Por: Antonio Mata
O livro fora esquecido por um bom tempo. Até que hora atrás, tinha lido o terceiro capítulo de Grandes Esperanças. Era Dickens ocupado em contar a história de mais um de seus garotos.
Próximo ao final daquele capítulo, os convidados para um almoço de Natal, assim como a família que recebera o jovem Pip (Phillip Pirrip, o protagonista da história), estão todos reunidos.
Procuram ridicularizar o garoto, comparando-o a um porco. Um dos convidados chega a afirmar que Pip, deveria ser muito agradecido por não ter nascido porco.
A breve narrativa captura o gosto humano em desmerecer e humilhar com palavras. De preferência, com alguma plateia, para aumentar a zombaria. Comumente contra jovens e idosos.
Esse comportamento nocivo vai permear a juventude do garoto Pip, trazendo consequências difíceis para si, mas também para os demais, ao longo da história.
Hoje chamam de bullying, praticado dentro de casa.
Lembrou da passagem do pequeno Pip, porém havia outra coisa em sua mente que não passava nem deixava esquecer. Poderia mesmo, cuidar de outras coisas, sem que o sonho, aquela história esquisita desaparecesse. Via naquilo uma singularidade. O sonho e a narrativa dos apuros de Pip.
O final de tarde estava bonito. Nuvens em quantidade ofereciam sombra, além do branco prateado de bom tempo, confirmado pelo vento que percorria o lugar.
Atendendo a um chamamento naquela cidade do interior, muita gente se dirigiu aos fundos, em um grande descampado afastado da rua principal do lugar. Lá arborizado nas extremidades. Aos poucos casas, lojas e igrejas tinham ficado para trás. Sabia que estava no local na condição de convidado. Porque exatamente, ainda teria que descobrir.
Notou uma certa satisfação da parte dos demais por estarem ali.
O que Saul presenciou, estando todos de pé, era no mínimo incomum. Para não dizer, surreal. Alguém haveria de duvidar, mas não era nenhuma brincadeira. Ao menos no sonho, assumia ares de algo bem verdadeiro.
Centena e meia de pessoas estavam lá para assistir aquela espécie de atração. Ou melhor, aquele estranho e pouco imaginável combate. De um lado estava um homem, sem camisa e com as mãos cobertas por ataduras, a exemplo dos pugilistas.
O grupo de pessoas estava ao lado do pugilista, enquanto aguardavam o início da contenda. Se aproximou mais um pouco. Viu que alguém que recolhia as apostas relativas ao combate. O homem já possuía uma vantagem de 3 por 1.
Estando mais à frente, pôde então observar o motivo da atração surreal que motivou a presença de tanta gente naquela tarde. Seus olhos não o enganavam. Era aquilo mesmo.
Na outra extremidade, a uns dez metros adiante, estava o adversário. Silencioso e sério, se encontrava sozinho. Ao seu lado não havia ninguém. Respirava com tranquilidade e quase não se movia. Não saía de sua concentração.
Era um cão enorme, um desses chamados molossos. Lhe ocorreu que fosse um Mastiff, pela cabeça grande e o focinho preto, além da pelagem castanha e curta.
O cão estava de pé, com os membros dianteiros relaxados e baixados. Expressava segurança naquela postura, que por um momento, pareceu a Saul algo antinatural.
Igualmente possuía mãos humanas, sem as unhas salientes e fortes de um cão daquele tamanho. Ainda que parecessem naturalmente escurecidas e espessas.
As mãos também estavam envoltas em ataduras, como um pugilista, aparecendo somente a ponta dos dedos enegrecidos. Estimou que estando de pé, o lutador teria em torno de 1,70 metro, ou quase isso.
A cauda que parecia estática, bastou ligeiro movimento do Mastiff, para que pudesse ver apenas um coto, de uns três dedos. Teria cortado, nasceu assim? Saul ainda não entendia por que estava ali, quanto mais por onde andaria a cauda daquele lutador.
Olhando atento para seu oponente, aguardava pelo combate. Não lhe incomodava o fato de estar sendo observado. Então percebeu algo que o incomodou.
As pessoas esticavam o pescoço para vê-lo, com grande curiosidade, todos na expectativa da estranha luta. Homens e mulheres reunidos, o pensamento era um só. Assistir ao desenvolvimento da luta e saber quem sairia vencedor.
— Vai apanhar muito, seu cachorro! Chegou seu dia de comer terra! Vai sair daqui mansinho!
— Mostra pra ele Anacleto! Aqui não é lugar de cachorro vadio! Ele tá pedindo! Devolve o vira-lata sem dono para o canil!
— Mostre para o cachorro ladrão, Anacleto!
Com a gritaria da turba mais gente chegava e logo dobrou de tamanho. Avançavam pelas laterais até quase alcançar o silencioso Mastiff. Os que estavam mais próximos, o provocavam.
— Ei cachorro, ei cachorro! Vê se diz alguma coisa. Pelo menos olha pra cá abestado!
O lutador solitário continuava impassível.
Ao compreender o que se passava, isto lhe embrulhou o estômago de tal modo que desejou sair dali. Olhava a turba e entendia exatamente porque dizem que ela é cega.
Alguém pôs a mão em seu ombro, e dizia:
— Calma, tenha calma. Já vai começar. Não é todo dia que você irá assistir uma dessas.
Olhou espantado para o outro sujeito e asseverou:
— Aqui não se trata de ofender ou humilhar com palavras. Querem bater nele, agredi-lo. Realizar um confronto com outro ser, com outra espécie. Saber se pode vencer um homem. É imoral e nojento.
O homem dá um sorriso velado entre dentes e lhe diz:
— E você pensa que eles todos não sabem? Acha mesmo que essa gente cínica não sabe disso?
— Ah, sim, mas é claro. Na falta de um Neandertal, coloquem um cão. Alguém para bancar o monstrengo que será enfrentado pelo herói humano. Devem achar que é quase a mesma coisa. Estou envergonhado de tudo isso. De estar aqui nesse lugar.
Seu interlocutor prosseguiu.
— Saul, isso é coisa da Terra, Saul. Ainda não entendeu? Ou vai querer que eu desenhe?
Uma coisa Saul já compreendia. Seu interlocutor devia ser tão cínico quanto os demais.
— Pois esta não é a minha Terra. Não é o mundo que eu quero.
Com ar de deboche, o homem ria enquanto falava.
— Saul, você de novo, Saul? Como é que chamam isso? Separar o joio e o trigo, não é assim? Qual é o problema? Já que te trouxeram para assistir, então assista. Não perca tempo com bobagens. Vai ser mais fácil para você.
O homem, de repente, encarando Saul, mudou a voz e a fala.
— Fique e assista a mais uma mazela humana. Depois, desapareça daqui seu bonzinho. O que você vai ver, é a maioria ficar. Vão permanecer aqui para comemorar a derrota do vira-lata evoluído. Você ainda não viu? Fazem isso há milênios.
Então, completou sua fala.
— Desde de quando você vê o homem se preocupar com os demais, com outros seres? Com a Criação, não é assim que você diz? Vão ficar aqui, só assistindo. É só uma diversão. Agora vou desenhar na sua mente.
— É pão e circo Saul! Entendeu agora? É pão e circo!
O sujeito deu uma gargalhada e saiu dali.
Saul não estava lá para reclamar ou contestar coisa alguma. Nisso o homem tinha razão. Fora levado para tomar ciência do desvario ao qual pode chegar o homem sem Deus.
Pelas regras estabelecidas, o cão Mastiff não poderia, sob hipótese alguma, morder seu oponente. Deveria valer-se da agilidade de seus pés humanos, porém com os joelhos virados para trás, típico dos caninos.
Também podia, obviamente, utilizar os dois punhos, sem, contudo, alcançar o outro com as garras. Poderia socar, mas não arranhar ou agarrar com suas mãos e garras fortes.
Tem início o combate.
Superado os minutos de reconhecimento, ambos partem para a luta franca, infligindo ferimentos mútuos. O focinho do cão, logo sangrava abundantemente.
Sem que isto significasse motivo para uma paralisação. Um dos olhos mal enxergava, tão inchado se encontrava. Do lado humano a situação não era melhor.
Por mais que tentasse se esquivar, a agilidade do Mastiff era grande, oferecendo golpes certeiros no rosto, na barriga e nos rins. Se o humano pretendia conduzir o molosso a uma crise de cansaço, descobriu ter se enganado. O cão absorvia bem a pancadaria incessante.
Ao final de cada round, os oponentes se deslocavam para as laterais, onde o homem recebia água sobre a cabeça e as costas. Toda a atenção e orientações. O Mastiff, se dirigia sozinho para próximo de um dos arvoredos.
Lá, coberto de sangue, se apoiava em um galho e levantava a cabeça, como em um gesto de súplica. Um gesto humano por excelência. Depois, fechava os olhos e respirava fundo. Fazia um círculo na terra com a perna direita e depois outro com a perna esquerda. Então, já refeito, caminhava lentamente ao centro e retornava ao combate.
A luta prosseguiu, até o rosto de ambos serem transformados em bolas de sangue.
Os responsáveis pela luta, notando que o combate se arrastaria em uma carnificina sem um vencedor, deram por encerrado ao décimo primeiro round. Depois de algumas considerações em voz baixa, meio a contra gosto, declararam o empate.
A sessão de cinismo, cegueira e estupidez, havia terminado.
Saul acorda repentinamente. Meio atônito, se senta na beirada da cama. Não entende direito tudo o que viu. Mesmo que detestasse aquele sonho esquisito.
Ainda estava atordoado, procurando entender aquele sonho com ares de pesadelo. A lembrança completa ficou consigo por dias, ao invés de esquecer o tal sonho. Por que razão haveria de ser necessário tudo aquilo, pensava.
Foi quando lia um dos livros de Dickens, que se deu conta do óbvio, do evidente. Se podiam escorraçar o menino Pip, porque não um cão? A ponto de envolvê-lo em lutas, quando se aproxima do clímax de sua evolução no Reino Animal?
Os cães, em termos evolutivos estão em vias de dar o seu salto quântico e adentrar o Reino Hominal. Assim dizem os médiuns, divulgando as comunicações espirituais que recebem. Entretanto, pelo visto, terão que suportar a pequenez e a covardia dos homens. Aliás, o fato de o cão não poder morder nem atacar com suas garras, não significava outra coisa.
O homem, há muito tempo que faz tudo do mesmo jeito. Seus sentimentos evoluem muito lentamente. O cão há de cumprir uma linha evolutiva diferenciada.
É a continuação das provas que um dia começou na Terra, quando se aproximou do homem. Poderá continuar submetido aos requintes da animalidade ainda presente nos homens.
Estar próximo, sem demonstrar selvageria. Acatar e conviver sem atacar. Transformar-se em um ser capaz de fazer melhor. É o diferencial que o cinismo humano, não lhes permite enxergar.
Em algum lugar das incontáveis moradas do Pai. Nas vastidões celestiais, um de seus filhos se prepara para receber a inteligência plena e a auto determinação, o livre arbítrio.
Levado adiante seus esforços na superação da selvageria, algo que o homem ainda busca. Um universo de possibilidades de aprendizado, de evolução e iluminação espiritual, hão de se abrir.
Pip poderia ter sido poupado. As crianças, os idosos, assim como todos os demais, poderiam ter sido poupados.
Para os caninos, que se apresentam às suas provações no cenário evolutivo, não é privilégio. É desejo de crescer.
FIM