Foto: Pxfuel
Por: Antonio Mata
O orvalho da noite aliado ao céu muito nublado, anunciavam um dia úmido, porém muito agradável. Três cães atiçados por sobre a relva fresca corriam alegremente, de um lado para o outro. Não ligavam nem um pouco para as duas dúzias de bois, calmamente pastando logo adiante.
Nas árvores próximas, deixadas para fazer sombra para o gado, dezenas de curicas, pardais e bem-te-vis enchiam o ar com seu falatório e cantoria habituais, concorrendo com os cães na agitação da manhã.
O gado por vez, tratava de encher o folhoso. Afinal, não era todo dia que se dispunha de pasto novo e tenro, prometendo horas de paciente ruminação. Do amanhecer até às 09:30h, era este o afã. Comer, brincar e cantar. Manhã saltitante para uns, preguiçosa para outros.
Tucumã chamava os demais para aproveitarem as primeiras horas do dia.
— Venham, vamos correr até cansar. O dia está ótimo!
Jaraguá e Russo logo se apresentaram e ainda chamavam por Princesa, uma novilha de uns três meses que assistia a correria dos cães enquanto pastava.
— Vem Princesa, vem correr no campo com a gente!
— Correr aqui? Já estão todos pastando e eu ainda preciso de leite. Então, só depois.
— Depois vai esquentar e vai fazer muito calor Princesa. Vem agora, enquanto ainda está fresco.
A novilha não se importou com os apelos de Tucumã, retornando à companhia dos demais integrantes do pequeno rebanho. Somente um grupo de borboletas esvoaçantes e amarelas, voltariam a chamar sua atenção.
Elas cruzavam o campo indo se reunir próximo a vegetação de um charco. Vendo tal movimentação, a novilha Princesa se animou e saiu no encalço das borboletas, se aproximando do charco e da beira do rio.
Desatenta, acompanhava o bailado das borboletas, quando de repente, a brincadeira foi interrompida por um movimento brusco, que a puxou mais para o chão e para a beira do rio.
Atônita, Princesa berrava e se esforçava em um movimento contrário, buscando se livrar do abraço fortíssimo que recebia naquele momento e que parecia querer esmagá-la. O berro chamou a atenção de sua mãe, de alguns bois e dos três cães que corriam ali perto.
Travou-se uma luta intensa para retirar a novilha do abraço mortal de uma sucuri, que espreitava os mais incautos, entre o charco e o rio. Em meio à barulhada dos cães, sua mãe empurrava o corpo da rastejante, enquanto os bois pisoteavam a serpente, sem dó. Princesa, meio desfalecida, tentava se soltar de vez da armadilha.
Incentivados pelo ataque do gado, os cães partiram para cima do bicho asqueroso, rosnando e mordendo a sucuri em partes diferentes do corpo roliço e musculoso, porém ficando longe de seus dentes afiados e perigosos. Com isso, aumentavam a pressão sobre o invasor, que resistia a seus ataques.
A luta prosseguiu indefinida, até que, pisoteada e sucessivamente mordida pelos cães, foi ficando evidente à sucuri, que ainda não seria daquela vez que levaria uma novilha consigo.
Não suportando mais as mordidas e os pisões, largou de vez a bezerra, buscando cruzar o charco até o rio, mais uma vez.
Qual não foi a atitude dos cães e dos bois próximos, que ainda investiam contra o animal rastejante. Este por vez, buscava freneticamente alcançar o rio próximo, onde encontraria refúgio sob as águas, e a chance de recomeçar tudo em outra tocaia.
Foi azar, falta de sorte, sina sinistra de animal fracassado? Como explicar certas situações que permeiam os dias do mundo animal? Foi então aquele dia em que tudo achou de sair errado. Logo cedo, mas não poderia ter sido depois?
Não se diz que o sol brilha para todos? Por quê então, a relva fresca e úmida, ou a água convidativa dos rios, deveria ser para poucos? É claro que não!
Mergulhou nas águas do rio em busca de segurança e refúgio. Fim da linha para os seus perseguidores. Nem uma matilha de cães, muito menos o gado se atreveria a enfrentá-la ali. A sucuri agora estava em seus domínios.
— Que maldição! Faltou pouco para puxar aquela novilha. Deixe estar, ainda pegarei aqueles malditos cães. Não perdem por esperar. — Dizia a rastejante, sibilando entre os dentes, enquanto se precipitava nas águas.
Ironias à parte, havia mais animais interessados em uma bela e convidativa manhã. Nada como um passeio em família pelas águas mansas e frias do rio. Uma família de botos, por exemplo.
O pequeno filhote segue à frente, sob a supervisão atenta dos pais, acostumados que são, a cobrir de mimos e cuidados o seu único, lindo e afoito rebento.
O pequenino simplesmente nadava alegremente, fazendo pequenas piruetas dentro d’água. Se afastando e se aproximando em suas brincadeiras, como costumam fazer as crianças, sempre adiante dos pais.
Quando completou um desses alegres movimentos, subitamente deu de cara com um bicho que é sinônimo de perigo de morte. A cabeça grande a achatada, os olhos bem abertos e em fenda. A cor parda, meio esverdeada, não deixava a menor dúvida.
O bicho, já meio enfezado, pela surra que havia recebido dos cães e dos bois, havia se tornado mais feio que de costume, e mais perigoso também. Não era só o corpo. O orgulho de predador eficiente e fatal, estava por demais ferido.
De um segundo para o outro, o filhote vê a brincadeira se transformar em terror. Do outro lado daquele movimento, uma sucuri, de cara feia, na sua primeira reação, quis abocanhar o rechonchudo do rio.
Foi quando a sensatez, ou o medo da morte, caso se queira, se fez instantaneamente presente. Esses gorduchos e simpáticos filhotes não andam sozinhos. Por suculentos que pudessem parecer, suas famílias costumavam resolver as diferenças na base do cassete. Não fazia muito tempo, já havia encontrado um daqueles. As lembranças lhe ensinaram a manter distância destes belos e atraentes filhotes de boto.
Infelicidade ou não, foi tudo muito rápido. O choque se tornou inevitável. O filhote não teve a menor chance de se deter. A sucuri em fuga dos famigerados cães e bois, só pensava em adentrar o rio, e isso é tudo.
A Amazônia possui a maior concentração de água doce do planeta. Uma rede com milhares de canais que cobrem milhares de quilômetros de rio.
Tudo isso perdeu completamente o sentido naquele momento. O que a família do filhote avistou foi uma asquerosa e cruel sucuri atacando sem piedade um filhote de boto indefeso.
Não tinha mais jeito. Filhote é filhote, sucuri é sucuri. Para a serpente enorme, roliça e opressora, a classificação foi uma só.
— Você de novo?! Você aqui, de novo?! Você estava tocaiando o meu bebê?!
Era o pai do mais fofo. E não estava com cara de quem esperaria por explicações. Os quatro adultos do grupo familiar em questão de segundos, se acercaram da sucuri desastrada.
— Não! De jeito nenhum, jamais! Nunca vi um filhote tão lindo e tão sadio!
— O quê?! Você estava tocaiando o meu bebê lindo e sadio?
— Não! Jamais! É só um elogio a um botinho tão rechonchudo!
Um dos botos gritou:
— Rechonchudo para ela, é sinônimo de suculento! Eu já conheço essa rastejante!
— De jeito nenhum! Eu adoro estes botinhos!
— Eu sei, eu sei! É por isso que você os persegue!
— Não, foi um acidente! Eu estava fugindo dos cães, dos bois e até de uma novilha e de uma vaca louca!
— Você rastejante, largou os seus cães, os seus bois, sua novilha e sua vaca louca, só para pegar o meu bebê?!
A sucuri, em desespero de causa, entendeu o recado. Reuniu todas as energias de que dispunha e empreendeu uma fuga por entre os botos, o mais depressa que pôde.
Agilidade estabelecida ao longo de milênios, força que invejaria muitos animais, um réptil predador de tocaia por excelência, um dos mais perigosos da selva. Bom, tudo isso é importante, mas os dentes dos botos também são bem reais.
Agora vamos aos fatos, fazer cruzar 12 metros roliços de cobra por entre um grupo de botos, e em velocidade, lembra ou não lembra um corredor polonês?
Resposta: lembra sim, só que é pior, pois o bicho é comprido, deixando a própria pele exposta por mais tempo. Não há como comparar com um homem correndo. Não, de jeito nenhum.
Podia ser uma sucuri, porém foi o seu dia de cão.
As mordidas tão dolorosas quanto inevitáveis, frustravam os planos de uma fuga rápida. Eram dentes demais pelo caminho. As focinhadas se tornaram fatais para aquele monte de costelas.
Mal havia se curado da surra anterior e estava tudo começando de novo. Mais uma vez a serpente foi agarrada pela cauda para mais um caldo no fundo do rio, mergulhando à força e sem ar, até desaparecer na água escura.
A brincadeira não durou muito. Com o filhote em segurança, os botos se deram por satisfeitos e abandonaram a velha sucuri boiando nas águas do rio mais morta do que viva.
Ainda pôde ver o pequeno filhote de boto, saltitando satisfeito na frente do grupo, prosseguindo com o seu passeio.
Enfim, o sol ainda brilhava no céu. Contudo, era só mais um daqueles dias em que tudo parece dar errado. Recolheu-se com fome e toda moída, mais uma vez para dentro de uma gruta.