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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Não temos água

                                                                              

                                                                                                                                            Foto: Frander Rosales V

Por: Antonio Mata.

Caminhava até o pequeno apartamento, meio cambaleante, a vista flutuante, a cabeça tonta e a garganta seca. Resultado da noitada de sexta-feira, quando a bagaceira estava muito boa, e se estendeu até a madrugada de domingo. Por volta das sete, estava de volta.

 Entra, se tranca no banheiro, despe-se com dificuldade, e busca uma chuveirada que o traga de volta à realidade. Abre o registro, fecha os olhos e fica a postos, como quem aguarda uma benção há muito procurada. Só que ela não vem.

Urrando, sai do banheiro bêbado, seco e sujo. Vai até o quarto de sua mãe e de sua irmã, como quem busca satisfações, mais que explicações, com a voz e o palavreado típico dos alcoolizados.

— Tá sem água nessa imundície, tá sem água?

— Está sem água desde a noite de sexta, meu filho. Respondeu sua mãe ainda deitada.

— Mas é muita esculhambação! É muita falta de respeito com o morador dessa joça!

— Raul, só tem água na geladeira, e para beber, é lógico. Depois, é preciso sair e encontrar um garrafão de água mineral. Aqui por perto já acabou. A vizinha me disse ontem.

Como a lógica é domínio dos sóbrios, aliás, de um punhado deles; saiu da porta do quarto insatisfeito. Nas curtas distâncias do apartamento; alcançou a geladeira.

Agora havia ficado mais fácil para Raul entender porque o banheiro naquela festa fedia tanto. Pela manhã, quando pediu água mineral, lhe trouxeram refrigerante. Quando pediu água da torneira, o que lhe trouxeram mais cerveja.

Apanhou uma garrafa d’água, tomou um pouco e retornou ao banheiro, ato contínuo virou a garrafa por sobre a cabeça. A água gelada lhe provocou um choque repentino. Atordoado com a idiotice, deixou a garrafa cair no chão, espatifando e espalhando cacos de vidro pelo banheiro.

Pisou nos cacos, cortou o pé direito e deixou o corpo nu, quase desfalecido, molhado e sujo, escorregar recostado na parede até atingir o chão. Com o pé sangrando desfaleceu de vez.

A mãe e sua irmã se levantaram, e foram ver qual era a façanha nova de Raul. Aos 27 anos, fedido e ensanguentado, sentado no chão de cabeça baixa; dava bom dia a todos.

— Mãe, a senhora vai socorrer esse traste novamente, vai?

Dona Antonieta, simples e gentil, olhava para a filha, e ela, sem ter que pensar muito; já sabia a resposta.

— Pega a caixa com gaze e esparadrapo minha filha. Preciso fazer um curativo nesse pé.

No prédio, outros moradores acordavam e acionavam o zelador, só para saber da mesma notícia do sábado. Não estava ocorrendo abastecimento de água.

Reinaldo, vizinho de dona Antonieta, compadecido com a situação da senhora, saiu de garrafão debaixo do braço. Percorria o comércio dos bairros próximos em busca daquilo que, não demoraria muito, seria motivo de grandes conflitos e brigas pelas ruas, e pelas cidades do país; a falta de água para todos. Pelos aplicativos já não era mais possível comprar o produto; não havia disponibilidade. Não demoraria para Reinaldo entender que a busca não era por água mineral. Precisava sim, de alguém que lhe oferecesse água para beber.

Os mananciais de água alcançaram níveis extremamente baixos pelo país afora. A hidroeletricidade se tornou precária e insuficiente, com diversas usinas diminuindo criticamente seu fornecimento de energia.

Casos mais agudos provocavam a paralisação de suas atividades por falta de água para girar suas turbinas. O fornecimento de energia nas cidades entra em racionamento extremo. Em algumas, sobrevém o colapso.

A despeito das notícias, e de episódios críticos que a história do país registrou em tempos relativamente recentes, como as ocorrências em São Paulo, a população desatenta e descrente, não tomou cuidados mínimos para enfrentar uma crise hídrica que se alastrava silenciosamente por todo o globo.

As multidões se amontoavam de vasilhames nas mãos, ante a chegada de carros pipa, em diversas partes do mundo. Exércitos são mobilizados para assegurar um mínimo de água para seus respectivos países. Pequenos fluxos de superfície se tornam motivo de grandes disputas.

Antigas teorias sobre o transporte de icebergs são mais uma vez retomadas na busca de fontes alternativas. Rebocá-los, motorizá-los; fazer buracos sobre sua superfície, de modo a reter a água do gelo despedaçado; envolver pedaços de icebergs. Canalizar a neve do inverno. Nas residências, conduzi-la a cisterna. Os inventores estão de volta.

Navios visitam a foz do rio Amazonas, já debilitado pela estiagem, com o propósito de abastecerem seus tanques com água potável, que é transportada para a América do Norte, países da Europa, Oriente Próximo e norte da África.

A captura de água pelos telhados na estação das chuvas e retenção em cisternas para uso na estiagem, cena usual no sertão nordestino brasileiro, se torna prática comum e urgente nas cidades do país e do mundo, onde ainda se mostrava viável.

Aqueles que tiveram a felicidade e a iniciativa de preservarem nascentes de córregos e riachos, agora comemoram o resultado  da pequena proeza, com água de superfície e pequenas lavouras, em um momento de estiagem extrema.

Substrato óbvio e subjacente, logo se manifesta às vistas de povos totalmente despreparados e empobrecidos para enfrentar o que se apresenta diante dos olhos; a fome. Extensa, difícil, crítica; os povos sofrem.

Sinal após sinal, alerta após alerta, a Terra avança mostrando a conta final de mais de um século de desvario exploratório, sem a expectativa de limites, ou de esforços massivos de reposição. O mundo todo tem sede.

Os noticiários do globo dão ciência, no estilo alarmante  e sensacionalista, que se lhes fez recorrente, da crise hídrica mundial. Cenários antes impensáveis surgem nas telas do mundo. Aqueles mesmos que levaram um homem, alçado ao sétimo céu, e já nonagenário; ao delírio e à profunda ansiedade.

Preso por ser justo e bom. Perseguido por insistir em pregar e alertar às pessoas simples do povo o que os tempos futuros trariam, sofreu suas angústias absolutamente só. Em um ato de desespero, mas também de grandeza, deixou seus relatos; suas angústias e apreensões por escrito.

Assistiu ao assassinato de seu mentor e mestre, ainda em sua juventude. Nem assim esqueceu ou desconsiderou as lições com ele adquiridas.

Agora presenciamos o resultado de suas apreensões, como se a carta, atrasadamente chegasse ao destino. João Evangelista finalmente será lembrado pelos homens. Porém, os quatro cavaleiros por ele preditos, já estarão sobre a Terra.

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