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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

La Isla

                                                           

                                                                                                                            Imagem: Wikimedia Commons

Por: Antonio Mata

A paisagem triste e seca, pela própria circunstância da natureza e dos fatos, trazia um torpor que invadia as mentes e sacrificava a razão dos homens. Contudo a ordem era avançar.

Pelo menos uma quinzena havia se passado com os homens saltando de um buraco para outro, principalmente e parcialmente ocultos pela floresta. Era preciso aguardar. Se ajeitar em posições precárias. Simples buracos cavados no chão.

Tinham avançado cautelosamente. Com muita franqueza e realidade, já haviam perdido o respeito pelo adversário. Daí a chateação de se avançar tão lentamente, ao invés de um ataque devastador que definisse logo a situação. Estavam tão dispostos a atacar, que até uma carga de baionetas, debaixo do sol, seria encarada com muita satisfação.

Onde se parava, novas trincheiras eram escavadas. Mal atingia os 70 cm, chegava a ordem de novo deslocamento. Tal procedimento cessou, ao se entender que não haveria um contra-ataque. Os esclarecedores adiante, não detectavam movimento inimigo e os bosques ao redor ofereciam abrigo suficiente.

Assim, boa parte da vida de um soldado significava caminhar, cavar e suportar o calor e a poeira infernais, além de pouca água. Estes sim, inimigos impertinentes de todos os dias.

A mistura de cerrado, floresta e deserto criava um ambiente inóspito e agressivo. A poeira ao vento leve e quente, entrava pelos olhos e narinas. Penetrava pelo uniforme de campanha e grudava na pele. No corpo virava lama.

Primeiro, de buraco em buraco, depois de um bosque até o outro. Chegou-se a algo em torno de mil metros da linha inimiga. Entre os oponentes, bosque e depois cerrado, antes de chegar nas defesas, dentro de um perímetro descampado e seco. Uma característica da geografia do lugar, conhecida como isla.

Lá dentro, uma sequência extensa de trincheiras. Mais profundas e mais preparadas, recebendo bunkers, para a proteção contra o fogo de artilharia. Na verdade, buracos tapados com toras de quebracho. Com tempo suficiente para se montar o perímetro defensivo da vila, o lugar era perigoso. Daí toda a cautela.

Vila só na maneira de dizer. Era sim um povoado, um lugarejo pobre, criado sob o pretexto de assegurar a posse da terra. Contudo, ruim de se plantar pela dificuldade em obter água. A exemplo de outros povoados já conhecidos, recebiam talvez uma ou duas centenas de almas. Com o deslocamento da frente, serviam como pontos de apoio. Tomar estes lugarejos determinava o avanço e dava moral à tropa.

Madrugada chegando ao fim e o aviso fora dado, assim como munição extra, no dia anterior. O sol logo brilharia denunciando as posições e intenções. Antes disso, a passo curto, a tropa deslocou-se sob o resto de escuridão. A ausência de sinalizadores lançados ao céu ajudava e muito. Significava claramente que não estavam sendo esperados.

Deixaram o bosque, o cerrado e adentraram a isla. Talvez, não houvesse 200 metros entre eles e a trincheira inimiga. Em minutos o sol brilharia em suas costas deixando clara a linha de trincheiras. Um avanço final com os soldados rastejando. Permaneceram deitados momentaneamente. Havia muito de um inacreditável silêncio.

Alguém cochichava:

— No es possible, ya deberían estar vendonos. Algo está mal.

— Cierra la boca Tenorio. El capitán sabe o que hace.

— Las ametetralladoras también.

— Cierra la boca Tenorio.

Com os invasores a menos de 50 metros, o sol ofereceu seus primeiros raios. Em seguida veio a ordem de atacar. Ao comando, os soldados levantaram-se e iniciou-se uma corrida temerária e aos gritos. Em doze segundos estariam sobre o inimigo, saltando para dentro das trincheiras.

Alfonso, com uma metralleta Erma MP-35, já dentro da trincheira, seguia à frente conduzindo os atacantes naquele setor. Avançava abrindo fogo, cuidando de verificar os abrigos todos, à busca de inimigos. Sem, contudo, encontrá-los.

— O trecho está limpo! Aqui só existem corpos.

— Prestou atenção em uma coisa Alfonso?

— Em quê? Fala logo!

— É só olhar de perto. Estes homens não possuem sangramento. Veja só, somente seus disparos, mas sem sangrar.

Ao se aproximar para enxergar melhor, Alfonso percebeu os lábios rachados e a pele ressecada de um dos soldados mortos.

— O que você acha que possa ter sido?

Alfonso responde calmamente.

— Estes homens morreram de sede.

Logo o perímetro fortificado foi dominado, sem maiores esforços e a cena se repetia. Uns poucos resistentes que acabavam se rendendo, além de homens mortos com uma bala na cabeça ou no queixo. O dedo do pé direito, entre o gatilho e o guarda-mato do fuzil, denunciava o suicídio. Além daqueles que simplesmente morreram de doenças ou de sede. Os demais, que também já eram poucos, haviam fugido dali.

Em um mastro, feito de pedaço de pau, no ponto mais alto do lugar, hastearam a bandeira do Paraguai. O ponto fortificado havia sido tomado.

 

Recrutamento

Concepción, na Bolívia, surgiu como uma redução missionária jesuítica, em 1709. O lugar reunia índios chiquitanos, que até hoje vivem na pequena cidade, ali criada em 1915. Foi em Concepción que também em 1915 e 1916 nasceram os irmãos Esteban e Pablo, também índios chiquitanos, assim como a maior parte da população do lugar.

Filhos de lavradores, o tempo passava sem maiores alterações, ou algo que trouxesse um fato novo para a vida. Dividiam o tempo entre o apoio aos pais na lavoura e os banhos na represa Zapocó, com as demais crianças e jovens.

Oportunidade também para se aproximar das moças nos dias de festa na recém criada municipalidade. A beleza natural do lugar e as temperaturas amenas faziam parte do cenário.

Por mais que achassem a vida de lavrador difícil e monótona, além do fato de serem analfabetos, um problema a mais, como a maioria da população, havia fartura, muito trabalho nas plantações de milho e um certo bem estar.

Isso mudou em 1934. A Bolívia estava em guerra contra o Paraguai, desde setembro de 1932 e enfrentando dificuldades, ainda que tal notícia não circulasse pelo país.

De todo modo, já havia quem comentasse que o exército continuava a fazer novos recrutamentos, sem que os soldados mais antigos sequer viessem para casa, ao menos de licença, por uns poucos dias. Mesmo que residissem próximos da região do Chaco Boreal. Havia pouca informação a respeito da real condução da guerra pelos seus comandantes.

Chaco Boreal designava, indo para o interior, o perigoso, quente e seco teatro de operações que recebeu a guerra entre os dois países mais pobres da América do Sul, envolvidos em uma disputa armada pela delimitação das fronteiras e a definição de quem pertencia as terras do Chaco.

A expectativa de se encontrar petróleo, além da possibilidade de chegar ao mar a partir do rio Paraguai, motivou mais ainda as autoridades bolivianas a entrarem em guerra. Foi o suficiente para que suas tropas na região, atacassem guarnições paraguaias, iniciando a guerra. A reserva e produção de petróleo, de fato nunca se cumpriu. A saída para o Atlântico, muito menos.

O Paraguai via o Chaco Boreal como terra de expansão para a sua pecuária que já se realizava na região, cortada na sua porção leste pelo rio Paraguai, e a oeste pelo rio Pilcomayo, aliviando a questão da água.

Na casa de taipa, equipada com o conforto e apetrechos que a madeira, o barro e a criatividade podem oferecer, além de uns poucos utensílios metálicos. Esteban e Pablo se despedem dos pais e dos cinco irmãos, todos mais jovens. Receberam a convocação do Exército. Uma equipe de militares percorria os rincões do interior do país reunindo homens jovens para o alistamento e serviço da pátria. Coisas que os dois irmãos nunca haviam escutado falar.

A junta de recrutamento se localizava em Santa Cruz de La Sierra, para onde os homens eram encaminhados para registro e direcionados para o treinamento na guarnição local.

Em poucas semanas, os soldados de infantaria Esteban e Pablo, em uniforme de campanha e portando seus fuzis Mauser 1898, boldrier, cartucheiras, cantil e munição, estariam marchando rumo ao Chaco, no Sul do país.

 

Guerra no Chaco

O batalhão, de 720 soldados deveria seguir para Garrapatal, perímetro defensivo em uma isla, que se encontrava sob pressão da artilharia e infantaria paraguaias. O perímetro de trincheiras resistiu por mais de um mês, sendo depois abandonado às pressas, sem munição suficiente e principalmente, sem provisões e sem abastecimento regular de água.

Foi em Garrapatal que os irmãos souberam do suicídio de soldados, por conta da situação inóspita em que viviam. O calor intenso, a falta de provisões e água aumentavam o desânimo para o combate, pois o exército boliviano, só recuava.

De resto, o batalhão na defesa de Garrapatal, perdeu mais da metade dos seus homens, capturados ou mortos. Pablo e Esteban perderam contato quando da retirada.

Jovens inexperientes, mal equipados e mal comandados, morriam sem a chance de aprender a lutar, ante o inimigo que só crescia em número, recursos e experiência.

Em fuga, a tropa remanescente chega a La Faye. Outra isla defensiva. A exemplo de Garrapatal, não havia provisões suficientes e a guarnição local racionava a água já há vários dias. Não havia água para os novos defensores.

O ano de 1934 terminou com as forças bolivianas sendo empurradas para o norte. Nada parecia dar certo. O número de baixas era ocultado da própria tropa. Nem por isso, pois a colocação de soldados inexperientes em combate imediato, sem unidades mais calejadas para lhes acompanhar, deixava claro que os mais antigos haviam morrido ou sido capturados.

Foi a dúvida que ficou com Esteban até o final do conflito, em junho do ano seguinte, quando um armistício pôs fim à matança, agora sabidamente inútil. O governo boliviano havia atirado seu país em uma guerra sem o apoio de ninguém. Nenhum governo esteve disposto a concordar com os invasores.

 

O retorno

Com o fim da guerra Esteban retornou para Concepción. Concluída a repatriação dos mais de 23 mil prisioneiros bolivianos, trocados pelos 2498 prisioneiros paraguaios, Pablo não apareceu e nem se ouviu falar dele.

A família manteve acesa a chama de que talvez tivesse se perdido, ou que ainda houvessem prisioneiros remanescentes. Uma ilusão, já o sabiam, que não resistiria ao tempo.

Esteban, reunido aos amigos e familiares no Natal de 1935, contou-lhes algo que sepultou qualquer chance de ter Pablito de volta. Todos ouviam com atenção.

— Quando a guerra acabou e nos preparávamos para retornar para casa, o que não iria demorar, pois continuávamos sem comida e água suficiente para todos, pude ver Pablito.

Os olhos se arregalaram.

— Você o viu Esteban? Ele esteve com você? Porque não retornou contigo, o que houve?

— Aconteceu alguma coisa com Pablito? Conta logo! — Dizia outro.

Esteban ofereceu seu relato.

— Pude ver Pablito, pelo menos umas três vezes andando pelo acampamento. Depois ficava de pé, como que observando a mim e aos demais. A mesma cara empoeirada, o jeito tristonho, de boca seca e olhar vazio. Procurava me aproximar, só que então ele sumia. Desaparecia da minha frente.

— Ora, então era uma alma? Indagava um.

— Sim, a alma de Pablito querendo voltar para casa. Dizia outro.

— Por que não nos contou antes Esteban?

— Eu não podia. Também queria acreditar que era só a minha imaginação. Que vocês poderiam ter razão em querer aguardar. Só que o tempo foi passando...

— Entendi. Então, precisamos de uma missa pela sua alma. Deixe que eu mesmo vou cuidar disso Esteban.

— Ele depois desapareceu? Perguntava outro.

— Não, ele não desapareceu.

Esteban aguarda um instante para prosseguir com seu relato.

— Ele voltou comigo. Aqui e ali, podia vê-lo ao meu lado. Caminhava comigo. Chegou aqui junto comigo e agora está por aqui. De vez em quando posso vê-lo, no banco debaixo da árvore. Na beira do lago, olhando o milharal, ou mesmo em casa sentado perto do fogão. Ele ainda está aqui.

— Ora Esteban, mais um motivo para pedirmos uma missa pela sua alma.

— É, acho que sim.

— Claro que sim. Para que possa partir e descansar em paz. Pablito foi um guerreiro, um lutador.

— O Pablito que eu conheci, era só um garoto assustado com um fuzil na mão, apenas esperando que a morte o encontra-se. Foi só mais um, de um monte de garotos.

Após nova parada, outra constatação.

— Se é que importa saber, acredito que Pablito não se matou, não se entregou, nem fugiu. Não o vejo com marcas de sangue, só a boca seca. Ele preferiu morrer de sede guarnecendo seu posto. Morreu como um soldado.

A missa em memória de Pablito foi feita, seguindo-se outra posteriormente, com um ano do término da guerra.

O espírito de Pablito prosseguiu aparecendo eventualmente, na casa da família e em outros lugares nas imediações.

Esteban retornou para seu ofício de lavrador. Casou-se, constituiu família e tocou adiante seus dias. Por pelo menos uns vinte anos, ainda pôde avistar seu irmão. A mesma farda empoeirada e o rosto sofrido com os lábios secos e rachados.

Nunca deixou de lembrar do irmão, nem das lutas intensas e breves dos tempos de guerra. Na sua simplicidade de lavrador, só gostaria de poder conversar com o irmão e saber que estava tudo bem. Sempre entendera a perda do irmão como um despropósito.

O tempo passou e Esteban envelheceu. Certo dia, já afastado, sem estar às voltas com os encargos da roça, acordou ainda de madrugada, como de costume. Sentou-se em uma cadeira de balanço à frente de casa. Gostava de ficar ali, enquanto o sol lentamente surgia no horizonte.

De repente, com os primeiros raios de sol, apareceu mais alguém. Fixou a vista procurando identificar o visitante que aparecia assim, tão cedo e tão inesperado.

— E então, vamos lá? Agora está na hora. Você não queria conversar? Então homem, vamos.

Logo ali adiante, lhe chamando, estava Pablito. Já não tinha mais a farda de outros tempos, nem a face triste, nem a boca rachada. Estava contente e sorria.

Levantou-se com a ajuda do irmão e saíram os dois, ainda que estranhasse, conversando, contando histórias sobre os episódios da vida. Aqueles que são alegres e aqueles que são tristes, mas que valiam a pena de serem lembrados.

Em meados de 1995, Esteban foi encontrado sem vida por sua neta, Maria Vitória. Pôde vê-lo recostado na cadeira de balanço, reparou que o velho parecia sorrir.

 

FIM

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