Por: Antonio Mata
Estranho animal
De elos enrolados estava a serpente. Grande, silenciosa, hostil e mortal. Aguardava seu momento de agir. Ser estranho e desconhecido de muitos, logo disputaria espaço com os demais. Porém, onde chegava tinha o costume de vencer.
Então, começou a sair. Desenrolava-se e não havia nenhuma pressa. O som ritmado, o estalido do movimento a esfregar-se no chão. A trilha, esta marcada a fundo para que ninguém esquecesse quem havia passado por ali.
Avançava enlaçando, cercando e fazendo a boscagem cada vez maior. Definia quem iria arrastar, tombar e sufocar primeiro. Quem pôde correr, correu. Quem não pôde, este vai morrer.
A serpente cedeu sob o próprio peso. Das maiores que se viu. Os demais, contritos, assistem a dezenas de homens se movimentando conduzindo o animal terrível. Permanecia inerte, frio e forte. Este já não se move mais sozinho. Pelo peso, pelo tamanho, pela ação descomunal?
Contudo, apenas esperam. Só resta assistir, pois é o epílogo e lutou-se o quanto se pôde. Fim de história.
— Vocês perderam, ficaram sem nada! Seus perdedores! — O indisfarçável ar de deboche e a zombaria partia de um grupo de maltrapilhos e enlouquecidos a serviço de seus captores.
— É agora, já vai acabar. A cobra sem cabeça vai puxar tudo. Só querem terra. Só a terra. — Índios assistiam a destruição daquilo que um dia, foi seu lar e seu berço.
— Mantenham a calma. Podem ter vencido agora, mas não vencerão no final. Mas, precisamos dificultar ao máximo. — Rondon tranquilizava sua gente. Sabia que nem tudo estava perdido. Era preciso trabalhar e confiar, apenas uma questão de tempo. Ganhar o tempo.
Há meses avançavam os trabalhos de desmatamento. A queima da floresta começou a ser dificultada pela presença das chuvas intensas, que durariam pelo menos mais três meses, antes de cessar. As motosserras não são capazes de dar conta. É preciso queimar e arrancá-la. A chegada de maquinaria pesada, em balsas subindo o rio, indicava a decisão de se prosseguir a todo custo. Foi quando a grande serpente de aço foi avistada pela primeira vez.
Animais e índios não a conheciam. Entre os cabocos, alguns já a tinham visto. Mas, não sabiam o que se pretendia fazer ali. Deveria ser grande e destruidora aquela forma de se trabalhar.
Situação por si só delicada, exigia o esforço e dedicação de tantos quantos estivessem dispostos a participar da empreitada. Foi assim que índios, brancos, negros, seus mestiços e estrangeiros que adotaram a grande floresta como um lar, pela primeira vez tinham um objetivo comum.
Desarmados e silenciosos
— Esta não será, como se sabe, a nossa primeira ação e muito menos a última. Contudo, apesar das significativas perdas, prossegue o nosso desejo de retardar ao máximo o avanço sobre as terras do norte. — Olhava para os demais, enquanto concluía.
— Não se trata de dificultar o acesso dos homens, das famílias e de novos imigrantes à região. A guarda e vigilância, um dia iniciada por índios e cabocos, agora se estende e convida a todos que queiram participar.
— Desde Nassau até Rondon, de Rondon até os soldados de hoje. A todos que abracem a causa, o propósito é um só. A grande floresta é patrimônio de muitas humanidades. Não somente da Terra. Então, com seus povos, flora e fauna deve sobreviver.
— Como então poderemos fazer tal defesa? — Fez-se silêncio.
— A resposta é simples. Trabalhando com os fatos do dia a dia. Participando e interferindo localmente, mas também nas grandes decisões quando necessário, no intuito de retardar, dificultar, demover interesses e fazendo desistir. Sempre que possível, impedindo ações concretas.
— Assim, tal e qual um exército invisível e silencioso, que marcha, desarticula, oculta e confunde o adversário, retardaremos ao máximo a ação do homem sobre as florestas. De tal forma que as consciências possam ter tempo para despertar rumo a novos valores e novas possibilidades, oferecendo o tempo, tão precioso e necessário, para o surgimento de novas espécies de plantas e animais. É o aperfeiçoamento e a multiplicação da vida.
— Então chegaremos ao fim do confronto entre forças antagônicas. A sombra contra a Luz. O que obterão aqueles que compreenderam tais esforços, será a cura das doenças e fim da fome no mundo. Este o grande prêmio pela manutenção do grande manancial de vida.
— Contudo esta guerra será travada, frente por frente, combate por combate. Nas esferas locais, regionais, nacionais e internacionais. Aqueles que não desejam a paz na Terra, mas a sua ruína, estarão a postos e prontos a intervir em nossos propósitos. Será preciso ser decidido e persistente. Vale a paz na Terra aos detentores da boa vontade.
O regozijo, o espírito de luta, de união tomava conta de todos. O embate seria difícil, mas o propósito era nobre e honroso demais para ser desconsiderado.
Cruzaria os tempos, até a sua definição. Nascia dos conflitos típicos de um mundo atrasado e egoísta como a Terra. Onde ainda se desconhece a totalidade do fenômeno da vida. Mas, assistiria a implantação de um mundo novo.
Dia a dia
Espíritos comuns da Terra, porém, dispostos a contribuir com a inibição das ações rumo às áreas de desmatamento, criavam toda sorte de confusões e obstáculos.
— Essa desgraça não presta. Esse diabo nunca prestou. Falei até ficar rouco para reformar esse motor, mas não adianta. Quanto mais eu falo, menos me ouvem. Entender, nem pensar.
— Calma Russo, quanto mais você reclama pior fica. Vou te dizer uma coisa, Russo. Tem motor usado que quando quebra, é porque a peça já gastou tudo que tinha para gastar. Motor não quebra à toa, nem deixa ninguém na mão. Tô lhe dizendo. — Onorato buscava tranquilizar o maquinista do barco.
— Não essa porcaria que tem aqui. Quanto mais eu mexo, pior ele fica. Isso tem que ser jogado fora.
Russo expunha sua frustração quanto a sucessão de panes que atrasavam o transporte de equipamentos e de pessoal rio acima. O motor realmente parecia não corresponder aos cuidados e reparos oferecidos pelo maquinista fluvial.
O que o homem não sabia, é que uma disputa silenciosa e de paciência, mas que também envolvia muita luz e muito trabalho, estava em franco andamento.
Pequenas modificações, quase imperceptíveis, no ajuste da máquina eram realizadas, fazendo com que o motor se detivesse novamente, retardando o deslocamento do barco.
Tão logo os sapadores se afastavam, espíritos sombrios batiam a cabeça procurando descobrir o que havia acontecido. Em uma situação insólita, ajudavam o maquinista a fazer o reparo o mais rápido possível. Só que nem sempre era tão rápido assim.
— Esse mecânico ordinário, quanto mais tento ajudá-lo, mais o idiota se atrapalha. Esse parido de uma vaca. Marinheiro impostor, feito nas coxas. — Quanto mais o sombrio se enfurecia, mais projetava vibrações nocivas contra o tripulante. Mais atrapalhava e comprometia o reparo que se propunha a ajudar na reparação.
Os próprios sombrios tinham dificuldade em conseguir alguém que efetivamente apoiasse no reparo do motor, sem oferecer ao marinheiro suas energias negras, que só serviam para prejudicar cada vez mais. O resultado final do pequeno imbróglio, costumava ser, mais atraso.
Objetos de uso desapareciam. Tripulantes entregues às suas próprias tendências, se embebedavam, atrasando o retorno ao barco e a retomada da viagem. Conflitos surgiam com frequência entre a marujada, provocando demissões.
Componentes e peças que deveriam seguir com a carga principal, ficavam para trás, dificultando a utilização de equipamentos novos e caros por falta de complementos.
Tudo era motivo de conflito e desânimos ao longo da região e das operações voltadas para a exploração e desmatamento indiscriminado. Desde atrasos no pagamento do pessoal, até a entrega de correspondência, sempre atrasada e sujeita e extravios.
Entrementes, a sombra é assídua e persistente.
— Eu não falei para evitar que estes imbecis brigassem! Vai atrasar o barco mais ainda!
— Chefe, a gente fez isso e realmente eles pararam de brigar. Aí ficamos por perto só para ter certeza que estaria tudo bem.
— E por quê diabos a marujada ainda não voltou?
— Pois é chefe, a gente tomou conta e estava tudo bem. Quando desceram do barco, no próximo porto, foram brigar de novo na primeira bodega que apareceu pela frente. A culpa não é nossa não. É da cachaça chefe. Se não fosse isso, teria sido um rabo de saia ou qualquer outra coisa. Essa gente é louca chefe.
— E eu preciso de você para me dizer isso, seu imbecil?! — O chefe da legião estava perturbado com o baixo rendimento de suas ações. Seu próprio couro..., estava sob risco.
— Não sei em quem eu dou mais pauladas, em vocês ou nesses marujos idiotas. Vou afogar todos vocês em um tacho de mijo!
— Com todo respeito chefe, acho que tem que ser eles, porque estamos fazendo tudo certinho. O tacho de mijo foi uma ótima ideia chefe. Eu mesmo nunca pensaria nisso.
— Cale essa boca, seu fantasma puxa-saco! Some daqui!
— Sim senhor, chefe.
Não era preciso castigar nem prejudicar ninguém. Bastava retirar a proteção espiritual, fator pouco conhecido e de fundamental papel em um mundo tão poluído em suas vibrações e tão moralmente comprometido. Sem o amparo da luz de Deus, o homem simplesmente se perde.
Ano após ano, década após década, a destruição implacável que poderia ter sido realizada no espaço de duas décadas, deixando a Amazônia irreconhecível, sofreu sucessivos atrasos, perdas, falências, golpes e fraudes.
O assassinato, o ouro roubado, o dinheiro perdido, o erário público vilipendiado. O homem se viu entregue às suas próprias ilusões.
As doenças da floresta. Ah, as doenças, as pestes. A malária, o cólera, as disenterias. As febres infindáveis a retirar e inibir a vontade dos homens.
As matas ofereciam um exército de mosquitos persistentes e impenitentes, trazendo a agonia, dia após dia. Sacrificavam a predisposição para o trabalho.
O ataque, este sempre voltado para aqueles necessitados de tão difíceis resgates, abandonados por seus patrões nos rincões amazônicos, que se faziam hostis, ante seus propósitos.
Atrasar ao máximo, impedir ao máximo.
Se a humanidade ao longo de sua história não foi capaz de reunir os entendimentos necessários para a proteção de seu próprio mundo, se a teoria Gaia ficou retida nos livros, aproxima-se o momento do acerto de contas.
A Amazônia sobreviverá ao assédio que tem sofrido, tanto interna como externamente. Último grande reduto, permanecerá na sua condição de ofertante de vida e vislumbrará outros tempos. Muito longe das mentes destruidoras que a cercam hoje.
Suas pérolas estão reservadas àqueles que, com experiência, ciência, dedicação e fé, não as atirarão aos porcos. A nova humanidade vai chegar ao tempo de se chegar.
A missão prossegue sendo cumprida. Quando isto se concluir o marechal intimorato, junto de seus índios, cabocos e demais amazônidas, estará com eles. A guerra invisível, aquela que ninguém percebeu, já se aproxima do fim.