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Episódio de rua

                                                                                 

                                                                                                                                                 Foto: Wikipedia Commons

Por: Antonio Mata

Bastou se dirigir à porta da cozinha, que como não podia deixar de ser, já estava aberta. As pessoas da casa cuidavam dos afazeres daquela manhã de sábado. Preparar o café, lavar a roupa, estender, por ração e água, arrastar coisas dentro de casa, pois é dia de faxina.

Essa gente não consegue sentar-se para conversar, entre um gole de café e outro, apreciar as coisas, sempre acontece algo que vale a pena contar. Nem que seja só para falar do pão com manteiga. Que coisa horrível, essa correria.

Deu a volta pelo lado da casa, correndo, saltitando, brincando. Aos pulinhos deparou-se com o maior, o melhor dos presentes. Justamente aquele que não gostam de dar. O portão estava aberto, na realidade só encostado. Alguém na pressa não prestou muita atenção. O tipo da coisa que, costumeiramente não acontece duas vezes, não assim tão fácil.

Sabe a história daquele cachorro que saiu pelo portão e nunca mais foi visto? E aquele que gostava de pular o muro? Alguns bichos gostam de avisar os donos a respeito de suas intenções. O problema é saber se tem alguém entendendo.

Esticou a cabeça para o lado de fora. Olhou para a direita, depois para a esquerda. A rua estava meio deserta. Era uma rua estranha aquela. Se olha para um lado ela parece subir, se olha para o outro, desce um pouco, e depois sobe mais ainda.

Aquilo que estava vendo era bom, era ruim? Não sabia, se não se importassem em sair e lhe fazer companhia, pelo menos saberia dessas coisas. O melhor lado para o qual se dirigir. Qual a razão que explica ficar preso, trancado? Ali todos gostavam de sair.

É melhor resolver rápido, senão alguém vai sair, querer gritar, vai querer prender, e trancar tudo de novo. Ou saía logo, ou não saía mais. Ainda se podia voltar, claro que podia. Quem disse que volta? Cachorrinho solto no mundo, agora, aventura e brincadeira são uma coisa só.

Tão pouco tinha como prestar atenção no céu que escurecia rapidamente. Nem no vento que começava a soprar. Este imprevisto não fazia parte do plano. Resolveu pelo lado onde a rua descia primeiro, antes de subir.

Já na rua observa tudo. Algumas árvores, um e outro canteiro, um punhado de carros estacionados. Havia no caminho, sacos de lixo, e depois um monte de entulho que alguém amontoou na rua. Na parte baixa é melhor de brincar, imaginou. A partir daquele momento, quem dita a caminhada é a inocência cega, alegre e saltitante dos bebês. Qual filhote haveria de resistir, desistir, e assumir valores que não possui? É, parece que isto não existe.

Saltitando, supera o monte de sacos de lixo, prossegue até o próximo obstáculo. Já entendeu que basta ultrapassá-lo. Não era para estar ali, só que agora não importa. É só ultrapassar mais aquele monte, e estará tudo bem.

Ao correr na lateral do monte de entulho, sentiu o corpo descer de repente, como se o chão se abrisse, sem avisar. Desceu até a metade daquele corpinho. Sobreveio o susto, se localizou e se esforçava para sair, empurrando com os braços e se elevando na ponta dos pés. Uma tentativa, duas e depois três, e nada de sair de dentro daquele buraco.

Havia ficado preso. Não correra quinze metros ainda, foi o suficiente para prender-se em um buraco no ponto de maior depressão da rua. Foi quando a brincadeira perdeu a graça.

A chuva intensa que já se avizinhava, não tardou a alcançar aquele lugar, fazendo a barulhada típica, principalmente depois que as pessoas passaram a usar telhados metálicos. Aquelas telhas compridas, feitas com folhas de alumínio e estanho.

Se deu em mais quinze segundos, ou será que foi em vinte? Esse detalhe talvez já não explique mais nada. O que de concreto existia, era aquele corpinho preso, junto do entulho, com a chuva aumentando enquanto o buraco enchia d’água, no nível mais baixo da rua. Logo, lixo, entulho e o malfadado buraco, estariam todos encobertos.

Entendido que não sairia sem ajuda, e isto só custou uns cinco ou seis segundos, disparou aquela barulhada típica de quem já entendeu que se meteu em uma fria. É nesse momento que os sons agudos se justificam por si só.

Aquilo teria chamado a atenção de qualquer um. Até dos mais distraídos. Foi concebido assim, para acordar todo mundo. Só não estava no “script”, aquele som em uníssono dos pingos caindo sobre as telhas metálicas, abafando os demais sons com aquela chuvada.

Logo vira choro desesperado, com a água cobrindo toda a calçada e atingindo seu peito. Aquela mistura de água com lixo e lama. Aquela água amarela que corre pelas ruas quando sobrevém uma enchente, com toda sorte de porcarias que pode carregar e depositar nos pontos mais baixos, entupindo tudo quanto é bueiro. Dessa vez, não faz nenhuma diferença.

Em menos de dois minutos, aquele ponto, ainda que fosse só aquele, estará coberto com trinta centímetros de água, logo acima da calçada. Logo acima do maldito buraco, da vil armadilha. Em menos de três minutos, tudo há de se consumar.

Alcançou o pescoço, e de corpinho esticado, aspirava pelo ar, tinha ímpetos de voar. O que começou como uma brincadeira, agora lhe fazia lutar pela vida. Só queria correr, só queria brincar. Foi só por isso que tinha saído de casa.

A água chega na linha do queixo, o tempo escoa no lugar da água, que se acumula. Vai ser tudo muito, muito rápido.

Mãos firmes desencaixam seu corpo das paredes da abertura já tomada pela água e o puxam para fora dali, de volta para a vida. Alguns arranhões, não importam mais que a ação. É envolvido às pressas com uma toalha e correm de volta para dentro de casa, em meio a chuva e a um grande falatório.

Uns apontam culpados, outros rogam pragas ao vizinho com seu monte de entulho, a calçada quebrada e cheia de lixo. Se responsabilizam mutuamente. Afinal, alguém tem de ser responsável. Onde já se viu isso?

Crianças e animais se veem envolvidos em acidentes que não deveriam ter acontecido, mas que insistem em acontecer.

Então, foi um cachorrinho solto no mundo, ou um bebê portão afora no mundo?

Tem certeza de que isto importa?     

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