Por: Antonio Mata
Hábil com as mãos, muito observadora e criativa desde os quinze anos. Não pensou duas vezes em tirar proveito daquilo que era seu. Começou com pequenos serviços domésticos para a família. O instrumento necessário não poderia estar mais perto.
De longa data, pois pertencera a sua avó, a velha Singer 12K, de 1882, acionada a manivela, passou anos em um canto da sala com um vaso de flores sobre ela. Ficou ali, como uma espécie de relíquia. Já que após o falecimento de dona Lindoca, ninguém mais se interessou por costura.
Colocou-a junto à janela de onde podia divisar o espelho do rio nas manhãs sem nuvens. Isto, quando não era remexido pelo vai e vem dos barcos, conduzindo cargas, pessoas, planos e ilusões.
Por lá canoas, catraias, batelões e motores se misturavam. O remo, a vela, o vapor e o barco motor. A história se juntava no rio para fazer cena na janela de Maria Célia. Só sabia ler e escrever. Aprendera com as freiras ao longo de um ano e meio. Prosseguir nos estudos não lhe foi possível. Não em 1907.
Marreteiros e estivadores, seringalistas e seringueiros, pilotos e demais tripulantes de barcos de linha, os comerciantes da beira do rio, os habitantes do lugar. Os barcos levavam o ouro feito em látex para os mercados estrangeiros. Os tempos da borracha.
Também traziam toda sorte de aventureiros que nunca desistiram de procurar por ouro de verdade, desde o século XVI. Porto, trapiches e mercadores faziam aquele amontoado de gente, quase todos os dias, num lugar só.
Qual o interesse nisso, da parte de uma jovem que gostava de costura? Ora, saber das novidades primeiro. Mercadorias que chegavam e que eram de interesse das famílias. Mobiliários, alimentos vindos de fora, utilidades diversas, e é claro, tecidos, revistas e vestiário.
Por entre caixotes e fardos, estivadores suarentos faziam o cordão umbilical da cidade com o resto do mundo. O porto e as casas comerciais ao redor constituíam o lugar para se saber das coisas. Bastava saber procurar as pessoas certas.
Em um tempo onde as mulheres não tinham muita presença nos meios comerciais, muito menos se ficasse rondando pelo cais. Haviam entretanto, as esposas, aquelas que apreciavam aquelas mesmas revistas. Algumas das quais já eram suas clientes.
As revistas de moda e artigos femininos, aliadas à propaganda boca a boca, por conta da qualidade e originalidade de seus modelos, abririam as portas de certas casas das famílias ilustres para Maria Célia.
Não era só isso, não. Pessoas e autoridades importantes poderiam ensejar festas, saraus, encontros e eventos. Além de organizarem associações beneficentes. Com tudo isso, a chance de encomendas. Desde que agisse rápido e desse conhecimento, através da sua rede doméstica, às senhoras do lugar, tudo em primeira mão.
Certamente que isto era obtido com semanas de antecedência. No ritmo das águas, as coisas acontecem devagar. Precisava de tempo para atender eventuais serviços. Até nisso rio lhe ajudava.
De resto, era onde entrava a velha Singer a manivela e os tecidos. Apoios imprescindíveis à criatividade e inventiva de Maria Célia. Observadora, copiava os modelos masculinos e principalmente femininos, só de olhar. Daí a necessidade de circular pela cidade, indo ao passeio público, às praças, igrejas, festas, qualquer coisa de caráter familiar que pudesse provocar aglomerações.
Não estava comprometida em se deixar prender pelos gostos do lugar. Estava sempre entre as primeiras a receber as revistas da época que traziam as novidades dos grandes centros.
É lógico que nem em todos os lugares teria acesso. Certas famílias abastadas, não receberiam a costureira em seus saraus. O que não significava um problema. Poderia ver aquelas mesmas pessoas em outros eventos, como nas procissões e festas da quermesse.
Ficava incomodada com a mania que tinham de se vestir de preto. Propunha como opção, o azul marinho; o meio tom; o verde e o vermelho escuros. Até que conseguia uma certa penetração no momento das escolhas, na ordem de um terço.
A arte da observação, discreta e anônima era para poucos. Apenas estar atenta, se fixar nos detalhes furtivamente, sem dar a entender o que pudesse estar fazendo.
Por sua vez, uma mulher fora de sua casa e ainda estando sozinha, precisava prestar mais atenção nos próprios gestos e olhares. Na sua roupa, aparência e nos horários em que circulava. Sempre havia um certo risco de acabar muito mal vista. Zero risco da morena ser confundida com uma polaca. Porém, era só.
Uma manga mais larga aqui, uma saia mais rodada ali. Mudar a cor, o tecido, outra combinação? Poderia dar certo? Teria de decidir no domínio da imaginação.
Não podia se dar ao luxo de desperdiçar um tecido caro vindo de tão longe. Todavia, sairia um vestido novo, diferente, algo que as senhoras do lugar ainda não tinham visto. Novas clientes com certeza.
Aos vinte anos, inspirada por suas leituras, a costureira transformou três cômodos de sua casa em um ateliê. Contratou duas auxiliares e adquiriu novas máquinas, passando a receber mais confortavelmente sua clientela. A sala anexa à oficina, tornou-se uma pequena mostra de modelos e da sua predisposição para se aproximar e agradar as demais. Admitiu uma terceira auxiliar e passou a oferecer cortinas também.
A janela no alto da rua, com vista para o porto, começava a se tornar mais atraente pelo lado de dentro, do que de fora. Ainda acompanhava os dias e horários de chegada das embarcações que traziam novidades, mercadorias e gente. Só não cuidava mais disso, tão diretamente.
Outros tempos, agora enviava uma de suas auxiliares para rastrear o que se passava. Até pelo volume de serviço e por ter que tocar seu negócio, já não saía às ruas com a mesma frequência. Uma de suas auxiliares, sempre bem vestida e orientada quanto ao que fazer, passou a cumprir este papel. O Ateliê Maria Célia de Souza, começara a reunir algum capital, e estava se configurando como um grande sucesso.
A jovem de iniciativa havia se colocado para além de seu tempo. Para mais além dos espaços destinados a uma mulher de cidade do interior. Uma não branca, que havia crescido na beira do rio, agora era reconhecida pelo seu talento e postura profissional.
O ateliê, havia se ampliado. Quatro costureiras e duas auxiliares acompanhavam o serviço diário. Em certos meses mais solicitados, havia a necessidade de agendar o horário de atendimento.
O sucesso da jovem, porém bem relacionada cabocla, não agradava a todo mundo. Principalmente se estivesse envolvido com a venda de tecidos e peças de vestuário.
As lojas que traziam a moda da Europa possuíam artigos muito caros, para uma clientela seletiva demais. Por quatro anos não se preocuparam com a ascensão da costureira do alto da janela. Nem havia razão para isso.
Onde há fumaça, há fogo. Não foi de forma inesperada, porém, que a riqueza do látex de borracha chegara ao fim. O tempo do luxo e do dinheiro fácil logo ficaria para o passado. Desde o ano anterior que não se encontrava compradores para o látex. Se em 1911, haviam dúvidas, em 1912 chegou a confirmação. A Amazônia já não abastecia mais o mundo.
No seu quinto ano, ainda de sucesso, o ateliê se preparava para enfrentar a sua primeira crise. Possuía uma carteira de clientes mais diversificada. Poderia atender famílias de servidores públicos, com artigos de menor preço. Havia começado com preços populares. Não teria de volta o mesmo viço dos anos anteriores. Teria de suportar uma queda drástica, mas não seria obrigado a fechar as portas.
Vários comerciantes que atendiam o pequeno segmento social mais abastado, estavam com seus estoques estagnados, sem encontrar compradores. Quem fez dívida já não podia mais pagar. Hotéis, atacadistas, exportadores de látex, e diversas casas comerciais fecharam suas portas. Sem nenhuma expectativa, se algum dia viriam a abrir de novo.
Foi o seu crescimento honesto, às custas de muito trabalho, importando seus próprios tecidos, oferecendo qualidade e atualidade, praticando preços menores para a clientela local, que fez despertar a ciumeira de seus concorrentes.
Quando a crise se tornou evidente, aqueles mais ávidos em apontar culpados para os últimos acontecimentos começaram a trabalhar e as ondas de intrigas surgiram.
Por outro lado, ela não surgiu à toa. A exportação de látex já vinha caindo. Em 1910 o movimento já era baixo. Contudo, a informação de que os seringais da Malásia, sob domínio britânico, estavam roubando os compradores do látex brasileiro, foi mantida em sigilo. Portanto, não era do conhecimento de todos os interessados nela. Porém, com o tempo acaba vasando, o que favorece a ansiedade, o desespero e finalmente a intriga.
Alguns comerciantes de tecidos, vestuário e artigos de luxo, se viram acuados pelo empobrecimento do seu segmento de mercado, o que era um fato. Quanto a isto, não havia o que fazer. Só que além disso, havia um certo ateliê que já vinha roubando seus clientes. E agora suas lojas estava fechando, enquanto o ateliê de uma garota cabocla estava aberto, atuante e fazendo dinheiro, assim pensavam. Havia quem visse nisso um absurdo.
— É tudo muito simples. Nos últimos dois anos, nossos clientes foram roubados, e o dinheiro que deveria estar conosco para evitar a bancarrota, está nas mãos daquela costureirazinha. A imprestável se prevaleceu. Deve ter tido acesso a alguma informação sigilosa que nós não tivemos. — Assim dizia um dos mais exaltados e falido, dentre os comerciantes.
— Sempre desconfiei daquelas visitas sorrateiras nas residências de respeito. Não duvido nem um pouco que tenha arranjado um amante, que por força das circunstâncias, acabou se transformando em um informante, a nosso desfavor. Se queria subir na vida conseguiu com a desgraça dos outros. — O outro, invejoso e maledicente, completava com mentiras para dar mais ênfase às suas palavras.
Apenas buscavam um bode expiatório, para algo que sabidamente, havia atingido a todos, em maior ou em menor grau. A maioria simplesmente perderia os seus empregos.
Não era sem propósito que se chamava rua do Alto. A elevação era cortada ao meio. Do lado oposto ao rio, a elevação descia lentamente, até se encontrar em pequeno vale, antes de subir de novo definindo o relevo.
Já de frente para o rio havia um paredão natural, como se parte dele tivesse sido solapado pelas águas. De fato, o foi, só que há muito tempo. Era relativamente estável, na medida em que as elevações argilosas da região o podem ser.
Lá no alto, olhando para o lado direito, de sua janela, Maria Célia cresceu admirando o espelho d’água. Assistindo o movimento do porto e dos barcos. Foi assim que nasceu aquela sua tão peculiar afinidade com as coisas do rio e do porto.
Na simplicidade, nos tempos lentos dos seus dias, em que pesasse a situação difícil que todos teriam de enfrentar, não poderia supor que algo de maior gravidade pudesse ocorrer. Afinal, o cenário já era adverso por si só.
Era o segundo domingo de julho. Os arraiais festivos estavam enfeitados para São João. Crianças e adultos, gente do povo brincavam alegremente, por volta das 20:30h. Maria Célia estava com as tias e irmãs, que por vez, acompanhavam os sobrinhos.
Tia Olinda, residia com Maria Célia e uma irmã, Lorena. Além dos dois filhos pequenos de Lorena. Tibúrcio marido de Lorena era piloto de embarcação e não estava na cidade.
Fogos, brincadeiras, fogueira. Um garoto corria pelo arraial improvisado quando algo repentinamente, lhe prendeu a atenção.
— Olha, olha, é fogo! Lá no alto é fogo!
Enquanto apontava na direção da rua do Alto, outras pessoas também passaram a observar. Por entre a vegetação de um terreno desocupado, surgia por de trás as labaredas laranja avermelhadas. Foi fácil entenderem tratar-se de um incêndio.
— É incêndio gente, é incêndio. Vamos até lá!
Lorena e Maria Célia que estavam sentadas de costas, se levantaram para saber o motivo da repentina gritaria. Ainda que o mato e a escuridão, dificultassem identificar exatamente de onde vinham as chamas, o simples fato de ser no alto da rua já era por demais assustador, por conta da proximidade. Também se puseram a correr na direção da rua do Alto. Eram casas de madeira na sua maioria. A de Lorena e Maria Célia também. Um incêndio era algo extremamente danoso.
Quem seguia na frente, ao observar com clareza, já se punha a gritar:
— É na casa da Olinda! Está pegando fogo! É na casa da Olinda!
Não haviam mais dúvidas. Era seguir e ver o que se podia fazer. Alguns vizinhos providenciavam baldes para levar água. Esforço em vão. As chamas já envolviam os dois pavimentos da casa de frente para o rio. Dali, a luta era evitar que destruísse as casas vizinhas, o que já estava começando. Todos haviam descido para participar da festa.
Olinda, Lorena e Maria Célia, a mais nova, à frente de casa, na rua do Alto, apenas assistiam. As tábuas e peças ardentes caíam. O telhado desabava. Tudo engolido pelas chamas. Roupas, pertences, materiais.
O ateliê, a única parte da casa em alvenaria, havia sido tomado pelas chamas a ponto de uma de suas paredes cair ao chão. As máquinas, os estoques, o mobiliário. Tudo perdido.
As mulheres e crianças ficaram com a roupa do corpo. Não havia mais nada a se fazer. Um vizinho ainda se aproximou trazendo uma caixa de madeira. Dentro haviam alguns moldes, revistas e figurinos chamuscados no incêndio.
Todos dormiram na casa de uma antiga vizinha que lhes ofereceu apoio. A mente de Maria Célia estava cansada e cheia de pensamentos os mais diversos. Pensava em que fazer. Como superar impacto tão demolidor.
Por mais que lhes dissessem ter sido uma benção de Deus o fato de ninguém ter se ferido, não se conformava com o ocorrido. Pela manhã, levantou-se aos primeiros raios de sol. Ver o que sobrou, e o que humanamente se poderia fazer.
Onildo, o vizinho, tinha retornado ao local cedo, antes de Maria Célia. Quando ela chegou, tratou de lhe mostrar o seu achado. A máquina de costura Singer 12K, 1882. Ela estava ali, preta, queimada e praticamente inútil.
Onildo lhe dizia:
É claro que está em um estado horrível, porém é possível deixá-la em bom estado, desde que os mecanismos não tenham sido danificados pelo calor. Célia concordou que Onildo buscasse reparar o que sobrou da máquina, assim como permitiu que ficasse com a máquina calcinada.
Naquele e nos dias seguintes, buscou-se limpar o terreno dos restos destruídos e tão logo quanto possível, fazer quatro cômodos em madeira onde pudessem se acomodar e retomar a vida. Célia não desistiu da janela de frente para o rio, recuperando o espaço que serviu ao seu ateliê.
Em meio a histórias desencontradas, tentou-se identificar a causa do incêndio. Falou-se de alguém que teria se esgueirado pelo lugar, enquanto estavam na festa de rua. Tal pessoa nunca foi identificada e o assunto acabou esquecido, mesmo sendo levado às autoridades policiais da cidade. De qualquer modo, eles próprios já haviam mexido em toda cena do crime.
Finalmente, Onildo conseguiu recuperar a velha Singer 12K. Maria Célia colocou-a, mais uma vez junto à janela. Na mesma posição onde tudo começara, anos atrás. Retomou o modesto serviço de costura, fazendo pequenos reparos em roupas usadas e atendendo as poucas encomendas que surgiam.
Anos depois Maria Célia casou-se. Teve três filhos. Por influência do marido, passou-se a trabalhar com estivas. Organizou-se pequena mercearia de frente para a rua Alta. A vista do rio e do porto, já não tinham a mesma relevância para a família. A velha 12K viveu seu momento de ostracismo.
A cidade como um todo amargou a sua decadência por quase trinta anos. Mais uma vez os ventos de outras partes do mundo, se manifestaram para trazer algum alento ao lugar. E de uma forma bem estúpida.
Orgulho e egoísmo empoleirados em armas. A rinha cobriu vastos territórios do mundo. Buscavam, na ilusão da guerra, a solução de suas diferenças. Havia a necessidade de látex para o esforço de guerra, pois os seringais de abastecimento estavam em mãos inimigas. Os homens adentraram a mata para buscar grandes quantidades de seiva, mais uma vez.
A guerra trouxe um alento à cidade, ainda que momentâneo. Na realidade, foi o suficiente para a costureira retomar a velha máquina. O gosto pelas revistas de moda, pelos gabaritos e moldes, ainda não havia passado. Não demorou para fazer a sua clientela. A máquina manual retornou para perto da janela e para a vista do rio. Tinha à época 53 anos de idade.
As coisas mudaram, a ponto de adquirir uma máquina de costura de segunda mão, porém mais nova e elétrica. Depois mais outra e outra. O ateliê estava se transformando sim, em uma pequena indústria. O seu apego não atrapalhava de modo algum. Era privativo da sua velhinha de manivela. Todo o resto, toda a sua vida estava em aberto.
Não voltou a ter a mesma pujança de outros tempos, mas seu gosto pela costura estava de volta, impulsionando novas possibilidades. A mercearia de seu marido foi então transferida para um pequeno prédio ao lado.
Quando a guerra terminou, fosse pela mercearia, fosse pela confecção, a família havia reunido pequenos capitais, além de um grande gosto em empreender. Cresceram na medida em que a cidade admitia crescer. Se detiveram, quando a cidade mudou sua passada, já cientes de que a vida é feita de altos e baixos.
A casa da rua do Alto foi reformada em alvenaria e ampliada, sendo a confecção retirada para outro local. Menos a sua 12k que continuou lá mesmo. Havia se transformado em uma espécie de símbolo. Há quem considere a máquina de costura a segunda maior invenção do homem, depois do arado.
É bem verdade que a máquina de pescoço comprido não só fazia costurar. Abrigou, aqueceu, embelezou, estilizou e empregou bilhões de pessoas pelo mundo afora em sucessivas gerações.
Ainda assim, não há porque esquecer daqueles que construíram o valor, a reputação e a dignidade que a velha do pescoço comprido possui hoje. Maria Célia nos deixou em setembro de 1981, aos 94 anos.
A Singer 12K de 1882, de dona Lindoca, finalmente foi retirada do seu lugar de honra, junto à janela. Seus netos acharam por bem que fosse entregue a um museu da cidade, onde acreditavam que estaria mais bem guardada.