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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

O vale

Por: Antonio Mata

Ninguém perguntou nada de ninguém. Mesmo assim, alguém achou de lhe dar uma resposta. Só ouvia uma voz desconhecida, sem poder definir imagem alguma, tamanha a escuridão.

Não bastasse isso, uma queimação nos braços, pescoço, peito e costas. Como se quisessem lhe arrancar a pele ou tocar fogo nela. A dor implacável, a queimação, a escuridão, choros, gemidos e aquela voz em meio ao tumulto.

— Você não ligue tanto. Seus olhos logo irão se acostumar.

— Meus olhos, o que tem nos meus olhos? Por que não vejo nada? Estou cego?

— Claro que não. Pelo menos é o que parece. É o que falei, com o tempo você se acostuma.

— Que lugar é esse? Falta muito para amanhecer?

— Também não sei. Só sei que não dá para sair. Não sem ajuda. Já a luz do Sol..., não vejo faz muito tempo.

A voz masculina falava entre um gemido e outro. Como se uma agonia não o deixasse em paz.

— Então, aqui é uma caverna?

— Existem cavernas aqui..., mas você não está em uma. Também tem grutas; bivaques; ruínas; trincheiras e muitos, diversos buracos. Se eu fosse você..., trataria de tomar cuidado. Ainda não está dentro de nada disso.

— E essa queimação no corpo? Parece que estou pegando fogo.

— Cara, trate de se acostumar. Por que acha que tem tanto barulho, tantos gritos, tanto choro?

— Meu Deus! Tem mais gente queimando também?

— É lógico! Meu Deus, meu Deus? Ora, Deus não está aqui.

— Não diga bobagens, está em todo lugar!

— E daí, serviu para você? O que você tem que os outros não têm? Então, vá procurar Deus na escuridão e na lama.

Baltazar se sentia em um terreno minado. De que adiantava clamar a Deus, pensava. Teve todas as oportunidades para fazê-lo antes de se meter naquele lugar.

Família, boa formação, pessoas amigas, entretanto, sabia que não havia se importado. Agora, tudo parecia tarde demais. Quis mudar aquela conversa em meio a confusão.

— O ar aqui é ruim. Parece esgoto de tão fétido.

— Você acostuma com isso também.

— Me acostumar com o que não presta? Me acostumar com a escuridão, em um lugar cheio de buracos e ruínas, além de ficar fedendo.  Isto é ridículo.

— Tá vendo só, tá vendo só? Já está começando a entender. Eh, eh, eh, eh! — Altair afirmava isso, seguido de uma risadinha debochada, que enervou Baltazar.

— Entender o quê? Não há nada para entender. Só quero sair desse buraco de lixo o mais rápido que eu puder.

— Não falei? Acertou de novo. Você não presta, por isso você é escuro por dentro, está arruinado. Sua mente cheira a esgoto toda vez que acha de pensar e por isso você fede. Você está no lugar certo. Entendeu agora? — Parou um instante, enquanto Baltazar ficava em silêncio.

Procurava processar todo aquele negrume, que, ao que parecia, ele também fazia parte.

— Se é que importa saber, você deve ter boa visão. Por falar nisso, experimente virar a cabeça ao contrário. Deve ajudar.

Foi assim que Baltazar tomou ciência de seu próprio corpo e o que estava fazendo naquele momento. Segurava uma cabeça com as duas mãos.

Só que ela estava virada para o seu peito. Pelo menos em parte, deu para entender a pouca visão. Corrigiu a posição. Aí pôde ver que era escuro de verdade, pois não melhorou quase nada querer olhar para a frente.

Enquanto aguardava alguma melhoria, aos poucos foi lembrando da história recente. A mesma que provocou sua chegada. O acidente, a batida, muito forte na traseira de um caminhão. A tampa do cofre do motor, subindo e atuando como uma guilhotina. Depois, a total escuridão.

Ligar tal passagem a episódios nefastos de seu dia a dia não foi difícil. A falsificação de documentos, a fraude, a exploração de trabalhadores. De tudo um pouco. Agora, podia ao menos entender os motivos.

Só não compreendia por que seu corpo queimava tanto.

— Eu agora estou morto, minha cabeça está aqui em minhas mãos. E esse fogo me queimando? Estou no inferno?

Altair se aproximou bem perto de sua face.

— Chame do jeito que você quiser. Não vai mudar nada. Consegue ver meu rosto?

Baltazar procurava prestar atenção a algum detalhe. Até notar as manchas avermelhadas, como que em carne viva. Em outras partes do corpo também.

— Vamos combinar assim. Não toque em mim que eu não toco em você. Isso dói terrivelmente.

— Meu Deus, cara, o que é isso?

— São tatuagens, cara, são tatuagens.

Não bastasse o acidente, aquele lugar infernal e a própria cabeça nas mãos. Ainda tinha o próprio corpo cheio de tatuagens que queimavam. Todas ao mesmo tempo.

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