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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Imigrantes da guerra

                                                                                  

Por: Antonio Mata

A Segunda Grande Guerra Mundial, foi geradora de grandes pesadelos para a humanidade, de consequências inimagináveis.

Perseguições, invasões, deportações, assassinatos, genocídios, enfim, o exercício da crueldade cria o esfacelamento das mentes.

Muitos foram então  acomodados na floresta para que pudessem descansar suas mentes pesadamente afetadas por um passado de incontáveis maldades e violências. São espíritos que sucumbiram à dor.

A grande floresta, assim como outras grandes extensões de espaços naturais do mundo, na medida em que as sociedades cresciam, e o número de guerras também, passou a ser utilizada como lugar de repouso.

Nestas regiões de um certo grau de isolamento, porém, repletas das energias da Terra, levas de espíritos submetidos a grandes tormentos; usualmente são acomodados.

Normalmente, isto costuma ser realizado em pequena escala; pois é algo bem específico. Nas guerras mundiais a escala de sofrimentos foi dantesca, ensejando um maior deslocamento para espaços naturais mais distantes.

Tais tormentos os conduziu a uma condição de quase loucura, sendo que muitos cruzaram este patamar extremo. O  afastamento de suas sociedades de origem, marcadas pela guerra; foi uma ação terapêutica de tal forma que o aprendizado do espírito não se perdesse.

 

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Pela atitude e pela dedicação ao trabalho, no ofício rude que marcava aqueles idos e aquelas paragens; não haveria de se pensar que o homem já cruzara os sessenta anos em condições tão exigentes.

Ainda assim, a despeito do esforço em extrair o sustento dia após dia, soube apreciar as épocas. As boas e as mais difíceis; e as oportunidades que então se fizeram presentes.

Ao vislumbrar tais possibilidades em seu tempo, preparava o terreno íntimo para outras iniciativas. De uma maneira tal que, para além daquele cenário de aparente abandono e esquecimento, só na aparência, afirmava sim; sua condição de iniciativa e fé diante da vida.

Alguns reagiam dessa maneira, outros em condições idênticas; se manifestavam na ótica mesma do abandono e esquecimento. Uma estranha situação, da feita que, se fossem obrigados a decidir, era comum que se decidissem pela permanência naquelas paragens. Algo em particular os atraía.

Houve aqueles que se decidiram pela permanência, enquanto muitos se afastavam, notadamente os mais novos.

Para aqueles que permaneciam, havia naquilo um sentido de satisfação. Era simples, modesta e limitada no seu alcance, porém; há de se entender de que não eram seres infelizes.

Apreciadores da quase solidão e das distâncias extremas, assim entendiam, não deixariam suas paisagens, cores, sabores e odores, às quais haviam se afeiçoado de uma forma tão permanente e tão dócil.

Portadores e construtores de sua própria identidade; criaram sua concepção de bem-estar, que às vezes, na realidade muitas vezes; não chegava a ser compreendida pelos demais.

Para falar mais exatamente, cruzaram a história dos homens à conta de gente sem valor. Diriam atrasados, alienados; primitivos.

Anésio havia concluído o corte da malva para aquela safra. Para extrair as últimas plantas, fora necessário retirá-las em mergulho; na medida em que a cheia do rio já havia iniciado. Então, o que não se colhesse; automaticamente estaria perdido. O rio não espera por ninguém.

Completada a colheita, agora promovia a soltura das fibras pela maceração. Os feixes são postos em água por alguns dias até que as fibras se soltem. Então são secas, e os feixes estocados para serem postos  à venda.

Enquanto houve um preço para a fibra que justificasse o esforço, foi um plantador. O pequeno excedente obtido era transformado em um ou dois bois, por safra. Isto, pois o boi é moeda viva, é reserva de valor; relativamente fácil de ser trocado, ou transformado em dinheiro.

Quando a procura por fibra caiu, Anésio se dedicou à produção de farinha de mandioca. Ainda que o tempo de rendimentos melhores tenha passado, a farinha sempre foi alimento muito apreciado por pobres e ricos nas cidades que cresciam.

Na medida em que os anos avançavam, surgiu a possibilidade de diversificar a sua produção. Tornou-se um ofertador de alimentos. Isto se deu lentamente; um aprendizado realizado ao longo de várias décadas de trabalho.

Veio então, o aprendizado da qualidade, que junto à diversificação, lentamente acrescentava um fator novo em seu modo de viver e trabalhar.

O produto de melhor qualidade era o mais procurado portanto, vendia primeiro. Dentro deste mesmo contexto, pela primeira vez vislumbrou o valor de se dispor de algum maquinário, que o ajudasse a superar com mais facilidade todas as etapas do processo, aliviando o trabalho braçal.

Aos poucos tais ideias se apresentavam e gradativamente achavam o seu lugar. Longe de lamentar suas origens, o recuo da juta e malva, ou ainda a lentidão relativa em cada passo, Anésio vislumbrava o seu papel  de elemento vivo.

Havia aqueles que achavam era graça da afinidade que alguns possuíam com aquelas poucas máquinas que agora estavam chegando. O mais interessante, é que em outros tempos teriam recusado tudo. Eram as memórias que estavam voltando, limitadas, tolhidas, mas voltando.

As mudanças observadas, por limitadas que fossem, ao invés de promoverem a sua expulsão da ribeira; ofereciam o alento da fixação naquelas paisagens que pouco haviam se modificado, desde os tempos de seus avós.

Conquistava o mérito do trabalho executado. Via aqui e ali, outros tantos que se beneficiavam deste mesmo esforço. Sabia que em épocas recentes, muitos haviam partido para as cidades, empurrados pelas dificuldades ao redor.

As populações de beira de rio, geralmente, não eram lembradas pelos melhores adjetivos. Ainda assim, as mudanças lentamente estavam se apresentando. Anésio, observador, já entendia isso.

O suficiente para poder se estender na rede após o trabalho, e simplesmente ver o rio passar, na calmaria das águas, no vento que sopra a copa das árvores. O gorjeio dos pássaros e os sons das matas, tão vivas quanto ele.

Os ocorridos que definiram as lentas mudanças e que criou as condições de permanência vieram ao longo de, pelo menos setenta anos; amadurecendo os tempos lentos. Assim, como eles próprios gostavam de passar, devagar e sem pressa. Não era preguiça; estavam repousando e depois reaprendendo.

Foi assim que a floresta assumiu o seu papel de sanatório, a grande casa de repouso do Cristo, passando a receber grupos de espíritos europeus submetidos a condições de muito sofrimento.

Tanto agredidos quanto agressores foram à floresta e à ribeira conduzidos; pois o agressor submetido ao peso da realidade que ele próprio criou, também podia enlouquecer.

Os casos mais extremados então, são conduzidos às populações de caráter mais primitivo, para que possam repousar haurindo a quietude e tranquilidade dos ambientes naturais. Então, em data futura, retomam a marcha da dita civilização.

É relativamente comum que se decidam por uma permanência maior. Então renascem naquela sociedade que melhor soube lhes apresentar este sentido de continuidade da vida. Se tornam seus nacionais de espírito. O nome disso é gratidão.

Há de se lembrar da afirmativa do Mestre, de que resgataria até a última de suas ovelhas. O que só eventualmente nos chega, posto que nossa ignorância ainda é muito grande quanto a estes processos. São as formas e as estratégias utilizadas; pelas quais o Mestre realiza seus nobres intentos.

É a sua condição de ofertante da misericórdia Divina que Ele sempre foi, em favor de uma humanidade; ainda por demais ignorante e rebelde.

Daí a estadia temporária em corpos de caboclos e de índios para que a recuperação possa se cumprir. Portanto, diante dos homens e mulheres rudes da floresta, e que ainda necessitam descansar; respeite. Você estará vendo o corpo, mas não o espírito.

Também não se esqueça da tragédia que marcou profundamente muitos destes irmãos em suas existências. Mesmo porque, os elementos que motivaram a onda de destruição que os abalou tão pesadamente; continuam amplamente presentes.

Ainda não temos uma visão mais completa do que realmente significou a 2° Guerra Mundial. Porém, nos chega a notícia de que o ajuste de contas ainda perdurou por muito tempo do outro lado da vida, com combates encarniçados na escuridão dos umbrais.

Quando percebemos espíritos se escravizando mutuamente, reprisando nos umbrais os tristes cenários da guerra; temos então um pequeno vislumbre da dimensão da loucura que se abateu por sobre a Europa.

Para estes que aqui chegaram, na condição de enfermos, muitos de seus rebentos já se apresentam como Espíritos da Nova Era.

Na medida em que a leva presente destes enfermos desperta para novos dias, abandonando sua condição de paciente do sanatório, inteligência, operosidade e capacidade, características típicas destes espíritos começam a se manifestar gradualmente.

Junto com seus filhos e netos farão a guarda da grande floresta dos dois lados da vida. Na companhia de índios e outros tantos caboclos do lugar. Não há mais diferenças, só a unidade. Isto também é gratidão.  

 

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