Por: Antonio Mata
Já próximos ao destino a equipagem de remeiros se fazia exausta. O trajeto longo rio acima, conduzindo homens e víveres era extenuante. Estava enfiado há mais de ano naquela sina.
Outros antes dele já haviam adotado o caminho da fuga. Os homens em suas conversas fomentavam as mesmas ideias. Contudo, preferia repensar os riscos. Entre outras coisas, bem menos motivadas por uma fuga.
Era o medo e o risco. Não teria como ser diferente. Os capturados vivos eram mortos sumariamente a título de exemplo. De todo modo, os descimentos alimentavam com novos braços o trabalho forçado no serviço de remo e outras ações necessárias.
Os religiosos se opunham aos castigos corporais e às mortes de índios escravizados. Entretanto, nem sempre estavam por perto ou havia motivação para exercer sua autoridade. Itiberi, logo entenderia esta lógica. Ao final serviria apenas para prosseguir remando, até gastar os braços.
Silencioso e obediente, logo isto lhe significou apenas mais trabalho. Acompanhando seus captores, aprendera algo que lhe seria de particular valia. Itiberi era observador.
— Vamos embora daqui Itiberi. Aqui vou acabar morrendo de tanto trabalho. Que diferença faz para qualquer um de nós, morrer de espada, de tiro ou de tanto remar? O que é que muda? Vamos morrer de qualquer forma. — Ewey expunha a desgraça comum de todos em seu frustrado discurso.
Não era só Itiberi e Ewey. O resto da equipagem aqui e ali dava sinais de querer fugir. Concordavam com Ewey. Antes morrer fugindo a serem destruídos aos poucos.
— Calma, tenham calma. Sozinhos, vão nos matar um por um. Aguardem a noite chegar. Preciso falar com vocês das coisas que tenho observado, já tem algum tempo.
Os demais ouviram as palavras de Itiberi e resolveram aguardar a noite cair. Estaria ele esperando só pelas sombras da noite? Sem nenhum preparo sequer? Não Itiberi, quem o conhecia sabia que não era precipitado.
Outros tempos Itiberi, Ewey e Koda corriam livremente pelas matas e campinas. Até a poderosa onça queriam caçar. Ante o gosto e impulso cego dos mais jovens havia a experiência e vivências dos mais velhos, alertando para não matarem animais sem uma necessidade real.
Itiberi compreendia e desistia de querer emboscar a onça. A despeito de como ela gostava de fazer com outros animais. Respeitoso dos anciãos, acabou desistindo.
Quando surgiu um barco português recrutando homens para ajudar nas atividades de extração, vigilância e controle, Itiberi resistiu no início, mas acabou concordando em descer o rio.
O aprisionamento e as condições exploratórias do trabalho somente ficaram mais evidentes mais tarde. Tornou-se índio-remo. Era esta a sua contribuição à coroa e à colônia. Quando Itiberi se deu conta do engodo, já era tarde. Estava muito afastado de sua gente e cada vez mais próximo dos brancos.
O relacionamento com os homens brancos era tomado de muita ambiguidade. Mulheres brancas, na região não existiam. Alguns remeiros achavam que era por isso que visavam tanto as índias da região. Talvez viessem de um povo diferente, onde estivessem às voltas com poucas mulheres.
Por alguma razão, ainda não muito bem esclarecida, queriam muitas crianças. As índias com frequência apareciam grávidas. Outro comportamento observado por eles. Os brancos, por mais que subissem os rios e se afastassem das suas mulheres índias, faziam questão de voltar a proteger todas as suas crianças. Aceitavam todas. Independente de serem meninos ou meninas.
Para não dar confusão, usavam o nome da família do pai. Assim, no meio de tantas crianças brincando no terreiro, ficava fácil saber de quem o menino ou menina era filho.
De certo que havia nisso uma distinção. Pois, alguns brancos tinham mais liderança que outros. Suas crianças mestiças herdavam, ainda que em parte, a sua autoridade diante dos demais. Os índios não estranhavam isso, já que nas aldeias ocorria algo muito parecido. A filha de um chefe, seria sempre a filha de um chefe. Todos tinham que saber disso.
Outra coisa que era fácil de notar. Quando surgiam crianças de pele mais clara, ou mesmo brancas, traziam estas para mais perto de si. Quando se tornavam rapazes e moças, os rapazes eram treinados para a liderança de soldados mestiços, ante a possibilidade de guerra. Já as filhas mestiças mais claras e, particularmente, as de pele branca, quem explicava era Koda.
— Sabe aquela moça bonita, aquela branca, a filha do capitão João do Carmo? É a Maria da Conceição. Vai fazer quinze anos. O capitão antes de partir, deu ordem às demais para que não tirassem as vistas de cima dela. Também, para que ela fosse tratada como se fosse de ouro.
Acordos e alianças políticas entre autoridades da coroa em uma terra muito distante. A juventude, a beleza e a raridade femininas, aproximando pessoas e fazendo a história.
Já os homens, os índios descidos, estes ficariam à margem de qualquer coisa que pudessem chamar de história.
A noite caiu logo e silenciosamente. Pôde se reunir com outros quatro índios-remo. Havia curiosidade para com as palavras de Itiberi. Uma sublevação, a tomada do campo? Ou simplesmente uma fuga rápida, deixando os portugueses sem remos.
— Antes de tudo, preciso lhes contar uma coisa. — Sem dúvida que todos queriam lhe ouvir.
— Acompanhei estes homens em viagens que a maioria de vocês não chegou a fazer. Ewey estava comigo, só não sei se prestou atenção nas mesmas coisas que eu.
— Ora Itiberi, basta dizer e eu vou saber.
— Está bem, agora prestem atenção e falem baixo. Em uma das viagens remando o barco, os acompanhei quando realizavam um ataque a uma aldeia que havia se sublevado.
Os demais arregalaram os olhos.
— Nossa, eu não sabia disso não! — Dizia Ewey.
— Fale baixo, eu sabia que não. Eu os ouvi conversando. Faziam os preparatórios para atacar durante o dia, uma aldeia que não quis fazer o descimento. — Parou um instante, encarando os demais, muito interessados em lhe ouvir.
— Vi quando retiraram de uma caixa várias bolas de ferro, feitas para se segurar com a mão. Depois, vi quando pegaram bolas de barro. Pude ver que havia um furo onde colocavam uma espécie de cordão. Deixaram tudo guardado. Quando chegaram na aldeia, fizeram a parte que você viu Ewey.
— Sim, claro que eu vi. Esse negócio fazia fogo, muito barulho e muita fumaça. Todo mundo ficou louco. Os homens gritavam, as mulheres choravam.
— Além de barulho, fogo e fumaça Ewey, aquilo também matava. A força do fogo corta sua carne e te mata.
— Itiberi, você está pensando em roubar as bolas de fogo dessa gente? Acha que você consegue?
— Claro que não Ewey, claro que não!
Foi Koda quem retomou a conversa.
— Ora, se você não tem um plano para roubar as bolas, como vai fazer para conseguir essa coisa?
— Nós vamos fazer, Koda. Vamos fazer as bolas. Aquelas muito duras não, mas as outras, as de terra vermelha misturada com água. Quando secam se põe para assar lentamente na lenha. Igual como se faz uma panela de barro.
Os sorrisos se abriram nos rostos dos esquecidos de Tupã, assim pensavam. Itiberi podia muito bem ter razão. Armados com bolas fogo e trovão, poderiam partir para cima dos portugueses quando estivessem próximos das famílias índias e das crianças.
Não pretendiam matá-las. Nada tinham contra elas. Queriam somente os homens brancos cheios de barba na cara. Os verdadeiros mandões e responsáveis pelos descimentos.
Itiberi, junto aos demais começou a tramar sua pequena, perigosa e explosiva revolta. Caso desce certo, o susto aplicado nos portugueses poderia se estender a toda região.
A partir de suas observações, descobrira como utilizavam pequenas pedras de pederneira. Uma forma simples e rápida de se obter fogo em ambiente seco.
Finalmente, teriam em suas mãos algo que os invasores respeitavam. O fogo que queima e mata. Fizeram uma estimativa e chegaram à conclusão de que, para eliminar o ínfimo grupo de portugueses, bastariam umas dez bolas de fogo. Entretanto, por segurança, combinaram fazer 15 bolas.
Nos dias que se seguiram, começaram os preparativos nas noites por entre os poucos intervalos entre uma viagem e outra que pudessem dispor. Na realidade foram vários meses.
— Itiberi, está faltando uma coisa. Você não vê? Essas bolas vão ficar assim, vazias? O que vamos colocar dentro? Tem alguma coisa que se coloca dentro? — Ewey, preocupado, fazia uma importante interrogação.
— Já vinha pensando nisso. Lembro de que costumam pegar uma espécie de areia preta, que carregam dentro de barricas. Cada um pegava um pouco para carregar consigo. É quando vi colocarem nas bolas de fogo também.
— Você está cada vez mais doido, Itiberi. Como vai conseguir pegar uma dessas barricas?
— Não estou não Ewey. Apenas confie e vamos adiante. Quando chegar a hora você vai ver. — Ewey olhava para o amigo e companheiro de infortúnio e sorria. No fundo confiava na capacidade de Itiberi lhes guiar em um grande plano. Em outros tempos, Itiberi teria se tornado um grande guerreiro e um líder.
Colocando para cozer no fogo baixo, uma ou duas por vez e em sigilo, aproveitando o resto de fogueiras. Finalmente as bolas de fogo foram preparadas, preenchidas e receberam uma espécie de pavio, feito com palha torcida misturada com óleo de breu, uma seiva inflamável.
As armas estavam prontas. Os homens estavam prontos. Bastava aguardar o melhor momento para a insurreição. O grupo rebelde foi fixado em seis índios-remo. O suficiente para atacar os portugueses em duas ações sucessivas. Uma dúzia de bolas explodiriam sobre sua cabeças. Apenas quatro portugueses.
As bolas de fogo feitas pacientemente, foram discretamente dispostas em um fundo falso, dentro da própria galeota, quando decidiram iniciar a revolta.
Com a morte dos líderes, acreditavam que a tropa de mestiços e índios abandonaria o combate. O plano era simples e tinha uma boa chance de dar certo.
Chega o momento da ação. A galeota conduzindo os portugueses, acompanhada de quatro canoas longas, conduzindo 30 guerreiros cada uma, atracou junto a uma aldeia que parecia abandonada.
Os líderes desceram em terra para averiguar. Os remeiros permaneceram na galeota, sem que os portugueses percebessem que os deixavam juntos de suas armas letais.
Os portugueses avançaram na direção do terreiro, no centro da aldeia vazia. Valendo-se da amurada da galeota para esconder suas mãos, Itiberi apanhou uma pederneira (recolhida discretamente dos próprios portugueses) e fez fogo em um pequeno archote cheio de breu. Então passou aos demais para acenderem mais archotes.
Dia após dia, os índios haviam ocultado duas bordunas e pedaços de paus por debaixo dos bancos da galeota. Já somavam doze revoltosos. Metade dos remeiros da galeota.
Ao sinal de Itiberi os seis remeiros que dispunham de granadas e pavios embebidos em breu, saltaram para fora da embarcação e ato contínuo, acenderam o pavio das granadas arremessando contra os homens brancos.
O episódio que se seguiu era uma mistura de espanto, medo, desespero e retomada da realidade. Tudo em uma sequência de não mais que cinco segundos.
Não houve tempo para os portugueses prestarem atenção no que Itiberi e os demais estavam fazendo, ocupados que estavam vasculhando o centro da aldeia e desejosos de avançar.
Quando olharam para trás, não foi ao sabor do acaso. Itiberi e seus homens gritavam e lançavam suas granadas. Só houve tempo de observarem as bolas de argila no ar, com o pavio queimando e voando na direção deles.
As granadas caíram bem em seus pés. Meia dúzia de granadas acessas. Estupefatos, ainda gastaram uns dois ou três segundos para entender o que se sucedia. Foi quando uns correram, outros se atiraram no chão.
— Granadas, granadas! Sumam daqui isso vai explodir!
Homens correndo, homens atirados no chão com as mãos na cabeça. Um, dois, três, cinco, dez segundos.
Para a alegria de uns e desgraça de outros, nada aconteceu. Por algum motivo hediondo, as granadas, nenhuma delas, foi capaz de explodir. Fossem índios ou brancos estavam então, todos paralisados, embasbacados.
Deixou o seu torpor e atirou-se na refrega contra os portugueses. Itiberi, armado com uma borduna investiu contra o primeiro homem logo à sua frente. Com um golpe de espada o ataque foi detido. Itiberi vira-se rapidamente e atinge o homem no joelho.
Em desequilíbrio e caindo para a direita, seu segundo golpe de espada se perde. Itiberi torna a virar e acerta um golpe no alto de sua cabeça. Um a menos.
Os outros homens que acompanhavam Itiberi, rompem o torpor, correm e abatem mais um dos invasores. O terceiro dispara sua pistola. Atingido no meio do peito é Itiberi que cai. Os outros dois portugueses, vendo o combate e a ineficiência das granadas, retomam o estado de atenção e agora investem contra os índios.
Já estavam mal armados desde o começo. Com a morte de Itiberi, os demais homens sentem a derrota se aproximar. Com golpes de espada, começam a ser eliminados um por um.
Quando os remeiros restantes decidem ingressar na refrega, as duas últimas pistolas carregadas fazem com que permaneçam no barco. A rebelião havia encerrado.
Os índios nas três grandes canoas que acompanhavam a galeota, meio embasbacados, apenas assistiam. Também haviam ficado perturbados com o lançamento das granadas de argila. Aliás, artefatos antigos, mesmo na Europa.
Já detidos nas canoas, desconheciam completamente aquela arma. Buscavam entender a cena burlesca. Os amotinados de Itiberi atirando aquelas bolas nos portugueses, e estes se atirando no chão e correndo como crianças.
As bolas pareciam ter alguma espécie de poder mágico, perigoso e desconhecido. Magia que apavorava os homens. Aguardaram para ver o que era.
Quando os portugueses retornaram à galeota ameaçando com suas pistolas e espadas. Estas armas os índios conheciam. Ninguém quis questionar suas ordens. Afinal, havia meia dúzia de índios mortos na entrada da aldeia. Isso foi tudo.
Com os olhos bem abertos durante os dias seguintes, os três portugueses restantes retornaram para o fogo, o acampamento, na foz do rio menor. Onde um ponto fortificado, em adobe, estava há vários dias sendo construído.
Próximo da chegada, Alencar um dos que correra por conta das granadas. Mas, agora um dos sobreviventes, mostrava uma das bolas de argila, da qual tinha retirado o pavio de breu e palha.
— Veja só isto. Retirei o pavio, veja só o que tem dentro.
O outro homem chegou mais perto e olhou para o artefato.
— Imaginei que a pólvora estivesse molhada dentro dessa desgraça. É a única explicação.
— Não é não. Tem outra coisa.
— Outra o quê? O que tem aí dentro?
— Veja você mesmo.
Alencar entorna um pouco do conteúdo em sua mão. O outro homem se apressa em tocar e sentir o que era.
— Isso é terra! Isso é terra!
— Fale baixo homem, não faça alarde! — Alencar repreendia o seu companheiro, este abismado com a patética descoberta.
— Quem foi o desgraçado, o imbecil, o burro que fez isso?
— O mesmo desgraçado, imbecil e burro que assegurou a manutenção da sua vida. Ele não conhecia a pólvora. É só por isso que você está aqui, voltando para o fogo e para o forte. Dois dos nossos estão mortos agora. — Alencar parou para pensar.
— Não conte isso a mais ninguém. Vou comunicar apenas que houve uma rebelião e que dois dos nossos morreram, além de seis índios. Se souberem de todo o resto, vão morrer de tanto rir de nós. Correndo de granadas, cheias de terra preta de índio. Morrendo de medo feito crianças.
Depois disso, atirou no rio as granadas cheias de terra preta que encontrara. Uma a uma, elas foram afundando no rio que guarda tantos segredos. Não deixa rastro, nem conta histórias.
Como explicar o que Itiberi quis fazer? Quis devolver na mesma moeda o sofrimento de sua gente. Sobrava-lhe coragem, astúcia e determinação. Faltou-lhe o conhecimento bélico. Não seria o primeiro, nem o último.
Jared Diamond, em seu livro Armas, germes e aço, após extensa pesquisa, discorreria sobre isto muito bem. O conhecimento bélico dos povos da Europa.
Itiberi antes daquela viagem fatídica e antes de morrer, ainda procurou explicar aquele armamento que descobrira. Diferente de tudo o que eles conheciam, dentro da floresta ou fora dela.
— Como isso funciona Itiberi?
— Como faz o barulho e aquela fumaceira, ainda não pude descobrir. Só sei que é assim. Tem uma mecha de palha para acender e lançar para bem longe. O fogo entra na bola, mas depois quer sair. Aí mata os brancos de barba.
FIM