Por: Antonio Mata
O facão na mão direita desferia golpes ao léo. A espingarda de um tiro só nas costas, estava carregada. No bolso mais dois cartuchos de calibre 38. Por sinal os últimos.
Desperdiçara a munição atirando em qualquer coisa que encontrasse. Tinha sede de aprender a atirar e logo. Foi assim que queimou 11 cartuchos sem nenhum efeito prático.
Ainda assim, tinha baleado um macaco-prego castanho, de uns três quilos. O bicho escapou do local e depois morreu em agonia com o ferimento no pescoço.
Ao contar de sua façanha para os demais, sofreu muita zombaria e se sentiu exposto ao ridículo. Já que era mesmo. Mas guardou consigo a mágoa de não terem acreditado nele.
Chegou a encontrar o animal uns dois dias depois, ou o que restou dele. O buraco no canto esquerdo do pescoço era visível. Mas, fedia muito e deixou a prova onde se encontrava.
— Deixa de conversa Adauto. Tu não matou macaco nenhum. Só se foi de susto!
— Eu atirei perto da garganta. Eu vi o buraco!
— Esquece isso Adauto. Foi só um tiro acidental. Desses que a gente só dá uma vez na vida. Foi de raspão e o bicho fugiu, só isso. Aliás, você pretende ser um caçador de macacos, Adauto?
A gargalhada foi imediata. Com ou sem espingarda, com ou sem macaco. Haviam tirado o dia para malhar o Judas. Como não tivessem um, encontraram um matador de macacos.
Transtornado e humilhado, embrenhou-se na mata mais uma vez. Resolveu tomar o rumo do lago, nas proximidades do beiradão onde vivia com os demais. Bastava derivar para a montante do rio e encontrava o lago.
Diversos tipos de aves, jacarés, cotias, tartarugas e cobras, viviam nas imediações do lago. Não seria por falta de bicho. Arranjou um canto seco, uma moita e com boa visada.
Assim, teria de onde pudesse avistar a movimentação dos bichos a beber água ou circulando pelo lugar. Também era lugar de onça. Por isso não queria ficar próximo às trilhas de acesso dos animais.
Acomodou-se e esperou.
Ainda que avistasse movimentos interessantes, faltava a proximidade um pouco melhor e que o bicho sossegasse por alguns segundos para poder enquadrá-lo mais facilmente.
A manhã passou. Veio a tarde quente e modorrenta e nada de conseguir o que queria. Até que, ao prestar a atenção em árvore isolada à sua direita, notou a presença de um ninho. Talvez o dono aparecesse.
Por que não veio antes? Estaria abandonado? Ainda estava com tais pensamentos em mente, quando a silhueta à meia distância se fez perceber.
Lá vinha a ave se aproximando do ninho. Foi diminuindo a velocidade, de modo a pousar sobre o seu arranjo. A julgar pela barulhada e pelo tamanho, já tinha a sua resposta.
— É uma cigana. É bicho lento e barulhento, com o ninho na beira do lago. Se tentarem pegar a cigana agora, eu pego os dois.
Se fosse um fotógrafo, ou um cinegrafista, estaria no lugar certo. As condições mínimas para a cigana ser atacada estavam todas ali, logo na frente da câmera. Muitos likes, elogios pelo belo trabalho e dedinhos para o alto, por sinal.
Só que Adauto não era nada disso.
Apontou para a ave desajeitada na sua aproximação sem beleza e nem graça. Quando estava na iminência de tocar no ninho, de súbito, emergiu do lago uma coroa de dentes que envolveu a pobre cigana.
O ninho, posto muito baixo e a movimentação eventual, fora notada por um jacaré-açu, que apenas ficou esperando que o bicho voltasse para casa. Com água apenas para encobri-lo. Desferiu poderoso salto e capturou a ave no ar.
Exatamente como Adauto imaginara.
Ao pressentir o salto, instintivamente, calcou no gatilho. A bala atingiu o jacaré-açu pela parte branca e macia, logo abaixo da cabeça. Penetrou ferindo mortalmente o animal, que buscava se afastar com a presa à boca. Não havia como negar. Foi um tiro de mestre. Um tiro de caçador.
Chegou perto e procurou enxergar alguma coisa. Muito difícil na água preta. Até que a uns dez metros pôde avistar uma pata de lado. Então era isso, o bicho tinha sido baleado e não dava mostras de que iria escapar.
Receou adentrar o lago, pois poderiam existir outros jacarés por perto e já era tarde. Assumiu o ônus de devorarem a prova, o troféu de sua grande realização. Aquele que queria esfregar na cara da vila inteira.
A cigana, esta já não existia mais. Triturada ou afogada, esta já havia se perdido. Porém, ainda fazia parte da prova. Nem que ficasse apenas um punhado de penas.
Correu para o beiradão. Que o chamassem de mentiroso agora.
Chegou a ponto de encontrar os homens em volta do fogo contando suas histórias, suas lorotas e mentiras. Nada de mais, só para se rir um pouco e dar mais tempero às conversas.
Chegou lentamente com o facão na cintura e a espingarda na mão. No rosto o ar de satisfação de quem veio para falar. Veio para contar um conto. Daqueles no qual se aproveita e aumenta vários pontos.
— E aí Adauto, conseguiu achar o rastro da onça?
A pilhéria logo começou.
— Não, não achei não. Aliás, não vi onça nenhuma. — Falou com a segurança de caçador.
— Vichi, que o home tá arretado! — Dizia outro.
— Chegue, home, pra perto do fogo. Brincar todo mundo brinca. O que tens para contar?
— Um acerto duplo. Desses que acerta dois bicho de uma vez só. E nem era um atrás do outro. Era um dentro do outro.
— Égua da mentira, Adauto! Tá ficando abusado! Matar fêmea parida dá asar!
— Não matei fêmea nenhuma!
— E então caçador, o que foi que ocê fez?
Todos aguardavam as palavras de Adauto.
Detalhadamente, o caçador expôs sua façanha. De como se posicionara e preparou a tocaia. Até o momento, já ao final do dia, que a cigana retornava para o ninho. Disse como se deu conta da presença do jacaré. Então finalizou.
— Quando o bicho saltou para abocanhar a cigana, eu atirei.
Ficou olhando para os demais com cara de satisfação.
Ninguém falava nada. Então, sorrindo concluiu:
— Aí matei os dois. Com um tiro só.
Quando concluiu sua fala, o povo irrompeu em um acesso de zombarias, gritos, urros, e sorrisos amarelos de quase desmaiar.
— Adauto, seu filho duma égua, você é mais mentiroso que regatão quando tá sem um tostão!
— É verdade, é verdade! O bicho tá lá! — Adauto gritava desesperado.
— Lá aonde?
— Ué, lá, no fundo do lago.
— Vai, mentiroso dos infernos! — Gritava outro, seguido da zombaria habitual.
Quanto mais procurava argumentar, mais gente chegava. As mulheres, as crianças, todos queriam saber daquela mentirada que ninguém havia contado antes. Mais risos, mais zombarias.
Enfim, é assim que se conta, lá pelas bandas do beiradão, nas noites na beira do fogo. Quando um certo Adauto chegou com essa história de caçador.
Já aquele jacaré-açu com uma cigana na boca e um furo debaixo do queixo, acho que ninguém quis ir procurar. Ninguém gosta de cair nesse tipo de conversa. Não é mesmo?