Por: Antonio Mata
Esquentava igual caldeirão no sol. Alguém falou, que alguém contou. Escutava incomodado com a depreciação ao ferro e ao aço, já que via os homens se reunindo logo ali, prontos para partir.
Caldeirão era assunto das mulheres da cozinha. Ora, era verão, tempo bom de marchar e pelejar. Mesmo sendo rapazola ainda e vendo os cavaleiros com suas armaduras.
Tinha a cabeça tapada por um elmo imaginário. Mas, cheia de espadas e escudos. De justas, galopes, lanças e bandeiras. Para ele, isso sim importava.
— Quero ser cavaleiro e marchar para a guerra. Enfrentar os infiéis de espada em punho. Como estes que estão partindo agora. Vão lutar pela cruz do Cristo. Quer coisa melhor?
— Você tenha calma e se prepare. A vida costuma reservar muitas surpresas. Trate, primeiro, de aprender a viver. — Diziam ao jovem e valente rapazola.
Apesar de tudo, com ou sem surpresas, seu desejo de ser cavaleiro o conduziria a outras plagas e os homens, no seu afã de aventura, fama e riqueza, gradativamente a outros tempos. As justas, com suas armaduras reluzentes, estavam prestes a ficar para a história.
Quando os homens reunidos, carregando suas armaduras e armamento, embarcaram para combater os infiéis mouros em Ceuta, o jovem escudeiro sabia que mais dia, menos dia, chegaria sua vez. O sol por sobre o elmo e demais partes de aço martelado, era o que menos haveria de o afligir.
Contudo, o tempo não para e pouco se importa com os caprichos de um aspirante a cavaleiro. Quando se fez homem, os combates da tomada de Ceuta, de 1415, já haviam ficado para trás.
As demandas de seu suserano seguiam mais para o Sul. Tudo de forma muito própria. Sem elmo nem cavalo. A cruz do Cristo seguiria sem estradas ou trilhas. Mas, de outras formas.
Desde os tempos em que o Infante Henrique se estabelecera em Lagos e o fizera seu escudeiro, para o orgulho da família, percebera que os interesses de seu senhor eram muitos. Além de insistir e muito, para que aprendesse a navegar e adquirisse gosto pelas coisas do mar. Mesmo assim, ainda acreditava que iria embarcar com um cavalo, uma armadura e sua espada.
Um reino decidido a se expandir. Uma monarquia nacional, quando os homens da maior parte da Europa, mal sabiam o que isto poderia significar. O caminho é que já não era mais por terra. O pequeno Portugal teria de se fazer ao mar, mais uma vez e outras tantas vezes.
Os Eanes, família da baixa nobreza local, em Lagos, sem maior expressão entre as autoridades do reino. Contudo, ter um filho escudeiro de Henrique, isso sim importava e muito. Uma das maiores autoridades do reino, abaixo de El Rey, João I.
Assim o jovem escudeiro cumpriria seus dias a serviço de seu rei. Ao lado de um infante que não dava preferência às justas e às lendas da cavalaria. Mas, aos navios e ao mar.
Lendas, fantasias e mitos medievos, considerava questões de menor valor. Principalmente, se tivessem o papel de incutir medo aos tolos. Fato sempre lembrado a Gil Eanes, recebido por Henrique ainda muito moço.
Algumas tutelas criam jovens cínicos e ignóbeis. Mas, não o garoto Gil, dos Eanes. Henrique percebera a coragem e determinação do seu escudeiro.
Ainda assim, a nobreza tem seus percursos e a política, suas razões. Gil permaneceria no exercício de funções menores e somente aos 32 anos, chegaria finalmente o seu momento. Homem feito, receberia importante comissão nos planos estratégicos de Henrique.
Foi assim que o infante lhe conferiu o posto de capitão. Conduziria uma barca de vela redonda e somente um mastro. Um barco pequeno e comum. Para a segurança e a natureza da missão, poderia ser impulsionada a remos, apoiada em seus quinze tripulantes. Isto era tudo o que iria receber.
Chegou a objetar por qual razão o infante Henrique lhe conferiu a capitania de embarcação tão modesta. Há doze anos ou mais, que se buscava saber o que havia para além do Cabo Bojador.
Aos adeptos das coisas simples, apontava-se para o número grande de navegadores perdidos. Dados como mortos, em incursões sem sucesso. Muçulmanos e cristãos buscavam a honra de descobrir o caminho para as Índias por mar.
Um punhado destes teriam a honra de enterrar de vez as lendas sobre dragões que incendiavam as embarcações, serpentes marinhas que simplesmente as afundavam.
Sem falar na água fervente, originada no inferno, criadora do forte nevoeiro que escondia as armadilhas do desconhecido mar oceano. Mesmo nas costas da África.
Tudo a precipitar os mais incautos a encontrar a morte, ao fim dos mares e do mundo, em queda rumo ao abismo do assombro e do completo desconhecido. Era a promessa do Cabo do Medo.
Era o destino de Gil Eanes. Um homem entre dois tempos. Um que logo se despediria e outro que se preparava para chegar. Dois mundos místicos. Um tomado de espadas e escudos da cavalaria. Outro, ainda de serpentes, abismos e dragões.
Com um mínimo de conhecimentos náuticos, as bases da navegação na época, mas muita coragem e determinação, Gil logo assumiria sua vida e o seu papel na história. A menos que os dragões o impedissem.
Quantos se arrebentaram nos recifes do Bojador? Quantos foram afundados nos vendavais tempestuosos? Nos caminhos que só levam para o Sul, mas não trazem os homens de volta para casa?
Henrique lhe havia oferecido todo o conhecimento disponível até aquela época. Aquele mesmo que, ainda assim, pouco ajudara a poupar os barcos anteriores.
Algum conhecimento das correntes marinhas, dos ventos, da necessidade de se manter próximo ao litoral africano e incentivos à coragem. Enfim, era muito pouco frente a certeza de que muitos jamais voltaram.
De um lado, a linha ensolarada e inclemente do deserto africano, chegando até ao mar. Do outro, o tenebroso e tão desconhecido mar oceano e à frente, um cabo assombrado, tomado de incertezas e misticismos que o impediam de passar.
Quanto a barca, a resposta não lhe era tão difícil. O infante já perdera muitos homens de valor ao longo dos anos. Uma barca pequena com suprimentos para uma tripulação menor, um nobre tão corajoso quanto sonhador e um punhado de homens. Parecia tudo muito sensato. Caso não voltassem, também.
Então, dos cuidados, receios e recomendações, em poucos dias deixavam Lagos. Ao navegar rumo ao Sul da África, deixaram os limites de Ceuta e do Marrocos. Em certa noite tudo se fizera em um profundo negro de fumo. Literalmente palmilhavam no mar, avançando a passo de cágado, às cegas.
— Ainda estamos a uma légua do litoral, capitão? Está escuro demais.
— Tenham calma, estamos a no máximo 2,5 nós de velocidade.
Tornou a refletir quanto a completa escuridão e o risco de colisão por estarem tão próximos do litoral. Raramente um fogo, um sinal de vida. Está perto, está longe? Como se faz para saber? Entendeu logo que os barcos poderiam estar se despedaçando nas rochas escondidas pelo mar raso. Coisa pouca de se dizer, mas que detinha os homens em um momento crucial da História.
— Medição de profundidade! — Logo lançavam pequena corda com uma pedra e demarcações.
— Profundidade de dez pés e diminuindo, capitão!
— Lançar âncora! Está escurecendo, vamos esperar. Pela manhã, talvez se torne melhor. Seguiremos para mais adiante, de dia. — Ordenava Gil a seus homens.
Dos males o menor. O oceano nestas condições poderia perturbar as mentes cheias de superstições de sua tripulação. Pela manhã o medo do desconhecido seria certamente menor.
Todos se ajeitaram na pequena embarcação, enquanto um ficava de vigia. A cruz e a espada curta ao alcance das mãos. Ante a possibilidade de um ataque repentino.
Gritar pelos demais e lutar para que uma serpente não se enroscasse na barca e a levasse para o fundo. Tão silenciosamente quanto o foi no passado com os demais. Se os homens esquecem, o mar e seus monstros não perdoam.
Rendidos ao sono, abriram os olhos, só para saber que dragões e serpentes não haviam passado por ali. A noite, cercada de negrume que envolvia a barca, quase parada, já passara.
Pela manhã, o negrume sem estrelas foi substituído por um ar leitoso, esbranquiçado e amorfo. Antes fosse claro e visível como de costume. Só enxergava a proa e alguns pés além. Entendeu porque o chamavam de Cabo do Medo.
— Capitão, impossível de se avançar assim. Não podemos ver adiante, quanto mais o litoral. Sem visão e sem profundidade. Ao menos, não houve serpentes nem dragões. Ou melhor, eles ainda não apareceram.
— Ou não quiseram aparecer. — Dizia outro.
O capitão aguarda e então se decide.
— Vamos para Oeste, em seguida para Noroeste, retornando pelas Canárias. Abortar a missão, vamos para casa! — Em que pese serem todos voluntários, a notícia foi bem recebida pela tripulação. Sabiam que teriam de retomar a missão. O infante esperava notícias e não iria desistir.
As Ilhas dos Cães. Ainda em disputa pelos reis de Castela e Portugal, sob arbitragem papal. Habitadas pelos Guanches, antigos berberes, vindos provavelmente, do litoral mediterrâneo da África, antes dos castelhanos e dos portugueses.
Ao tempo de quatro dias, sob a força dos remos, alcançaram o arquipélago das ilhas dos cães, ou Canárias. Divisaram pequeno grupo de pescadores. Se aproximaram, apreendendo o grupo ao desembarcar. Recolheram água e uns poucos alimentos crus, se preparando para partir.
— Amarrem estes guanches aos remos. Deixem os nossos descansar.
— Vai mesmo levar os pescadores?
— Podem Haver castelhanos na ilha. Poderão nos denunciar e teríamos um problema a mais. Não se esqueça de que provavelmente teremos de voltar ao Bojador.
Deixaram a ilha rumando para a ilha da Madeira. Ao ultrapassarem a latitude de 30° N, gradativamente os ventos de Sudoeste ganharam força, inflando sua vela redonda, a caminho da Madeira. Em uma semana chegariam de volta a Lagos, na região de Faro. Finalmente estariam em casa.
Os cativos berberes acabaram conduzidos ao mercado de escravos. Já que os portugueses não os reconheciam como castelhanos e sim, como descendentes de negros, habitantes de uma terra sem dono.
Gil, recebido pelo infante, pôde deixá-lo a par dos últimos acontecimentos e de sua decisão de retornar. O encontro foi rápido e de poucas palavras.
— Compreensível Gil, sua decisão, ainda que esperássemos notícias melhores. Enfim, todos estão em segurança. Prepare seus homens Gil, logo retornarão ao Bojador, sob as bençãos de Deus e os nossos melhores votos de sucesso. Precisamos encontrar o caminho para o Sul. Queira Deus que seja um cristão e de preferência, um português como você Gil.
Mais uma vez ultrapassavam os limites do Marrocos em direção ao cabo. Desta vez, se aproximaram de dia.
— À frente, mantendo a profundidade de 30 pés. — A estratégia era simples. Manter a embarcação em profundidade conhecida. Sempre que houvesse diminuição, fariam uma derivação a oeste, assumindo o rumo sudoeste, sempre que possível.
Avançava lentamente, quando lhe ocorreu algo igualmente simples, a julgar pelo delineamento da manobra.
— Vamos rumar para sudoeste por um dia. Depois retornaremos a leste-sudeste, até o litoral se mostrar visível. Quando então diminuiremos a velocidade e retomaremos os cuidados de sempre ao navegar no litoral.
Com todas as posições demarcadas, segundo o conhecimento da época, finalmente aportaram no litoral africano. Em terra, Gil Eanes recolheu um ramalhete de flores, conhecidas como rosas de Nossa Senhora.
Tornaram a aproar para o norte, fazendo o percurso inverso, de modo a evitar as águas rasas e traiçoeiras do Cabo Bojador. Só que desta vez em um circuito mais aberto, que ficaria conhecido como Mar Largo.
Deixando o litoral da África bem antes do Bojador e seguindo para noroeste, rumo ao arquipélago dos Açores. Lá chegando, logo rumaram para Portugal e Lagos. Gil Eanes entregou ao Infante o ramalhete de flores colhidas além do Bojador. A missão estava finalmente cumprida. Havia cruzado o Cabo do Medo e voltado para contar a história. Corria o ano de 1434.
Gil Eanes retornaria às costas da África Ocidental e seus arquipélagos, ainda em 1435, 1444 e em 1445. Ainda hoje é reconhecida a sua contribuição para o prosseguimento dos caminhos rumo às Índias, deslanchando o período conhecido como as Grandes Navegações.