Por: Antonio Mata
No primeiro instante, chamaria pouco a atenção. Entretanto, bastava ser mais atento para notar aquilo. Parecia mais com um condomínio, sem o apelo comercial e sem ter que pagar por isso.
Essas aproximações, pois ficam de fato muito próximos, criam cenários de vida deslumbrantes, por entre arbustos, cipós, bromélias, orquídeas e as grandes árvores condominiais. Onde, contudo, se faz necessário conduzir a vida. Mas, isto sem se descuidar do perigo, de jeito nenhum.
As árvores se vêm enfeitadas com seus ninhos, habilmente trançados e firmemente construídos. Como que cachos pendentes lá do alto. Pelo menos vinte desses ninhos pendentes estavam espalhados pelos galhos superiores de duas grandes árvores.
Jasmim e Adrião, um casal de japiins, pareciam ocupados. Adrião, em sua roupagem vistosa de preto e amarelo vivo, já identificava fontes de alimento. Jasmim, hábil tecelã, caprichosamente havia concluído seu ninho pendente.
Isto sem esquecer as normas de segurança, sempre presentes. O ninho, bem trançado e fechado, de abertura pelo alto. Fixado em galho bem elevado e afastado do chão.
Se algum invasor de ninhos quisesse alcançar seus rebentos, confortavelmente acomodados no fundo daquela bolça, teria de pensar duas vezes, pois poderia se ver em uma armadilha.
O galho tinha que ser novo e flexível, pois precisava dobrar ao peso de um invasor, mas sem se partir. Ainda que conseguisse entrar no ninho, provocaria a sua queda, matando os seus rebentos, mas levando o predador junto em uma queda de mais de 20 metros. Sem tempo para tentar sair e ferido de morte.
Nesse berço fruto de muito trabalho, mas suspenso, forte e seguro, estavam seus três filhotes. Saídos da casca do ovo a pouco tempo, repousavam aguardando a próxima refeição. Foi assim que receberam Brásia, Nabuco e Donosor.
Esforçavam-se por cuidar de sua prole. Antecedendo aos possíveis perigos que pudessem surgir. Dentre eles, um era bem conhecido das aves e se destacava nas redondezas.
O velho ardiloso e esfomeado Bartolomeu, um gato maracajá, apreciador de passarinhos. Principalmente daqueles recém chegados, por conta de seus ossinhos bem moles. Constituíam uma iguaria muito apreciada. Isto, pois seus dentes, por conta da idade avançada, já não eram mais os mesmos.
— Adrião traga comida logo, enquanto faço a guarda dos bebês. Não vão demorar a acordar. Você já sabe como eles são famintos e não gostam de esperar nem um pouco.
— Deixe comigo, já sei onde encontrar um monte de mosquitos e grilos. Já tá no papo. Isso não vai ser problema nenhum. Sustente a paz no lar pois está tudo sob controle. — Adrião, prestativo e contente com a sua ninhada, era só otimismo.
— Não pode demorar. Não se deixe levar pelas facilidades da floresta. Bartolomeu não brinca em serviço. Ele sabe do tempo certo em que novos filhotes aparecem.
Enquanto reforçava a trança de cipós, folhas e pequenos galhos que davam a sustentação ao ninho, lembrava de episódios alarmantes. Coisas que comentavam as mães mais antigas.
— Não tem muito tempo, soube que ele devastou uma colônia de japiins aqui perto. Não houve bicadas nem ataques que fossem capazes de detê-lo. Os pequeninos precisam crescer e aprender a voar logo. Não há outro caminho. A floresta somente será mais segura quando souberem voar.
Adrião sabia que as preocupações de Jasmim não eram nem um pouco exageradas. Bartolomeu havia realmente agarrado diversos filhotes de uma vez só.
Ainda era um animal ágil. Um gato do mato, velho sim, mas, que de tolo não tinha nada. Enquanto vivesse não daria sossego aos pássaros daquele lado da floresta, principalmente se fossem filhotes, escondido nas noites de pouco luar.
Mesmo caindo os dentes, ainda era perigoso.
Muito antes do cinema, os felinos já eram velozes e furiosos. Como a natureza é pródiga com os seus bichos, também eram persistentes, perspicazes e astutos.
O velho maracajá do mato já cruzara os vinte anos de idade, necessitando de presas mais fáceis. Que não lhe exigissem grandes esforços. A caçada tinha que ser breve e a ação certeira.
Daí o risco para os passarinhos dorminhocos, pois Bartolomeu, como os demais de sua espécie, possuía hábitos noturnos. Esperava que se recolhessem a seus ninhos e adormecessem, enquanto os espreitava em completo silêncio.
Gatuno vivido nas lidas da floresta em busca de comida, sabia que matando os pais, o caminho estaria aberto para o seu precioso e apetitoso manjar. Contudo, paciência era fundamental.
Velho ou não, Bartolomeu matutava outras formas de agir. Rápido como um corisco, mas, sem alarde e sem barulho.
Cai a noite escura na floresta. O velho gato do mato põe à prova todo seu conhecimento e habilidade. Marotamente, para aquela particular empreitada, pois não se trata de uma comida qualquer.
Deixa chegar a sequência das luas minguante, nova e crescente.
Pouca luz para os demais, um sinal para o felino. É que seus olhos de córnea curva, com duas lentes salientes e grandes, fazendo o típico olhar dos gatos, lhes ofereciam máxima vantagem.
As pupilas se abriam nos grandes olhos, capturando toda luz e todo fóton que pudesse existir no lugar. Bartolomeu não sabia nada sobre ciência, apenas conseguia usá-la.
Os olhos na frente da cabeça lhes ofereciam o foco para a precisão de que todo bom caçador necessita. Aguarda encolhido nas imediações. A ação está prestes a começar.
O Criador é grandioso nas suas concepções e não deixaria as avezinhas desprovidas de seus próprios elementos naturais de defesa, totalmente à mercê dos predadores.
A visão dos pássaros é diferente da visão dos felinos. Os olhos postos dos dois lados da cabeça, no caso do japiim, lhe permitem enxergar em um ângulo muito maior do que os felinos.
Ainda que os detalhes sofram uma perda, por enxergarem com um olho de cada vez. Assim só enxerga melhor o que está perto. Por isso precisam ter reações rápidas ante o perigo.
Os filhotes, logo se agitavam no ninho. Um deles põe a cabeça para fora da bolsa, sondando o mundo novo lá fora. É Brásia, logo Nabuco e Donosor, empurrados pela curiosidade, fazem o mesmo.
— Mamãe, já podemos sair daqui? Aí fora é mais bonito. — Era Brásia, se dirigindo à sua mãe.
— Ainda não filha, é muito cedo. Além do que, aqui fora é muito perigoso e vocês ainda não estão prontos.
— Quando vamos ficar prontos mamãe? — Perguntava Nabuco.
— Quando já souberem voar. Quando estiverem prontos para isso. Aí poderão sair.
— Será que vai demorar muito?
— Não, só o suficiente. Agora, todos para dentro.
Bela, multicolorida e perigosa. A floresta começava a aguçar a curiosidade dos filhotes.
Bartolomeu enxergava em um ângulo de 200°, horizontalmente. Já Adrião e Jasmim enxergavam em torno dos 300°. Além disso, os olhos das aves são sensíveis à presença dos raios ultra violeta.
Os olhos das aves, definindo os raios UV como uma luz, criam padrões de cores próprios das aves. Mesmo à noite os padrões de raios UV podem ser visíveis, facilitando o reconhecimento das possíveis ameaças. Como será que enxergariam um gato maracajá, em meio à escuridão, porém iluminado por esta particularidade. Os raios ultra violeta?
Porém, com o silêncio e a imobilidade, Bartolomeu teria uma chance de se aproximar. Em passos curtos e meticulosos para não ser percebido. Isto, aliado ao sono dos pássaros seria vantajoso.
Jasmim, no afã de proteger seus filhotes, havia cometido uma possível falta, sem o saber.
É que havia situado seu ninho no alto da segunda árvore mais ao fundo da floresta, no intuito de ocultá-lo o máximo possível. A primeira árvore, possuía mais à frente, um descampado.
Isto poderia expor os ninhos ali colocados. Jasmim preferiu a segunda árvore e mais ao fundo. Longe do descampado e dos olhos gulosos dos predadores.
Enquanto isso, Bartolomeu pensava e agia de forma diferente. Também precisava se ocultar. Também precisava das sombras para poder fazer a tocaia, até o avanço final, quando todos estivessem dormindo.
Se algo indicasse sua presença, por mínimo que fosse, haveria uma grande algazarra e, adeus carne tenra e ossinhos macios. Uma boa caçada surge de uma boa conjugação de fatores.
Contornou o descampado no passo macio, deixando para trás a primeira árvore com os ninhos. Dirigiu-se para as sombras, mais ao fundo. Vestido em se casaco rajado, literalmente sumiu. Algo lhe dizia que os olhos daqueles bichos emplumados tinham qualquer coisa de diferente. Ficar às vistas, jamais.
Escalou a árvore lenta e silenciosamente, até se aproximar do galho onde estava o ninho de Jasmim e Adrião. Ambos dormiam, enquanto o perigo, sorrateiro, se aproximava.
Chegou até aonde o galho lhe permitia alcançar. Rastreou ao redor, na busca de uma rota de fuga, ante um salto certeiro. Sem, no entanto, esquecer que as bicadas de japiim machucam. Adrião cochilava no galho, logo acima do ninho pendente. Jasmim estava dentro do ninho.
Era saltar e apanhar o ninho em pleno salto. Quando Adrião percebesse, já estaria cuidando da fuga, carregando o ninho pendurado na boca com a mãe e todos os filhotes dentro. O plano, curto e eficiente, segundo Bartolomeu, era só isso.
Saltar, agarrar o ninho todo e cair sobre um galho, três metros adiante, um pouco à direita e abaixo, em outra árvore. Carregando o ninho e se afastando rapidamente dali, para evitar os sucessivos beliscões que quase lhe arrancaram um pedaço da pele, em outra operação.
Lua minguante; sombra; árvore; galho; silêncio; dorminhocos; ninho e posição. Estava tudo pronto. É agora.
Aos cuidados e dedicação de Jasmim e Adrião, fixados ao longo dos milênios, se contrapunha a inteligência, velocidade e ferocidade dos felinos.
O que se seguiu foi uma sequência de frames de poucos segundos.
O velhote saltou em força, agilidade e ferocidade. O ninho se tornaria peça indefesa em meio a tantos atributos, capazes de brindar Bartolomeu com a sua gula. O seu sonho de consumo.
Seria tudo tão fugaz, que quando se desse conta, o ninho já não mais existiria naquela árvore. Às favas com o barulho, às favas com as bicadas. O plano só não era melhor porque era um só.
Plano correto, salto correto. Por uma ironia do destino, um detalhe havia passado despercebido. Chuva leve, de uns poucos minutos havia caído no lugar. Ao anoitecer, os galhos das árvores ainda estavam úmidos.
Bartolomeu escorregou e desequilibrado, perdeu a direção do salto, passando bem ao lado do alvo. O que se pôde fazer, foi se agarrar na ponta do galho fino para não despencar de lá de cima. O ninho ficou acima de sua cabeça, mas não conseguia mais alcançá-lo. Só que isso não foi tudo.
Dependurado no galho fino, igual a uma jaca, o astuto se viu mais vulnerável que um pintinho sem a mãe por perto. A barulhada que se fez foi enorme. O solavanco chegou até o ninho, acionando piados de todos os lados.
Eram os filhotes, Adrião e Jasmim, todos promovendo uma algazarra que logo se misturou com os demais pássaros, dos ninhos próximos e das redondezas. A floresta entrou em frenesi. Tudo o que Bartolomeu menos queria.
Brásia, Nabuco e Donosor, inocentes, foram os primeiros a superar o susto. O sobe e desce do ninho, logo atraiu a mente fértil dos pequeninos.
Nabuco teve uma ideia luminosa:
— É um pula-pula mamãe! É um pula-pula!
Jasmim procurava se equilibrar e entender o que estava acontecendo.
Adrião, não demorou a observar que seu ninho esteve sob a mira do velho maracajá. Aquele bicho pendurado ali embaixo era a testemunha. Mas, o que ele achava que estava fazendo?
Com uma jaca diferente agarrada no mesmo galho do ninho que abrigava Jasmim, Brásia, Nabuco e Donosor, não havia tempo para pensar muito. Valeu-se então, de um raciocínio bem simples.
Jaca diferente agarrada em seu galho + invasor noturno = Bartolomeu.
— Gente, corre gente!! Aqui tem um invasor!! É o Bartolomeu!!
O piado cruzou o ar avisando a todos.
— Peguem o Bartolomeu, peguem o Bartolomeu!! Ele vai atacar os ninhos, depressa!
Em segundos, duas dezenas de machos faziam rasantes sobre o velho caçador, balançando agarrado no galho. Bicadas por cima. Bicadas por baixo, pelos lados, na cabeça.
Bartolomeu tinha pouco tempo para tomar uma decisão. Continuar pendurado, todo furado e perdendo um pedacinho de couro de cada vez, ou saltar e se arrebentar vinte metros abaixo.
Quando aquilo se tornou insuportável, o caçador azarado saltou buscando alcançar o troco da árvore. Conseguiu agarrar o tronco na faixa dos dez metros. Escorregou pesadamente, até quebrar as unhas e gastar suas garras no esforço de evitar a queda.
Quando o maracajá saltou, o ninho fez um movimento para cima. Como se fosse lançado por um estilingue. Agora era a vez de Brásia.
— Tá subindo mamãe, tá subindo!
— Faz de novo mamãe!
Ao descer o ninho adotou um movimento de pêndulo, sacudindo de um lado para o outro. Donosor gritava:
— Agora é um balanço mamãe! Agora é um balanço! Uhuuuu!
Eufóricos e curiosos, escalaram as paredes internas do ninho, se dirigindo para o buraco de entrada. De lá assistiam ao clima de histeria e bagunça, lá fora.
— Todos para dentro, imediatamente! — Dizia Jasmim.
Finalmente Bartolomeu tocou violentamente no chão. Já não tinha parte dos dentes. Agora perdera as garras e ainda estava todo quebrado. Seu plano de ação rápida o havia transformado em um gatinho solitário e indefeso.
Tratou de correr floresta adentro, para se proteger das rasantes de Adrião e do bando de japiins que viera em socorro. Teria de correr um bocado, pois o ultra violeta o identificava no escuro.
Quando já estava suficientemente distante, o bando desistiu da perseguição e retornou às árvores e à guarda de seus ninhos. A missão estava cumprida. Bartolomeu não conseguira devorar um único filhote sequer.
De volta ao ninho, Adrião foi verificar se estavam todos bem. Os filhotes já estavam com as três carinhas do lado de fora mais uma vez. Ao se aproximar, só lhe fizeram uma pergunta.
— Quando é que a gente vai poder brincar de novo papai?
FIM