Foto: bstad por Pixabay
Por: Antonio Mata
No final da tarde, as mãos no guidão, motor ligado e atento ao movimento. Tudo muito clichê, nem em filme, já não fazem mais esta cena. Já aos 22 anos, dando continuidade à sua vida de assaltante, isto muito pouco importava. Leo, era o motoqueiro da fuga, e era isso que se precisava fazer.
Tão logo desse a hora marcada, deveria avançar quarenta metros, parando na frente da casa lotérica. Em três minutos os outros dois homens estariam pegando uma das duas motocicletas estacionadas junto da loja para tomar rumo ignorado e desaparecer dali. Era uma ação até certo ponto clássica. Assaltar estabelecimentos comerciais havia se tornado notícia corriqueira nos jornais de cinquenta centavos.
Domingo um tanto quanto chuvoso, quando quatro homens haviam se encontrado para conversar.
— É o seguinte, as armas, que era a parte mais difícil, já foi tudo providenciado. Também já se tem o alvo, e ele tem sido estudado minuciosamente, para se pegar o caixa ainda com muito dinheiro. Para a ação já se tem tudo planejado. Só tem um problema...
— Que tipo de problema? Questionava Carré, ante a exposição incompleta do Sidão.
— É um problema sério. Quando a polícia souber do assalto, vão bloquear todas as estradas. Hoje em dia tem câmera para tudo quanto é lado. Falta resolver o que fazer com as motos e onde poderemos ficar até que tudo se esfrie, pois não teremos como sair da cidade.
Foi o próprio Leo quem fez a primeira sugestão.
— E se fossem deixadas em um barracão, ou uma casa abandonada, onde se possa deixar as motos por detrás?
— Vai chamar a atenção, vão descobrir rápido. Respondeu Sidão.
— E se fosse um local onde houvesse vários carros e motos? Insistiu Leo.
— Como uma oficina, ou um ferro-velho? Indagou Carré.
— Isso mesmo. Se o assalto for pouco antes do rush, nos perseguir e depois encontrar as motos ficará mais difícil. Completou Leo, acreditando ter achado a saída.
— Está envolvendo mais gente, vai deixar rastro, mais testemunhas. Isso cheira mal. Negava Sidão, convicto. O plano de Leo era também incompleto. Sidão tornou a falar.
— A gente segue para a periferia, só para se afastar e estacionamos as motocicletas normalmente em alguma viela, afastadas uma da outra. Todo mundo já terá trocado de roupa e saímos para lados diferentes. De forma separada, todos tomam o rumo da Vila Velha. Prosseguiu Sidão.
— Lá em uma rua de pouco movimento, existe um esgoto, uma galeria, onde podemos ficar por 48 horas ou mais, até aliviar a pressão da polícia. O dinheiro fica lá dentro, depois a gente sai e cada um toma seu rumo, com algum dinheiro só para se segurar por uma semana, quando então se retorna e recolhe tudo.
— Tá furado, quero receber o meu na hora! Gritava Carré, ante o plano descrito.
— Então leve o seu dinheiro, se te pegarem com pacote ou mochila nas costas, azar o seu. Afirmou Sidão, encerrando a conversa. Cada um tomaria a medida que achasse melhor para esconder sua parte no assalto. Mas todos ficariam 48 horas escondidos na galeria.
Chega a sexta-feira combinada. Dois dos comparsas entram para fazer o assalto, enquanto os outros dois aguardam com motores ligados, para fazer a aproximação e a fuga.
No tempo estabelecido se deslocam, e em poucos minutos os comparsas saem correndo com as mochilas e o dinheiro. A fuga por entre os carros, é ágil e rápida, conforme havia previsto Sidão, o planejador do assalto.
Por vias diferentes, tomam o rumo da Vila Velha. Em locais habitualmente frequentados e diferentes, deixam as motocicletas e prosseguem a pé. A caminhada de uns quinhentos metros é feita com calma para não chamar a atenção.
Enquanto o dia termina, dão mais algumas voltas aguardando o trecho da rua ficar vazio, o que não demora a acontecer. Rapidamente, um após o outro, se precipitam na galeria semialagada e fétida, mas que representará a segurança, pelo menos nas 48 horas seguintes.
Se ajeitam como possível naquela imundície, pois havia chovido pouco, o que provocou o acúmulo de esgotos na galeria, sem a chuva para empurrar os detritos, esgoto à dentro. Colocam sacos plásticos nas pernas, e os prendem com elásticos, para poderem caminhar naquela água suja, até a altura dos joelhos. Então, sobem e se encolhem em uma espécie de degrau junto à lateral da galeria. É onde se podia ficar sem encharcar os pés.
— Você não tinha uma ideia melhor cara, de onde se pudesse esconder? Aqui só não está mais imundo porque é um só! Reclamava Carré, daquela situação.
— Vá você para casa. Lá a polícia encontra você tomando banho, enquanto a sua mãe faz a janta. Gracejava Sidão, daquele comentário idiota.
— Peraí, agora não é hora de discussão. O que já está feito, não se volta atrás. É mais interessante contar logo o dinheiro. Dizia Leo, procurando pôr ordem nas coisas.
— É melhor mesmo, cada um fica com a sua parte na mão. Carré facilmente apoiou a ideia de Leo. Marinho, sempre silencioso, o quarto comparsa, só abriu a boca para concordar e insistir pela separação imediata do dinheiro.
Enquanto Leo segurava a única lanterna e focalizava as duas mochilas, Sidão procedeu à contagem do dinheiro e a separação em quatro montes de cédulas usadas. Material ruim de rastrear, o melhor dinheiro que existe.
Sidão ajeitou a sua parte em uma das mochilas e colocou nas costas. Carré fez o mesmo com o seu montante obtido. Leo embrulhou sua parte em um saco de papel e em seguida colocou em saco plástico, fazendo um pacote pequeno, com uma alça de barbante, fácil de transportar sem chamar a atenção. Lembrava uma marmita simples, dessas feitas de alumínio. Marinho, que vê aquilo tudo, faz igual, produzindo também o seu pequeno volume.
Por todo o tempo estiveram contando dinheiro, afinal era hora de total atenção. Isto para não se tornar vítima de comparsas trapaceiros, que de amigos nunca tiveram nada. Leo iluminava sempre os maços de cédulas, olhos fixos na contagem.
Nem o mau cheiro, nem a água do esgoto, muito menos a escuridão, nada parecia tirar a atenção do grupo, hipnotizados que estavam com o produto do roubo. O lance tinha dado certo, agora era só deixar o tempo passar para poderem sair dali com segurança e dinheiro na mão. Melhor impossível, tudo dando certo. Até do mal cheiro se esqueceram. Afinal, não é verdade que os ratos têm afinidade com os esgotos da vida?
Com o produto do roubo já dividido, os quatro comparsas tornaram a se ajeitar no degrau, poucos centímetros acima da linha d’água, para prosseguir na longa espera de 48 horas, pois ainda iria se completar a primeira hora dentro de mais dez minutos.
Antes que estes poucos minutos restantes completassem a primeira hora da espera, aqueles quatro ladrões, se julgando homens de sucesso, se acreditariam enfiados em um inferno. Tudo produto criado por mentes tão brilhantes quanto estúpidas. Para quem acreditava saber de tudo, logo a realidade lhes mostraria não saberem de nada.
Já sossegados no lugar, Leo resolveu focalizar sua lanterna no ambiente ao redor. O lugar era nojento, e só agora os quatro, retornados do paraíso dos ladrões, perceberam outra coisa que lhes prendeu a atenção.
Leo ao correr o foco da lanterna no nível das águas notou bolinhas brilhantes, bastava focar e lá estavam elas brilhando. Eram várias, espalhadas pelas águas da galeria subterrânea. Na realidade algumas dezenas.
Fixando mais a visão, percebeu que aquelas bolinhas brilhantes se apresentavam sempre aos pares. Viu ainda formações, aqui e ali, tal e qual cabeças. Carré, que era ladrão, mas não era burro, tratou de perguntar de Sidão.
— Cara, quantas vezes você entrou aqui antes? A resposta foi simples e curta.
— Nunca entrei aqui, só achei que seria um bom esconderijo.
— Iiih caboco, não são bolinhas, são olhos, e estão até piscando. Que diabo de bicho haveria de viver aqui dentro? Ratos gigantes? Perguntava Leo.
— Com os olhos na frente da cabeça? Respondeu Marinho com uma indagação, e depois emendou.
— São jacarés, o esgoto está cheio de jacarés. Já dá para ver o corpo comprido. Meu avô caçava jacarés no interior, estão entretidos com a luz.
Dentro do canal raso, com alguns corpos bem delineados sob a luz da lanterna, indicando que estavam de pé, apoiados nas quatro patas, no fundo do canal. Estes eram os animais maiores. Marinho contou pelo menos meia dúzia.
— E quando acabar a luz, a pilha? Perguntava Carré assustado com a nova situação. Quando Marinho respondeu.
— Vão voltar a circular, como se o encanto tivesse passado, aí vai ficar perigoso. Temos que dar o fora daqui.
Ninguém duvidava das palavras de Marinho, não fosse por um único e fatídico detalhe. O caminho de fuga era cruzando as águas fétidas para se chegar ao ponto de entrada, fazendo uma diagonal de uns vinte metros. Não era longe, mas, os jacarés estavam no meio do caminho.
Agora era Sidão, o mentor intelectual da operação, que falava baixo e ofegante, enquanto tentava impor tranquilidade naquela situação aterradora.
— Vamos manter a calma. Ainda temos a lanterna, vamos pensar em alguma coisa que nos ajude a sair daqui.
— E a polícia lá fora? Perguntou Carré.
— Que se dane a polícia lá fora, a gente tem que sair daqui. Lá fora é cada um por si. Era Marinho que atentava para a confusão em que haviam se metido.
Foi trinta minutos, ou mesmo cinquenta. Foi mais de uma hora? E daí, que diferença teria feito? O fato, é que daquela vez, a ideia salvadora não apareceu na cabeça de ninguém, e a lanterna logo ficaria sem pilhas.
Em um dado momento o foco luminoso começou a amarelar e diminuir. A hora da decisão de aproximava.
— Estão se mexendo, estão se mexendo. Estão vindo para cá! O que que a gente faz agora? Choramingava Leo, apavorado.
Lembrou então, de quem nunca o esqueceu, e que fez o possível para afastá-lo daquele tipo de convívio. As lágrimas escorriam pelo rosto, enquanto segurava a lanterna que perdia gradativamente a sua luz.
Foi Sidão, que mais uma vez ofereceu a resposta.
— Tá todo mundo armado. Vamos abrir uma passagem bem no meio. Todo mundo corre pelo meio, até a gente sair daqui. Todos de pé, atirem por entre os olhos para poderem saltar no canal!
Abrir caminho lutando, música de suspense no fundo, a câmera congelando a imagem em cima do Sidão. No cinema ficaria bonito, mas dentro do esgoto, e com quatro ladrões enrolados, era só mais uma desgraça.
Todos de pé, ao comando de Sidão, começam a disparar contra os animais, já a um metro de seus pés. O barulho dentro da galeria se amplifica e cria um cenário de flashes e estampidos enquanto os homens, acompanhando Sidão, saltam nas águas buscando salvar as próprias vidas, com as mochilas de dinheiro nas costas e os sacos plásticos amarrados na cintura.
No fundo raso, porém lodoso, na correria rapidamente escorregam e caem, uns por sobre os outros. Também por sobre os animais baleados e outros tantos absolutamente inteiros, e ávidos por agarrar aqueles invasores.
Haviam se tornado verdadeiros penetras de um paraíso construído ao longo de muitas décadas de procriação, adaptação e resiliência, comendo uma fartura enorme de ratos, por entre os dejetos e lixo humanos, em meio às galerias de esgotos do subsolo da cidade.
Com a correria por entre as águas do esgoto, Leo escorregou no lodo, perdendo logo a sua lanterna e o resto de iluminação que havia. Com ou sem luz, os jacarés de até dois metros de comprimento, estavam dentro d’água, e no seu elemento. Ao agarrarem um membro de suas vítimas, instintivamente giravam o corpo com força e velocidade. Mãos, braços e pernas, eram arrancados como se fossem de bonecos de pano.
Na completa escuridão, os homens enlouquecidos, continuaram gritando e atirando a esmo, tentando escapar do cerco em que haviam se metido. Sem nenhuma luz e buscando chegar na saída, pois já era noite, acabaram por balear uns aos outros.
Marinho abandonou aquele pesadelo, não pelo ataque dos jacarés, mas por dois balaços na barriga e quadril, e um terceiro na cabeça, enquanto caía no esgoto. Os jacarés apenas concluíram o resto do serviço.
Tanto Leo, como Carré morreram com membros arrancados por vários animais que os cercaram. Já Sidão, correndo e atirando, vislumbrou as luzes da iluminação pública a clarear um muro próximo.
Conseguiu correr até a saída da galeria, sendo arrastado de volta, por uma das pernas, para dentro de seu próprio esconderijo. O giro provocado pelo animal agressor foi tão violento, que lhe arrancou a perna na altura do quadril, enquanto seu corpo afundava na água suja.
Os últimos gritos, mais audíveis, pois estava quase saindo da galeria, e ouvidos pelos moradores do lugar, eram de fato os gritos de Sidão, antes de ser trucidado pelos animais. Não haviam se passado dez segundos, desde que haviam se atirado nas águas.
Os gritos horripilantes, ainda que abafados, vindos de dentro da galeria, chamou a atenção dos moradores dos arredores. Porém, o som do tiroteio, em paralelo aos gritos, avisava a todos, que outra chacina estava se processando, e que as ruas já não eram mais deles, nem naquela noite, nem nas outras.
Melhor deixar isto pra lá, melhor preservar a vida, que já é difícil por si só. Nestes tempos de crueldade e desalmada violência, às vezes, a maldade é tão gratuita, que não cabe nem explicação.
Chamar a polícia ninguém tinha coragem, até porque só viriam depois da matança dos bandidos se completar. Em briga de facções não se mete a colher. Quem quer que vença, vai querer acertar as contas depois.
Nem mesmo houve cheiro de carne putrefata para chamar a atenção dos transeuntes, dias depois. Os répteis cuidaram de devorar tudo. Mais tarde, uma tempestade intensa levou no aguaceiro o que restou daquela cena macabra. As mochilas; as armas; a lanterna; e os sacos plásticos, muito bem embrulhados, com a divisão do dinheiro do assalto.
O Criador e Pai Celestial, na sua infinita misericórdia, oferece oportunidades de remissão de seus erros a todos. Porém vivemos os tempos, em que muitos estão recebendo suas últimas oportunidades de recomposição, diante das Leis Divinas que afetam a toda a Criação, indistintamente.
É chegado o tempo da prestação de contas. Os violentos; os corruptos; os assassinos; malfeitores e portadores de toda sorte de desvios morais, terão agora o resultado da forma como acharam de conduzir suas vidas. Não é o fim do mundo, mas para estes, é sem dúvida, o final dos tempos.