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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

O menino do fundo do rio

                                                                     

                                                                                                                                         Foto: estevesbae

Por: Antonio Mata

Da realidade que se faz cada vez mais incompleta. Do muito que se acreditava orgulhosamente saber e muito conhecer. O mundo agora tornou-se uma armadilha.

O núcleo da Terra parou de girar e poderá girar ao contrário. Mas, não se supunha que isto tenha acontecido por volta de 1970? Vai parar de novo, ou vai inverter de novo? O mundo físico, o mundo material, ainda é uma grande incógnita. Ainda falta compreender o mundo espiritual.

— Daquilo que eu me lembro, estava com a minha família. Meu pai, minha mãe, meus irmãos e uma tia. O céu escureceu e começou a chover muito. Era muito forte, muita água. Minha mãe e minha tia pegaram cuias para tirar a água de dentro da canoa. Os demais ajudavam com as mãos em concha.

Parou e parecia pensar.

— Meu pai ficou no remo. Procurava manter a canoa a caminho enquanto os demais ajudavam a tirar a água. Eu comecei a fazer o mesmo. Juntava as duas mãos e jogava para fora. Quanto mais se tentava tirar a água, parecia encher mais ainda. Juntei as mãos e joguei mais água por um dos lados. A canoa deu uma guinada para o mesmo lado. Estava sentado e me desequilibrei. Meu corpo tombou para fora da canoa.

Tornou a parar.

— Foi assim que caí no rio. Afundei, acho que afundei bastante. Cheguei a ver a canoa de baixo para cima. Sacudia os braços para voltar, mas não conseguia. Foi quando alguém, eu não sei. Estendeu a mão e me segurou. Acho que queria me ajudar. Só que me levou para baixo, para o fundo do rio.

Meu nome é Ananias. Quando caí da canoa eu tinha seis anos.

— Aí desci, desci, desci. Bem devagar, com a cabeça virada para baixo e alguém me conduzindo. Só conseguia ver sua cabeça. Parecia ter alguma coisa sobre a cabeça dele, que me lembrava casca de árvore. Igual um tipo de pau velho, úmido e cheio de brotos esbranquiçados, são fungos. Só não sabia por quê.

— Continuou descendo. Não sei quanto tempo levou. Quando percebi, pude enxergar mais pessoas lá embaixo. Aos poucos pude ver seus corpos. Era cheio de fungo e de algas, folhas compridas que ficavam esvoaçantes quando se moviam. Igual uma espécie de cabelo. Em alguns cobria o corpo todo.

— Vieram nos receber e nos acompanhavam. Na hora, não pensei a respeito. É que estava respirando, mesmo estando dentro d’água. Sentia o frio da água, que logo me acostumei. Sentia todos os seus movimentos.

— Fora o momento, quando caí no rio, nunca mais senti aquela sensação ruim de afogamento.

— Eu estava em um mundo diferente do nosso. É o que posso dizer. Tudo era meio coberto daquele tipo de vegetação. Os peixes circulavam calmamente ao nosso redor, como fariam os cães que existem na Terra.

— As águas eram claras, dava para ver tudo. Enxergava ao longe sem maior dificuldade. Dos objetos próximos, via todos os detalhes. Daqueles distantes, definia as formas e cores, mas não os detalhes. Igual como enxergava as coisas, quando estava com a minha família na terra.

— Também podia sentir. Havia muita sensibilidade ao que se passava ao redor. Mais que enxergar, eu sentia com muita segurança. Sabia distinguir as vibrações ao meu redor.

— A cor da água, a água barrenta, por exemplo, só dava definição ao longe. Já no rio conhecido como Tapajós, a água ao longe aparecia esverdeada. De perto não dava para perceber.

— Fiquei vivendo dessa forma ano após ano. O tempo foi passando e me tornei um homem feito. Trabalhávamos em várias coisas, sempre havia muito o que fazer.

— Havia uma atividade que me agradava. Como se fôssemos grupos de facilitadores, grupos de apoio. Era trabalho, só que todos tinham muita satisfação em fazê-lo.

— Reuníamos grandes grupos de alevinos que ficavam sob a nossa proteção. Isto, até se tornarem cardumes, deixávamos que atingissem certo tamanho, quando então se podia liberá-los nas águas. Aí então, ficavam por conta deles. Vivíamos cercados por estes peixinhos em crescimento.

— Sabe o que achava muito bonito? Eles não dispersavam. Não estavam presos em um grande aquário. O criatório, de dimensões enormes, ficava totalmente aberto. Mesmo assim nenhum peixe fugia. Somente saíam na hora certa.

— Os peixes têm propósitos dentro do rio. Os acari-bodós, um tipo de peixe cascudo, de fundo, de leito enlameado. Água estagnada e de pouca oxigenação. Ajudam a eliminar os excessos de microrganismos, fungos e bactérias que existem ali, de modo a não se expandir e contaminar os demais na próxima cheia.

— É coberto de placas e espinhos para protegê-lo, pois para fazer o seu trabalho de limpeza, precisa ficar muito tempo parado. Isto, quando não estão nadando bem devagar, sentindo o leito dos rios, lagos e igarapés. Tudo tem a sua razão de ser.

— Ele é tão eficiente em transformar tudo isso em matéria inerte, que se tornou um peixe muito apreciado. Foi assim que passaram a pescá-lo em abundância. Se ele fosse amargo ou venenoso, talvez lhe dessem sossego.

— Quero dizer que foi uma vida boa. O susto inicial quando me puxaram para baixo, ficou só no susto mesmo. Ninguém me prendeu e nem me sentia sozinho. Era como se houvesse uma grande família, onde todos trabalhavam juntos.

— Das coisas que pude ver e fazer, foi assim. O tempo foi passando até me ver como agora. A cabeça com longos cabelos brancos. As mãos meio engelhadas. O corpo coberto por essa craca. Uma herança do tipo de vida que levava.

— Ela não me atrapalhava, só me dava identidade com os seres que eu via, os lugares por, onde nadei, e andei também. Assim, me ajudava nas coisas que precisei fazer. Fui um mantenedor, ou um cuidador, ou outro nome que se achar melhor.

— Daquilo que eu me lembro, acho que isso é tudo.

O relato do espírito Ananias, o que tinha de surreal, tinha de interessante. Era como se conversasse com um extraterrestre. No entanto, ele era exatamente daqui. Dessa mesma Terra e deste mesmo mundo amazônico. Apenas não estava visível aos olhos. O que não quer dizer que não existisse.

Ananias estava em outra dimensão da vida, onde recebeu ajuda de outros seres viventes e pôde conduzir seu aprendizado de uma forma absolutamente original e singular.

O menino não foi sequestrado nem maltratado em momento algum. Apenas levou adiante a sua identidade com o mundo das águas. Identidade esta que já pulsava em seu coração. Foi convidado a ver o restante, aquela parte amazônica das águas que ainda faltava. Que prosseguia para além da matéria.

Concluída a sua estadia no fundo dos rios, em ligação íntima com as águas, pôde retornar ao convívio daqueles espíritos que fazem a sua história como seres de superfície que são.

Gradativamente foi perdendo a sua capa engelhada de algas e fungos sobre o corpo, até reassumir suas feições de homem da região. Um caboclo de traços jovens, instruído em coisas que nem o mais escolado dos cientistas poderia imaginar.

Ao final de mais uma reunião mediúnica, me despedi de todos, deste e do outro lado da vida. Trabalhadores, aprendizes, visitantes e aqueles que ofereceram as comunicações da noite, como Ananias, que prosseguiu em sua readaptação, para futuro retorno ao mundo tridimensional.

Já no carro indo para casa, seguia pensando em todas as coisas que havia escutado dos comunicantes da noite e no relato oferecido pelos videntes. Fazia comparações, buscando entender melhor o conjunto todo. Que mundo fantástico, vibrante e tão cheio de vida. Que bom, obrigado meu Deus...

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