Por: Antonio Mata
Bicho solto, se diria, sem cabresto e sem freio. Alheio às recomendações de seu pai, distante das falas de sua mãe. Impulsivo, queria conduzir a vida segundo a própria veneta.
Chegada a idade, sentou praça na infantaria. Então, recruta, cumpria seu tempo de serviço militar. Acostumado a circular livremente pela cidade, sentiu-se preso e incomodado com a tal da disciplina militar. O fato mais novo e perturbador de sua vida.
O respeito a hierarquia, o treinamento intensivo, a vida no quartel, os horários estritamente controlados. Ao final do período de adaptação já se sentia esgotado e saudoso da antiga liberdade. Seu tempo de serviço obrigatório mal havia iniciado.
Noite alta, o clarim já havia anunciado o toque de recolher. Na escuridão do alojamento da companhia, começou um cochicho.
— Tô com fome.
— Tá o quê?
— Tô com fome.
— A troco de quê? Falta de comida?
— Não, tô enjoado da comida daqui.
— Cara, terminou a quarentena e já saiu um troco. Vambora variar. Topa sair e a gente encara uma lasanha, uma peixada ou até uma feijoada. Quê que tu acha?
— Quero não, tô com fome agora.
— Ah, vai se ferrar! Vai dormir!
Com o cochicho virando um falatório, o barulho foi inevitável.
— Silêncio, silêncio! Vai dormir bicho de rabo!
O colega de alojamento desiste da conversa.
— A cabeça dura é sua e o problema é seu. Faça como quiser.
— Pois é, assim que tem que ser. É isso mesmo.
O silêncio retornou ao alojamento.
Deixou passar hora e meia ou pouco mais. Como um rato entre as sombras, levantou-se e esgueirou-se para fora. Burlando a sentinela, afastou-se da companhia. Seu destino era o rancho. É como chamam o refeitório.
No universo das ideias rasteiras, mais rasas que o chão. Só há duas formas de um soldado se sobressair dos demais. Folgar mais ou comer mais que os outros. Obviamente, existem coisas melhores e bem mais distintas. Não na mente de um fujão.
Uma coisa que ninguém sabia era da sua habilidade com chaves. Pois trabalhara por algum tempo com um irmão que era chaveiro. Aprendido o ofício, decidiu abandonar o irmão.
Sem nenhuma dificuldade, abriu a porta do rancho, se dirigindo à cozinha e ao depósito de víveres, destrancando-o também. Na geladeira obteve queijo, manteiga, presunto e suco à vontade.
De barriga cheia, mais esperto e mais bem nutrido que os demais, retornou para a companhia. No mesmo estilo rato entre as sombras, com o qual havia se evadido.
Confiante de ter obtido a melhor das ideias. Uma forma prática de sobreviver em meio a tantos idiotas fardados, aprendizes de ordem unida. Estava satisfeito, assim prosseguiu com suas práticas e fugas nutricionais.
A descoberta do intruso era inevitável. Coisas mexidas, coisas fora do lugar, comida derramada. Rastros que, no escuro, ficavam para trás sem que ele mesmo percebesse. Bastou uma simples campana para encontrá-lo na melhor de suas ideias.
Conduzido ao xadrez, teria bastante tempo para novas ideias. Contudo, se viu solitário. Conversas, só muito eventualmente quando o carcereiro lhe trazia comida.
A luz se apagava ao toque do clarim. Só não havia com quem reclamar ou cochichar. Às vezes a noite se faz longa demais e cheia de surpresas.
— Ric, ric, ric...
Tec, tec, tec, tec. Sons diferentes. Começava e parava. Começava para se deter de novo. Até que finalmente prestou atenção. Virou-se, levantou a cabeça. No escuro, procurava fixar a visão.
Sem dar definição de coisa alguma, acomodou-se novamente na cama de concreto e foi tratar de dormir.
— Ric, ric, ric...
Virou-se rápido. Logo à sua frente no chão, pôde definir o contorno de um rato, um ratinho. Fixou a visão mais uma vez, procurando enxergar melhor o bicho pequeno e escuro.
— Ei ratinho, o que você faz aqui?
De pronto, obteve como resposta.
— Mais.
O que, que história é essa? Tá fazendo o quê?
— Mais.
— Deixa de ser idiota. Ratos não falam.
— Mais.
— Cale a boca e vá dormir. Vá infernizar outro.
— Mais.
— O que você quer?
— Mais.
— Mais o quê?
— Mais.
Aquilo o estava atormentando. Uma conversa de loucos, não para ele, pensava. Então lembrou que tinha deixado um pedaço de pão, dentro do bolso da calça, perto da cama. Foi apanhar o pão para fazer o bicho calar a boca de deixá-lo em paz.
Procurou pelo alimento e tudo o que encontrou, foi um quase nada de farelo fino, no fundo do bolso. Sentado na cama, olhou para o ratinho que teria não mais que uns seis centímetros.
— Mais.
Estupefato, ligou as coisas.
— Agora entendi, seu cretino. Você pegou o pão.
— Mais.
— Você quer mais, está bem. Vou lhe dar mais.
Irrompeu-se uma seção de urros, chutes, socos e coices no escuro. Suficientes para se destruir o quarto de uma residência, mas não um xadrez. Exceção feita a uma cabeçada na louça sanitária. Daquelas onde se fica de cócoras. Mas, a louça resistiu.
Suado, cansado, com a cabeça doendo e meio doido, resolveu parar com aquilo e tomou uma decisão.
Embates à parte, decidiu separar, toda vez, um pedaço de pão para o ratinho endemoniado que não o deixava dormir. Todavia, em que pesasse sua contribuição, por dias e dias ouvia o mesmo.
— Mais.
Seguia-se outra seção de pancadaria no escuro. Outra cara inchada, pois bateu na parede, na louça, nas grades, na cama.
— Mais.
Urros, chutes, socos e coices no escuro.
O carcereiro achou por bem chamar o sargento-de-dia.
— Sargento, veja só. Tem pedacinhos de pão no canto da cama, debaixo do colchão e dentro dos bolsos. Não entendi nada.
O sargento, tão confuso quanto o cabo, foi ouvir o soldado.
— Sargento, o idiota fica falando comigo. De dia, de tarde e de noite. Fica pedindo mais! — Aos gritos e em prantos, procurava explicar ao sargento da guarda o que estava acontecendo.
— Quem é que está pedindo mais? — Indagou o sargento.
— O ratinho sargento, o ratinho! Ele não para de falar! É um demônio, um demônio!
O caso foi encaminhado ao oficial de dia, que repassou ao capitão, comandante da companhia. Assim, como o despertamento da mediunidade e o fenômeno mediúnico são pouco compreendidos, não acharam resposta.
Foi encaminhado ao hospital militar para acompanhamento psiquiátrico.
Às vezes, por simples desconhecimento da natureza imortal e Divina do espírito, na sua trajetória rumo ao aperfeiçoamento, escolhe-se a rebeldia e a insensatez. Deixa-se de agir como homens, para se agir como ratos.
Não havia rato nenhum. Era um processo obsessivo. Algo comum e passível de ser tratado.