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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Festa estranha

                                                                    

                                                                                                                                               Foto: Denis Doukhan

Por: Antonio Mata

Circulava com tranquilidade por entre os demais. O encontro havia recebido muitos convidados, todos conversando muito, ainda que com  ar de uma certa sisudez.

De todo modo, pareciam estar gostando da reunião e do grande salão, muito bem iluminado e luxuoso, em padrões dourados, lembrando os antigos salões europeus do século XIX.  

O vestido longo em azul Royal, lhe caía perfeitamente bem. Aliás, era notável a beleza dos vestidos. Mulheres de todas as idades, estavam muito bem apresentadas, algumas portavam joias de muito bom gosto, e outras faziam a habitual ostentação. Os homens estavam igualmente elegantes em trajes de noite. Era visível tratar-se de um público selecionado.

Passando próximo a um espelho, pois o que não faltava eram espelhos, e aquele não estava ali sem um propósito. Pôde ver então, por entre as molduras douradas da vaidade, o resultado daquele azul Royal; o delicado pingente no pescoço; e um único anel de uma única pedra no dedo anelar direito. Com isto, e mais os cabelos longos e negros, gostou do resultado naquele reflexo.

Notou que não havia música; não havia orquestra; coro; som ambiente; realmente nada. Não demorou a perceber que ninguém bebia nada, nem água. Procurou se localizar, encontrar alguma cara amiga, ou alguém que esclarecesse o motivo do encontro.

Continuou andando e buscando entender aquela reunião em que não se fazia nada, a não ser conversar. Festa estranha de gente esquisita, diria uma certa pessoa.

Resolveu indagar sobre os anfitriões. Dirigiu-se a um casal de meia-idade, ou que pelo menos, pareciam formar um casal.

— Olá, como vão? Sabem me dizer quem são os anfitriões, ou onde posso encontrá-los? Estou procurando me localizar.

— Realmente, não sabemos dizer. Também não os conhecemos, infelizmente não podemos ajudar.

— Também lamento, mas não tenho como ajudar. Respondeu igualmente a mulher. A resposta não deixava nada para se entender daquilo.

Resolveu insistir.

— Então sabem me dizer o motivo da festa, ou desse encontro. Por que se reuniu tanta gente?

— Desculpe também desconheço. Lamento não saber lhe dizer o propósito. Respondia o homem com calma, aparentemente, tão desinformado quanto ela mesma.

Continuou caminhando, e já que não sabia de nada mesmo, saiu pelo salão perguntando; indagando; pelos anfitriões; o motivo; que lugar era aquele; onde estavam; a que horas; se era dia; se era noite.

A constatação, depois de cerca de uns 20 minutos, era que naquele  lugar, ninguém sabia propriamente o motivo pelo qual estavam ali, e muito menos quem os convidou.

Além de um fato por demais estranho que foi se formando em sua mente. Ninguém conhecia ninguém, ou pelo menos, parecia não conhecer. O anfitrião, pelo que entendia não apareceu e nem sabiam quem era.

Quanto mais buscava se localizar naquele rascunho malfeito de encontro social, bonito na forma, porém estranho e sem propósito visível, menos compreendia a sua presença ali.

Sem muito o que pudesse entender, resolveu juntar-se aos demais e foi participar das conversas, por entre aqueles convidados, no afã de descobrir algo. Não era difícil, na verdade, achava bizarro. Mal se aproximava, e já era encaixada no pequeno grupo, como se lá, já estivesse.

Lhes contavam abertamente coisas as mais diversas. Pessoas que nunca tinha visto antes, lhes contando questões muito pessoais. Porém, sem saber de fato, quem era ela. Pareciam não se importar.

Circulava pelo salão observando e ouvindo aquelas conversas.

— Quanto aos juros, não teve jeito, fui obrigado a aumentar. Fazia isso, ou assumia o risco de deixar passar a boa oportunidade, a boa maré. Eu não sou oportunista, apenas aproveito as oportunidades. Comentava um homem de cabelos brancos e olhos bem azuis, como quem se justificava.

— Já comigo, foi a questão da passagem do valor dos imóveis, que eram expressos em Cruzeiro Real, e passavam para Real, aplicando o fator de conversão. O problema é que os imóveis pareciam ficar baratos demais. Prosseguiu com sua fala.

— Então descobri que estavam aplicando o fator 1000, ao invés dos 2750, para conversão, assim os imóveis não perdiam valor diante da nova moeda. Isto ajudou todo mundo. Sem dúvida que minhas comissões subiram, mas foi uma medida que ajudou a todos. Afinal, vi todo mundo fazendo a mesma coisa.

— Meu caso foi muito simples, e fácil de explicar, até porque nunca quis enganar ninguém. Trabalho com panificação, em minhas lojas o pão era vendido por unidade.  Apenas reduzia um pouco a quantidade de trigo no pão, mas era só por conta da matéria-prima que era, na maior parte importada. O pão francês do cliente, estava sempre lá, crocante e no tamanho que ele gostava. É bem verdade que eu colocava mais um pouquinho de bromato, mas foi só isso.

Aproximou-se para ouvir as conversas de outro grupo. Como na situação anterior, rapidamente foi aceita.

— Eu sempre defendi que era preciso empregar as pessoas que necessitavam de trabalho. Dizia uma senhora, aparentando idade avançada, e que vivera em uma antiga mansão senhorial, e então explicava.

— Em minha casa, eu tinha babá, jardineiro, cozinheira, duas  faxineiras,  copeira, motorista e o vigia. Naquele tempo, nem se falava em carteira de trabalho. Para quê? O importante era oferecer trabalho. Tudo bem, eu às vezes precisava que ficassem mais um pouco no serviço, além da hora. Na realidade era só mais três, ou quatro horas. Prosseguiu com a exposição.

— Eram poucas vezes na semana, e permitia que fossem dormir nas suas casas. Não fazia isso todo dia, não de jeito nenhum. O que importava era oferecer trabalho. Se pagava pouco, era porque sempre quis oferecer mais vagas.

Outra mulher, logo em seguida relatou seu caso particular.

— Não me envolvia com estas questões de empregados. Apenas pagava uma diarista e pronto. No meu caso, gostava de contribuir para com as pessoas que viviam de vendas. Eram sacoleiras, vendiam roupas, joias e semijoias, cosméticos e uma série de outros produtos de interesse, principalmente feminino. Sempre procurei pagar tudo em ordem, oferecendo um preço justo. Quando faziam parcelamento, se eu achava injusto, eu só pagava uma parte. Não posso ficar juntando dívidas, estava comprando só para ajudá-las.

Prosseguiu pelo salão, ficando muito patente a necessidade de se explicar, da parte dos presentes. Não acreditavam ter cometido algum erro. Se julgavam corretos em suas decisões e na maneira como conduziam suas vidas.

Outra descoberta inusitada, também não havia propriamente casais. Todos haviam chegado aparentemente sozinhos. Ela própria circulava de um lado para o outro, e de início nem notou que estava só o tempo todo. Somente atentou para o fato, ao ouvir dois homens conversando.

— Aqui tem uma coleção de mulheres bonitas, e a julgar pelos trajes e joias, tem mulher rica aqui dentro. É só um pouco de paciência para achar o que estou procurando. Isto não faz mal algum, não é? Já notou como circulam sozinhas?

O homem apresentava a seu interlocutor a sua última constatação, enquanto prestava atenção naquela ali mesmo, dentro daquele belo vestido. Ao perceber que estava sendo encarada, achou por bem sumir dali, e se afastou por entre as pessoas no salão.

De cabeça baixa, olhando para o vestido azul, se imaginava pensando, qual seria a sua argumentação, dentro daquele cenário esquisito e tão repleto de justificativas. Afinal, algumas eram bem falsas.

Pelas frestas das cortinas, percebeu que era noite. Aproximou-se da janela e fixou a visão no espaço lá fora. Era de um breu profundo, tamanha a escuridão. Buscou outras janelas, e sempre a mesma impressão. Concluiu que lá fora era vazio, e que estavam todos retidos naquele lugar. A ideia lhe ofereceu uma certa angústia.

Prosseguiu buscando as portas de saída. Desejava saber se estavam destrancadas. Uma dúvida já pairava sobre a sua cabeça. Aquilo era realmente um encontro, ou uma detenção? Como se entrou ali, como se saía dali? Tem de haver uma forma de acesso e de saída. Continuava sem respostas.

Caminhou na direção das portas duplas, na extremidade do grande salão, só para descobrir o que já imaginava, estavam trancadas. Caminhou rapidamente por entre as demais pessoas, que pareciam ignorá-la. Imaginou que se saísse correndo, não faria nenhuma diferença para ninguém.

Vontade de se justificar e indiferença para com os demais, pareciam ser a tônica do lugar. Nova constatação, trazia nova sensação de angústia. Reuniu os fragmentos do que via e ouvia e chegou a mais uma, “aqui é estranho e angustiante, e estou aqui dentro, junto deles”.

Alcançou a extremidade oposta do salão, onde as portas também estavam trancadas. Começou a suar frio. O lugar, por amplo que fosse, estava ficando claustrofóbico. O ar pesava ao respirar, um cheiro de esgoto começou a invadir o ambiente. Certo som estranho que parecia distante, agora estava mais próximo, como pessoas cochichando, de uma forma ininteligível.

Virou-se na direção dos convidados, no intuito de perguntar algo. Foi quando tomou seu primeiro susto de verdade. As pessoas, antes elegantes e distintas, estavam assumindo um aspecto maltrapilho. Os vestidos, antes lindíssimos, agora se apresentavam desbotados, sujos e exalando mau cheiro.

A despeito disso, as conversas, repletas de justificativas para seus comportamentos mesquinhos, prosseguia com intensidade. Havia uma necessidade doentia de se sentir com razão naquilo que argumentavam. O ambiente e as vestes assumiram um ar repugnante, as conversas se tornaram repetitivas e monótonas.

Se deu conta de que estava sendo observada pelos homens que buscavam mulheres supostamente ricas, onde agora só havia maltrapilhas. Qualquer sutileza que poderia existir de início, se perdeu.

Percebeu logo que os dois homens, agora de ar repugnante, a perseguiam tentando alcançá-la. Identificou uma única porta entreaberta, com um mínimo de luz. Desandou em uma correria empurrada pelo pânico, começando a se afastar do salão, mas não de seus perseguidores.

Na correria pelo caminho calçado em pedras de granito, e pouco iluminado, o surreal se mostrava aqui e ali, sob a forma de objetos abandonados ao longo de sua rota de fuga.

Só chamou a atenção em sua correria desesperada pelo fato de serem brancos. Naquela correria de Alice, encontrava fogão, geladeira, máquina de lavar, condicionador de ar. Alguém suficientemente tresloucado parecia ter deixado as coisas pelo caminho, a troco de quê, não havia tempo para pensar.

Quanto mais corria, mais se perdia na escuridão, sem rumo e já sem fôlego. Em certo ponto, começou a ouvir alguém que a chamava, a sair daquele lugar, que havia começado festivo, tornou-se despropositado, e depois um grande pesadelo, uma luta pela vida.

— Marie, Marie, abra os olhos, Marie, olhe para mim. Tudo já passou, você está bem, aqui está segura. Extenuada, Marie se dá conta de que estava em outro ambiente, agora bem iluminado, e na companhia de duas mulheres.

— Quem são vocês? O que faço aqui? Que lugar horrível era aquele?

— Fique tranquila Marie, sossegue, somos amigas. Estamos aqui para ajudar. Queremos lhe adiantar algumas coisas importantes para que você possa se localizar melhor na forma como tem conduzido sua vida.

Já mais tranquila, Marie escuta com calma e torna a perguntar.

— Mas que lugar era aquele, e quem eram aquelas pessoas? E aqueles homens que me perseguiam?

— Está bem Marie, porém, vamos por partes. No salão você esteve na  companhia de pessoas de pouco caráter, dispostas a prejudicar os demais, desde que isto pudesse auferir vantagens para si próprias. Enfim, são pessoas egoístas.  Então continuou.

— Os homens que lhe perseguiam, são antigos sócios, na realidade, escroques com os quais, em outros tempos você se meteu, e você mesma lhes aplicou um golpe. Estão no seu encalço desde então. Estes são os seus cobradores.

Marie tentava entender aquela história toda, e indagou:

— E o lugar, e aquele monte de coisas largadas pelo caminho?

— Isto é fácil de entender Marie. Você esteve em um lugar para lhe mostrar que certas atitudes que você tem tomado, não vão lhe ajudar em nada, mas poderão muito bem te prejudicar bastante, se insistir na sua tentativa de querer “frequentar” certas rodas. Entende o que lhe digo? É o brilho da vida materialista, é o apego aos bens que estão lhe atraindo, e que vão te trair.

— E aqueles objetos, que foram jogados no caminho?

— Constituem apenas uma alusão aos mesmos objetos que as pessoas, de modo geral, buscam possuir porque precisam deles, mas que você já estava jogando fora. Qual o problema em se ter um fogão, ou uma máquina de lavar roupas? Foi você que banalizou o básico, em favor do supérfluo. Na sua mente se tornaram coisas sem valor. Era apenas mais um monte de objetos.

— Estes, Marie, você deixou de lado, não porque já não precisava mais deles, porque se interessava pela posse de outras coisas, só para gastar dinheiro, queria ostentar. É assim que se envereda pelo consumismo e pela vida de aparências.

— Então, o que devo fazer?

— Marie, se afaste do que é supérfluo, do consumismo desmedido. Não se iluda com riquezas, e em querer acumular coisas. Nada disso vai te ajudar. Se aproxime de pessoas que possam lhe ajudar a ser útil. Veja só, as extremidades da sociedade estão cheias de crianças necessitadas de apoio de um lado e de idosos, igualmente precisando de ajuda do outro.

— Veja onde você se localiza melhor e busque contribuir, humanize-se, para que a sua existência possa valer a pena, para que não seja mais um esforço em vão. Se estamos aqui, é porque confiamos em você, e na sua capacidade de fazê-lo.

— Entendi, mas onde estou?

— Isso agora não é importante Marie, o que importa é que você está entre amigas que te apoiam e oram por você. Você vai dormir e ser reconduzida de volta ao seu quarto. Vai lembrar vagamente que esteve conosco, mas aquilo que é fundamental em nossa conversa, ficará em sua memória. Está bem assim?

Marie meneou a cabeça e logo em seguida adormeceu. Pouco depois das quatro horas da madrugada, acordava com um misto de desconforto, surpresa e finalmente satisfação. De um lado as lembranças do salão e o susto que aquilo lhe causou. Do outro lado, a lembrança, ainda que vaga, de que tudo o que viu naquele salão, não possuía maior valor, na vida que precisava levar.

Sentia como que se tivesse ocorrido outro sonho, que motivou a surpresa. Este já em outro lugar, que lhe inspirava confiança, que se transformou em satisfação.

Finalmente compreendeu o recado que havia recebido. Fez algumas anotações em um pequeno caderno, e em seguida, já tranquila e refeita, voltou a dormir.

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