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Murmuração

                                                             

                                                                                                                   Imagem: Rauschenberger por Pixabay

Por: Antonio Mata

Ainda se podia sentir um pouco de frescor. A fornalha parecia abrasar a tudo e a todos. Logo iria recomeçar. Um tempo anormal, pouco compreendido, mesmo por quem pesquisava e o acompanhava dia após dia.

Dias excepcionalmente quentes. Mudança climática diziam. As referências climáticas mundiais, estudadas sistematicamente desde o Primeiro Ano Geofísico Internacional de 1957/58, simplesmente estavam se perdendo. Mais de 60 anos de pesquisas continuas, já não ofereciam mais consistência. Evidente demais que havia interferências neste mundo.

Moisés estava sentado na varanda, de frente para o sol nascente, aguardando o movimento já festejado tantas outras vezes. Nascer, crescer, fenecer e depois renascer. O sol contava para todos, insistentemente, a mesma história.

Aproveitava os últimos momentos de frescor. Logo chegaria à terra um calor estupendo. O alimento se tornava difícil. As pequenas criações, utilizadas para complementar a alimentação, já enfrentavam o mesmo risco. Caminhavam para ficar sem ração e, em breve, sem água.

Um sonho inesperado vagava em sua mente, enquanto o sol se levantava, disposto a não se deixar esquecer. Mesmo que o homem assim o quisesse. Este não permitiria tal teimosia.

E agora, o que vamos fazer? Perguntavam todos.

Moisés, taciturno, sentado em sua varanda, repetia o mesmo: “esperar, trabalhar e sobreviver. Um dia há de passar.”

— Quem dera tivéssemos morrido por mão do Senhor, mas em nossa própria terra. Estávamos todos muito bem. Sentados junto às panelas de carne, legumes, grãos e comíamos pão a fartar! Nada nos faltava. Por que nos trouxe a este deserto para matar de fome a toda esta multidão? E o pior, nós aceitamos.

Moisés escutava, em silêncio e desolado, a toda aquela onda de incompreensões. Não acreditava que tivessem sido abandonados para morrer daquela forma. Era preciso persistir e sobreviver. Até que tudo mudasse mais uma vez.

— Vocês estão cobrando de Moisés como se ele pudesse prever tudo o que aconteceria depois, inclusive a tal da mudança climática. Nós aceitamos, pois nos era vantajoso. Pudemos ter um pedaço de terra a um preço que nos foi possível pagar. A irrigação dava certo. A colheita era boa. Todos estavam crescendo. Até que a seca chegou, pesada, por cima de todos, pelo mundo todo.

Romão procurava ser coerente com os fatos. Revoltas e conflitos não iriam contribuir para algo que lhes fugia a chance de solução. Sabia que teriam de esperar. Contudo, espera-se com paciência ou com desespero. Todos teriam forçosamente que escolher como haveriam de realizar aquela travessia.

— Ele tem razão. — Dizia Juliana. — No Sul estão enfrentando o mesmo problema. Em alguns lugares já estão matando até os bois, antes que morram de fome. Todos estão buscando sobreviver. Isso é tudo.

— Então, estamos dentro de um sistema que já não responde àquilo que a ciência sabia e oferecendo mudanças bruscas. Pelo menos é o que nos parece. Nas cidades a situação está se tornando calamitosa. Os hospitais estão saturando mais uma vez. Agora são pessoas com problemas respiratórios e cardíacos.

— Sim Romão, acho que é isso. É no que consigo pensar. De resto, trabalhar, orar, vigiar e esperar. Um dia há de passar.

A onda de calor intenso prosseguiria por mais algum tempo, até ser substituída por chuvas, igualmente inclementes, com o transbordamento dos rios.

As cidades, com a superfície impermeável, sofreriam com os aguaceiros, além dos ventos fortes e anormais. Nas latitudes mais baixas o inverno seria igualmente intenso e perigoso.

O por do sol se fez, aliviando aos poucos o calor intenso. A noite, ainda que morna, permitiria o repouso e a contemplação do céu limpo de nuvens, ainda que ligeiramente obscurecido de poeira. Prosseguir, orar, trabalhar e sobreviver.

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