Foto: Talisson Souza
Por: Antonio Mata
Ela havia chegado do hospital com o bebê no colo. Helen estava feliz com a chegada de sua menina. Também, Augusto que tinha ido buscá-la; na realidade toda a família. Avós, pais, cunhados, primos, todos pensavam que a família estava envelhecendo, então quando Helen e Augusto anunciaram que Maria Fernanda estava a caminho, uma onda de contentamento invadiu a todos. Os bebês têm essa capacidade, são tendentes a aproximar pessoas.
Até o Bira, um velho São Bernardo de treze anos, que acompanhou Helen desde a infância, ficou feliz quando viu a pequena Maria Fernanda pela primeira vez. Helen se abaixou para que o velho amigo a visse e sentisse o cheiro da bebê. Foi o suficiente para inscrevê-la no seu contexto familiar. Se vinha de Helen, e ela tão contente, só podia ser coisa boa.
Em apenas oito meses o círculo da vida se fechou. Se de um lado, Fernandinha veio enfeitar o lar do jovem casal, do outro Bira, idoso e doente encerrava seus dias de contato direto com seus amados. Chegava a hora de partir. A perda dos movimentos chegou primeiro. Levado às pressas ao veterinário, Helen que já percebera a gravidade da situação, teve a notícia da qual já desconfiava.
Bira estava entrando em falência múltipla dos órgãos. Animais não carregam débitos espirituais consigo, Helen já sabia que se o deixasse sofrer, só serviria para aumentar a agonia do amigo de boa parte de sua vida. Agora era vez de se fazer o que até então só tinha visto em livros e em filmes. Sentir a dor, só contida em romances, em livros que insistiam em dizer que a morte, por si só, não é o fim. Era o momento de se aprender mais um pouco.
Antes disso, é apenas uma viagem, uma ligação entre dois mundos que sempre interagiram um com o outro; em benefício de ambos. Aceitou com tristeza a recomendação sensata de seu veterinário. Enquanto ele preparava a injeção letal que encerraria o sofrimento de Bira, ela foi se despedir do amigo já paralisado; que lhe respondia com o olhar as últimas e difíceis palavras de carinho. Só quem já teve um animal querido é que de fato consegue compreender o que se passa no sentimento daqueles que se despedem.
A menina tinha acabado de completar dez anos de idade, e por conta de seu aniversário, ganhou aquele cachorrinho todo peludo. Presente de seu pai que encantou a pequena Helen por anos a fio. Bira assistiu o final da infância de sua tutora, toda a sua adolescência e parte da sua vida adulta. Por isso Helen achava tão importante levá-lo consigo quando se casou.
Também sonhava em ver o grandalhão Bira pacientemente fazendo companhia à sua bebê, enquanto ela crescia. Sonhava que a pequena Maria Fernanda poderia começar tudo mais uma vez; e conhecer seu amado amigo peludo e companheiro de jornada. Às vezes, os seres humanos se mostram intencionalmente ingênuos. É evidente que Helen sabia que isto não seria possível; não para o velho Bira.
A equipe espiritual que já aguardava pela decisão de Helen na clínica veterinária, tão logo a vida cessou no corpo adoecido de Bira, iniciou sua libertação da matéria. Desfeitos os laços que o prendiam ao corpo, o espírito Bira então pôde se levantar. Sacudiu-se do focinho até a cauda, ao modo dos cães, como quem ajeita a roupa no corpo para se considerar pronto e bem-vestido. Então, seu benfeitor o convidou para o acompanhar brevemente. Bira o fitou com olhar interrogativo.
Ao que o benfeitor espiritual afirmou “não se preocupe Bira, vamos cuidar de você rapidamente e em seguida poderá voltar para seus amigos”. É que a vida terrestre, na matéria, é repleta de miasmas, energias deletérias de baixíssima frequência que os cães, tal e qual uma esponja psíquica absorvem, promovendo a assepsia de seus tutores nos lares terrestres e salvaguardando uma humanidade doente e sofredora de pesadelos ainda maiores.
Por isso Bira precisava ser tratado antes de regressar para junto daqueles que considerava sua família, se ele assim o quisesse. De todo modo, o seu papel de esponja já havia se cumprido. Ora, mas era somente esta a dúvida de Bira. Satisfeito com as palavras de seu benfeitor, dirigiu um rápido olhar para Helen, que ainda chorava sem se dar conta de que o amigo já não estava mais no corpo inerte, mas bem ali do seu lado. Entendeu rápido que naquele momento importava mesmo acompanhar seu benfeitor, o que então pôde fazer docilmente.
Na residência do casal, ao passo de alguns dias, retomou-se a rotina habitual. Helen ainda se ressentia da ausência do amigo Bira. Acreditava que de alguma forma Deus haveria de amparar seu querido amigo de tantos anos, passeios e peripécias juntos. No seu íntimo já compreendia que Bira não havia simplesmente desaparecido, deixado de existir.
Se o Criador é infinitamente justo e bom, e Helen acreditava muito nisso, haveria de cuidar de Bira, que não fez mal a ninguém, mas que povoou sua vida e a de sua família com momentos felizes que agora se transformaram em saudades. Só não sabia como o Criador poderia intervir. Em que pese sua visão de mundo, nunca havia se interessado, ou oferecido maior atenção a tais questões, o que agora muito a incomodava.
Com a morte de Bira, seus pais lhe cederam um cão de guarda para que a casa não ficasse vazia durante o dia. Era Guará, um mestiço de pai pastor alemão e mãe vira-lata. Era um antigo conhecido de Helen dos tempos de solteira, mas que chegou bem depois de Bira. Guará continuou na casa dos pais de Helen, já o Bira acompanhou sua querida quando ela se casou e foi residir com a nova família que se formou.
Diferentemente de Bira, o antigo xodó de Helen que vivia dentro de casa, Guará ficava na varanda e no quintal no seu papel de um típico cão de guarda. Fora educado assim junto aos pais de Helen. Não tinha permissão para entrar em casa. Mas; até com uma certa frequência, Guará era capaz de ver o Bira confortavelmente deitado na sala. Quando saía de lá; era na direção do quarto para ver a bebê.
Com o passar do tempo Bira preferiu voltar para a casa de Helen e passou a levar sua vida normalmente junto do casal e da bebê Fernandinha. Entretanto; Helen e Augusto não podiam vê-lo, ainda não tinham tal capacidade, mas Bira passava a noite toda nos pés do berço da bebê, no quarto do casal, como que em guarda, pois sabia do profundo amor que a sua querida Helen ofertava à sua primeira filhota.
Era noite e Helen estava em casa, Augusto naquela ocasião ainda não havia chegado. Helen colocou a bebê para dormir, após amamentá-la. Saiu do quarto e deixou a porta entreaberta para poder ouvir o choro da bebê caso precisasse de alguma coisa. Ficou na varanda conversando com uma vizinha. De súbito, sem que ninguém percebesse, uma ratazana adentrou o quarto, vinda de um terreno baldio nos fundos da casa.
O animal começou a circular pelo quarto, na busca diária de algo para comer. Certamente que já havia explorado outros cômodos antes do quarto, sem sucesso. O que teria chamado a atenção de um roedor para dentro do quarto? Muito simples: bebês possuem um odor típico, cheiro de filhote, de carne fresca. Na ausência da mãe, este é o cheiro de presa fácil e indefesa.
Quem vai contar a história dos bebês de qualquer classe social, pois o rato, ele apenas quer comida, mas notadamente dos mais pobres, que tiveram dedos das mãos ou dos pés, couro cabeludo, nariz ou lábios roídos durante a noite? Abençoado atributo da dor que protege a todos, pois o corpinho indefeso, mas coberto de terminações nervosas, põe o bebê a gritar de dor alertando seus pais.
Não fosse por este mecanismo de defesa, a mãozinha, o pezinho, ou parte de um rostinho, tudo ainda em formação, teria sido roído no espaço de poucos minutos. Mais uma vez é verdade, o Divino pensa em tudo. Entretanto; há de se lembrar sempre que um bebê que chora, indica que existe alguma coisa incomodando. É preciso que alguém interrompa o sono e vá ver o que é.
Bira percebe a movimentação dentro do quarto e rapidamente compreende o risco e o perigo iminente. Amigo afetuoso, fiel, dedicado, corajoso, inteligente e atento, o cão já é detentor do sentimento primaz, a cola que nos conduzirá à Unidade Universal, um dia, o amor. Na escalada evolutiva o cão está um degrau acima de outros animais. Estando o cão em espírito, o rato não pode vê-lo, mas o cão enxerga o perigoso invasor. Por diferença vibracional, por ser um dos animais mais avançados da Terra.
Bira correu para fora do quarto e tentou chamar Helen, que não o viu e nem ouviu; dessa vez não poderia contar com sua querida amiga. Imediatamente correu até Guará que vagueava solto, nos fundos da casa e o chamou latindo desesperadamente até prender sua atenção. Saiu correndo e entrou pela porta da cozinha que estava aberta. Seguindo o exemplo de seu pai, Helen também adotara o hábito de deixar Guará solto no quintal. Na quele momento isto se mostrou providencial.
Guará não reconheceu a proibição de entrar na casa e adentrou a cozinha em desabalada correria atrás de Bira; sentia que havia alguma coisa errada para o Bira agir daquela maneira tão incomum. Ambos correram na direção do quarto a tempo de ver a ratazana sobre o gradil do berço, se preparando para atacar sua pequena presa macia e frágil.
Guará saltou pegando o animal pelo rabo, puxando violentamente até o bicho cair no chão sem metade da cauda. Uma barulhada começou com Guará rosnando, latindo e acuando o invasor que tentava escapar daquele quarto. Até que aquela confusão conseguiu chamar a atenção das mulheres na varanda que correram a tempo de ver a ratazana correndo rumo aos fundos da casa com Guará no seu encalço.
Helen, entre a aflição e a perplexidade correu até o berço a tempo de ver sua Fernandinha dormindo pesada e lindamente. Se acercou da bebê para ter certeza de que estava bem, pegou-a carinhosamente no colo e ficou segurando seu pequeno e precioso tesouro. Não viu o vigilante anônimo e corajoso de pé ao lado do berço. Amigo em vida, herói do outro lado da vida. Era invisível sim, mas por pouco tempo.