava mais conta. Foi preciso contratar ajudantes para a cozinha. A casa de Zulmira no sopé do morro, também já não servia mais. Alugaram um espaço adaptado para receber a produção de doces. 
Este mesmo lugar improvisado, uma antiga oficina, receberia novas máquinas, fornos e fogões. A clientela mudou aos poucos. Em dado momento decidiram abandonar as vendas de rua e os fogareiros. O papel em forma de cones foi abandonado, substituído pelo celofane impresso e outros tipos de embalagens.
 
A comercialização de amendoim torrado e triturado, além de amendoim cru foi mera consequência. Não demorou para se chegar à pasta de amendoim.
 
A fase dos negócios do amendoim já estava madura. Conheciam a fundo os seus produtos, a produção e a comercialização. O negócio crescia, e Rodolfo contava na ocasião, vinte e cinco anos.
Lojas de doces, mercearias e supermercados se tornaram espaços mais adequados à venda. Outros grãos e produtos, principalmente à base de milho, começaram a ser oferecidos.
 
Rodolfo olhava para o fogareiro enferrujado em suas mãos e se perguntava por que razão sua mãe não quis vir com ele quando lhe ofereceu uma casa nova. Casou-se e quis que vivesse com ele, a esposa e os netos. Zulmira resistiu à ideia de se afastar de sua própria história. Com o tempo sobreveio o câncer. Seus netos eram adolescentes ainda.
Já se passavam 42 anos, desde aqueles tempos de descobertas e muito trabalho. Às vezes se perguntava como tantas pessoas têm acesso às mesmas ideias e só poucas conseguem superar os passos iniciais, e se afastar dos limites da pobreza, elo tão comum na juventude e nas famílias do país.
A poupança foi fundamental? Sim, foi. A diversificação mostrou o caminho? Sim, mostrou. A especialização do negócio também contribuiu. Mas a presença de Zulmira, atenta aos paços de seu menino, fazendo a salvaguarda, o esteio moral que o impedisse de mudar de rota, foi fundamental. 
Pôde assisti-lo se tornar um homem, e só se permitiu seu último sopro quando isto já estava concluído. Nada se deu em brancas nuvens. Entre brigas, amolações e conflitos, nunca esmoreceu ou se permitiu abandoná-lo.
 
É assim que se assume a posse dos talentos, aqueles mesmos citados na parábola, onde muitos só enxergam a história das moedas multiplicadas, ou daquela que foi enterrada, sem se dar conta do esforço para fazê-lo. A lei do Trabalho tem as suas exigências. Zulmira foi a heroína que se negou a enterrar os seus, ou os talentos de seu filho do coração. Assumiu o ônus de vê-los crescer, moral e materialmente. A lavadeira analfabeta tinha cumprido a sua missão.  

  

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