Por: Antonio Mata
Da sacada, ora observava, ora dormia ali mesmo apoiando o queixo. A tarde quente afugentava as pessoas da rua. Na sombra, preguiçosamente abria e fechava os olhos de vez em quando.
A rua sem saída ajudava no ar de silêncio, no estilo de vida antiga, de cidade pequena. Quando as coisas aconteciam sem pressa. Mera impressão, felino é felino.
Dona Florenciana, de Santa Etelvina, do tempo em que a cidade terminava e a mata começava. Não faz tanto tempo assim. Dependesse de sua vontade, Oscar seria gordo e castrado. Mais plantado e obeso que o habitual. Só não conseguia, não com o tricolor de predominância amarela.
Bastava ser tocado, ou melhor, bastava ensaiar o toque. O bicho percebia e tratava de sumir dali, só voltando para comer. Parecia ler a mente dos homens. Namorador e rueiro, vagava muito, aventureiro de risco assumido.
Bem que tentaram umas duas ou três vezes, lhe acertar uma panela de água fervente para dar sumiço no bicho. Castor, desconfiado e arisco, corria primeiro, corria na frente. Ruim de pegar, couro ruim de escaldar.
Estava na cidade dos homens. Castor bem o sabia, a vida silvestre nunca conheceu. Bicho de casa e de rua, dependendo da situação. Independente, se soltava e se fazia de preso.
Afinal, Florenciana era sua amiga fiel e protetora nas horas de necessidade. A única pessoa que permitia lhe tocar. Desde que a gentil senhora não pensasse nas palavras-chave.
Nem precisava falar nada. Eram os gatilhos mentais de Castor, o tricolor da janela de Santa Etelvina. Que ativavam seu lado mais felino e furtivo. Encantado e ligeiro, simplesmente desaparecia. Castrar e vacinar.
Fosse por gosto e não por falta, já que dispunha de comida farta. Mais do que podia comer. Fosse mais por instinto de caçador, aquele cochilo na janela costumava ser apenas uma satisfação a Florenciana. Um sobrevivente, prestava atenção em tudo.
Foi assim que ouviu um curto bater de asas, quase nada, vindo de cima, pouca coisa, mas ouviu. Deixou o parapeito, saltando para o canto do telhado. A ideia evidente, ver tudo sem ninguém ver nada. Esgueirou-se telhado acima, sempre prestando atenção no que estivesse mais ao alto.
Pôde ver uma ligeira faixa preta. Virava um pouco para um lado, voltava para o outro. Dois centímetros pra lá, dois pra cá. Bater de asas, no alto do telhado, ponta preta em movimentos curtos. Oscar já tinha visto aquilo antes.
Não se tratava da cauda de um pardal, um sanhaço, pombo ou rolinha. Já conhecia a bicharada. Subia lentamente, um passo pensado de cada vez, imperceptivelmente. Um ninja da periferia.
Não custou, já observava o dono daquela ponta preta de cauda. Aventureiro por excelência, avistava seu sonho de caçador. Mediu, conferiu e aferiu. Encolheu-se todo. Com um bicho grande desses não se pode errar. É uma vez na vida. Saltou.
Se houve som, foi do seu corpo rompendo o ar.
O problema da caça é ter que lidar com bicho vivo. É que assim ele não para quieto. Já impulsionado nas fortes patas traseiras, projetou-se adiante para grudar nas costas do urubu e não largar, mesmo caindo os dois do telhado. Só não foi bem assim.
Castor não errou. Castor não erra. Foi o urubu que, outro encantado, já saltava no ar sem ter visto nada. Vida difícil aquela. Deslocou-se uns vinte centímetros acima.
O que Castor abocanhou e cravou as unhas foi a perna direita do bicho. Castor ficou pendurado, enquanto a ave levantava voo pesadamente, sem conseguir se livrar do peso repentino.
Batia as asas muito mais vezes que o habitual. Planar, só se fosse rumo ao chão, para facilitar a vida daquele monte de dentes decididos a levar a perna e o resto.
Voo desesperado, pesadamente na direção da mata, meio que à espera de um milagre. Um só não, dois. Tinha que voar com um gato agarrado em sua perna. Tinha que chegar na floresta em busca de um desesperado fato novo, qualquer um.
Tantos já haviam encontrado o fim de seus dias chapados no asfalto, baleados com chumbinho só por diversão. Da centena de carros passando por cima. Secando ao sol, até a próxima chuva recolher os pedaços fedidos.
O voo suicida, o peso, o cansaço, perdia altura cada vez mais. A floresta, a floresta, de refúgio, de sossego, de berço. A detentora de vida, a encantada por excelência. Se arrebentaria na primeira árvore, se fosse preciso. Só para morrer em casa.
Já podia ver uma dúzia de Cecrópias da divisa das matas. Se deixar cair por sobre os galhos macios da Embaúba, de curar feridas, mas agora, só para morrer no seu lugar.
De bico aberto, exaustão e voo para a morte, se preparava para o inevitável. Só mais um pouco.
As matas da vida, que acolhe a todos. Porém, desesperado na luta pela vida, não viu os olhos vigilantes que prestavam atenção naquele troço voador. Mexia com os cérebros de um jeito ruim de lidar. Figura estranha de voo esquisito.
Outros na mata pensavam. “Como enquadrar aquilo para fazer sentido? Se está voando, está vivo. Parece com alguma coisa? É bom de comer? Será um pássaro, um gavião?”
Não, gaviões não voam daquele jeito todo errado. Nem ficam com coisas penduradas por debaixo deles e nem têm rabo fino. Gaviões não são aves de ciscar no lixo em busca de carniça, são caçadores.
“Aquele dali voa, é preto, tem alguma coisa agarrada nele e tem rabo. Além do quê, está vindo para cá.”
Quatro olhos acompanhavam tudo e não desviavam daquela coisa voadora. Até que chegou mais perto..., mais perto..., mais perto.
O encontro com a vida. A realização de um sonho de consumo que enchia aqueles olhos.
— É um gato, um gato! O meu gatinho!
— É um urubu, um urubu! O meu pretinho!
Se encolheram, se enrolaram e aguardaram o momento certo. Do salto certeiro, forte e seguro. Daquele que não erra nem falha. Aperfeiçoado na selva e, na prática.
Até que o urubu com um gato pendurado em uma das pernas, todo torto, chegou. Incontinenti, a jiboia saltou rumo ao seu urubu. Eletricamente, a sucuri disparou rumo a seu felino.
Houve uma fração de segundo que antecedeu o duplo bote. Castor, buscando escapar daquela situação, escalou o corpo do urubu, indo mais para cima. O urubu, exausto, ensanguentado e já esperando a morte, cedeu momentaneamente, fazendo com que ambos caíssem.
Do momento que Castor sobe, a sucuri corrige o salto, uma fração de segundo antes do início. A jiboia salta na direção do urubu. Só que ele já não estava mais lá.
Inadvertidamente, em mais uma daquelas passagens que nem a floresta explica, jiboia e sucuri se puseram em rota de colisão. O choque se tornou inevitável.
Por cima da cabeça do urubu as serpentes se encontraram.
Plác! Crác!
De bocas abertas, queixo, focinho e mandíbula se partiram na velocidade de um raio. Nem as serpentes entenderam. Com o urubu chegando ao chão, Castor saltou de vez e desistiu daquela caçada perigosa e arriscada demais. Foi só o tempo de reconhecer os bichos compridos estirados no chão. Saltou longe e desapareceu tão depressa quanto chegou.
O urubu, ao tocar o chão e perceber o novo e iminente perigo, juntou o que restava de suas forças e lançou-se em um voo de galinha. Mas o suficiente para tirá-lo da armadilha, sinônimo de ossos quebrados no abraço da morte.
A jiboia gritava, chorava, urrava. Tudo ao mesmo tempo.
— Você, foi você, traiçoeira, covarde, asquerosa! Tudo o que eu queria era o meu urubu!
— Você, sua imprestável, nem saltar você sabe! Morra de fome sua inútil. Eu só queria o meu gato! — Chorava e gritava a sucuri.
— Imprestável é você, sua cobra! Morra de fome você!
— Some daqui rastejante, antes que eu te estrangule!
— Vá para o seu buraco, cara quebrada!
Sem condições de enfrentamento por conta da dor intensa pelos ossos arrebentados, deixaram a área das Embaúba, adentrando as sombras da floresta.
Castor, ofegante e assustadiço, saltou pela janela e foi se ajeitar por debaixo do sofá. Florenciana, vendo aquilo, chamou seu tricolor para perto de si.
— Vem aqui meu filho, vem aqui.
Castor, ainda assustado, se aproximou e saltou no colo macio e confortável de sua protetora. Olhava para ela enquanto ronronava qualquer coisa como: Tia Florenciana, chega de olho grande, chega de aventura. Bom mesmo é pardal. Urubu nunca mais.