Menu

terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Os rebeldes

Por: Antonio Mata 

Vida e vicissitudes lado a lado. A superação das dificuldades sempre presentes. Lições importantes e necessárias. Quando se busca um atalho, uma simplificação, o resultado não costuma ser satisfatório. Precipitação e inocência às vezes se confundem.
 
Estavam crescendo e desejosos de se expandir. Conduzidos à orfandade muito cedo, acabaram entregues a avó, que assumiu o papel materno e paterno também.
 
Se acercou de seu distinto compromisso sem pestanejar. Ainda que as marcas no rosto e no corpo não a recomendassem mais para tal papel. Não queria de modo algum ver seus pequeninos abandonados sozinhos e esquecidos. Não neste mundo perigoso.
 
Um netinho, quem sabe dois, seriam até bem vindos e desfrutariam da atenção e carinho da avó. Mas, e quando são quatro e todos nasceram ao mesmo tempo?
 
Muito simples, quando um brinca, todos brincam. Quando um corre, todos correm. Quando um pula, todos saltam. Quando um arranja confusão, todos arranjam encrenca.
 
Talvez por isso esteja aí o significado da expressão espírito de alcateia. O gosto por fazer tudo junto.
 
— Vamos abrir um grande círculo!
 
— Não inventa, só vamos fazer outro quadrado.
 
— Não importa, vamos voltar nossa atenção para o que estiver no meio. É assim que se aprende a caçar! Prendendo no meio do círculo!
 
— No meio do quadrado.
 
— Deixa de ser chata Azaléa. Vê se brinca direito.
 
— Olha só quem tá falando. O primeiro a querer sair de perto de casa. Não foi isso que a vovó disse para fazer.
 
— Temos que andar todos juntos. Foi isso sim, que ela falou. — Dizia Jericó, o mais independente.
 
— Eu sei. Ideia de Jericó, já conheço todas. Mas a vovó dizia para andarmos todos juntos na busca de pequenas presas. Para então cercá-las com facilidade.
 
— Eu entendi a vovó. Cercar com inteligência para fazer um grande ataque surpresa! É isso que ela quer ver!
 
— Estão falando muito. Onde vamos encontrar algo para fazer este ataque de surpresa? — Era a vez de Boran perguntar.
 
— Tem um lugar que é o preferido de todos. Dos grandes e dos pequenos. É só separar os menores e poderemos fazer um ótimo ataque. Na trilha do rio, quando vão beber água!
 
— Jericó é muito perigoso! Passa muito bicho grande!
 
— Nem tanto, nem tanto. E depois, nós estaremos observando primeiro. Não estarão esperando por nós.
 
— Jericó procure outro lugar. Esse não serve. — Insistia Azaleia.
 
— Já entendi tudo, ela está com medinho! — Todos os demais começaram a rir de Azaléa, que dali em diante, muito contrariada, não falou mais nada.
 
Os quatro caminharam em silêncio, na direção da trilha que levava para o rio.
 
Não demorou muito, divisaram algo interessante de se emboscar. O cocuruto bem escuro, os movimentos rápidos, indo e voltando, era tudo muito suspeito. 
 
Os irmãos cochichavam baixinho, sob o comando de Jericó.
 
— Esse movimento denuncia a presença de um roedor. Parece uma pequena cutia. Nós estamos com sorte. — Se o palpite de Jericó estivesse correto, os quatro filhotes voltariam para casa como heróis e reconhecidos pela coragem, ainda tão jovens.
 
— Se preparem, vamos cercá-la para que não consiga fugir. Se abaixem e ajam em silêncio. Não quero ninguém estragando a caçada. Está vendo Azaléa, é assim que se caça. Você já pode dar o seu sorriso de submissão.
 
Quando se virou e prestou atenção em Azaléa, o que viu foi outra coisa, da única fêmea da ninhada. O pescoço esticado, a língua para fora e as patas traseiras chutando a terra, como se estivesse enterrando as fezes.
 
— Deixe estar sua fedida. Logo vou lhe mostrar quem é que manda nessa alcateia.
 
Insultos à parte, pelo menos os procedimentos adotados por Jericó estavam corretos. Para onde a cutia achasse de querer correr, haveria um deles no caminho. Só não poderia esquecer de compartilhar o banquete matutino com os demais.
 
— Não se atrevam a comer a caça sem a minha chegada primeiro!
 
— Não se preocupe mandão. Vou deixar aquelas patinhas de cutia para você. Todas as quatro.
 
— Silêncio, vamos formar o círculo!
 
— Todos ouviram o chefe. Vamos fazer o quadrado.
 
— Azaléa, você é insuportável! Vou contar pra vovó!
 
— Conta depois, primeiro vamos pegar a cutia. Se é que você quer mesmo pegar aquelas patinhas.
 
Jericó lhe mostrava os dentes, quando foi interpelado pelos demais.
 
— Parem com isso, ou vão perder a caçada. — Alertava Boran.
 
Enfim, o grupo se acertou e procedeu-se ao círculo ou quadrado de captura. Exercício importante para quem pretende ser um carnívoro, no alto da cadeia alimentar. 
 
Já correu atrás de uma cutia? Você entendeu.
 
Todos a postos, Jericó deu o sinal. 
 
— Agora, peguem o bicho! Não deixem que fuja!
 
Correria eletrizante aquela. Vida e morte, cadeia alimentar, a lei do mais forte. Tanta coisa que nem fazia sentido um animal saber ou pensar. Melhor deixar que apenas cacem. Dá mais certo.
 
E assim foi feito. Quando Boran saltou para interceptar a paca, foi surpreendido com um salto no sentido contrário. O animal em fuga desabalada, encontrou Jericó pela frente. Tomado de pânico, saltou mais uma vez.
 
Jericó impulsionou sobre as patas traseiras e esticou-se o mais que pôde e finalmente...
 
Foi questão de meio centímetro. Talvez um centímetro. A diferença entre a vida e a morte na floresta é medida pela agilidade e destreza de cada animal. Um bom cachorro-do-mato vinagre, foi preparado para cercar e vencer.
 
Só não foi dessa vez.
 
Jericó assistiu a cutia saltar e ver aquela barriguinha, quase sem pelos, passar bem na frente do seu nariz, sem que pudesse alcançá-la. O animal escapou da morte praticamente certa, sob as garras do caçador feroz e sanguinário.
 
Azaléa chegou logo a seguir. A tempo de assistir a fuga espetacular da cutia e a cara de incrédulo de Jericó. Ia mais uma vez esticar o pescoço, pôr a língua para fora e chutar a terra. 
 
Mas, dessa vez desistiu. Uma humilhação já bastava por todo o resto do dia. Não precisava de outra para atormentá-lo. Foi sensata, afinal, seu irmão era só um aprendiz.
 
— Tá bom Jericó. Você não teve culpa. Fez tudo certo, só que a cutia foi mais esperta. Foi só isso.
 
Jericó continuava enfezado e em silêncio.
 
— Deixa pra lá Jericó. Outro dia a gente caça de novo. — Era o silencioso Atun. Só falou para consolar Jericó.
 
Os irmãos machos se sentiam desmoralizados com o salto espetacular da cutia. Ainda não entendiam que, um dia é da caça, outro do caçador. Queriam encerrar a caçada, menos Jericó.
 
— Não vou desistir. Vamos achar outra trilha no mato. Nem que o dia escureça, nós vamos caçar.
 
— Estou indo embora gente. Vê se não ficam fora até tarde. A vovó vai deixar todo mundo preso dentro do tronco oco. Para ela prender vocês de novo, não custa nada. Eu é que não quero.
 
— Não vou desistir! Atun e Boran, venham comigo.
 
Os dois irmãos se entreolharam e acabaram seguindo Jericó, bem devagarinho. Como quem ainda não acreditava naquilo. Tomaram o rumo da mata adentro, na busca de outro ponto onde pudessem caçar um animal em busca de água. 
 
Principalmente se fosse uma bela cutia e das gordas. Mas, estavam tão transtornados com os últimos acontecimentos que seriam capazes de espreitar uma jararaca. Que situação!
 
Até que junto a uma trilha, em meio a vegetação, puderam ver um ligeiro movimento. Não era grande coisa, mas Jericó percebeu que seria mais uma cutia. A julgar pela curvatura, seria uma das grandes. Nas sombras, seu pelo aparecia mais escuro.
 
— Não se preocupem. É efeito da sombra, nada de arregar agora. Em silêncio vamos cercar o bicho mais uma vez.
 
Se esgueirando por entre os arbustos, iniciaram o cerco. Se posicionaram em triângulo. Jericó lamentou a ausência de Azaléa, para fazer o quadrado. Como achasse melhor, o importante era que tudo desse certo. Agora não dava mais para reclamar. Logo estariam sobre a cutia.
 
Finalmente, ao aviso de Jericó, os três saltaram sobre a cutia.
 
Jericó gritou e saltou. Os outros dois saltaram também.
 
Aquela fração de segundo. O tempo ínfimo entre a sorte e a completa desgraça no meio da selva. Tão pequeno e tão repleto de olhares, ações e emoções. 
 
Estas então, as emoções, partiram da euforia ao desespero em um ou dois décimos de segundo, expressas nos olhares. Tempo de dentes sendo cravados. Era tudo que Jericó mais queria. 
 
Tempo de corpinhos suspensos no ar. Tempo de inocência, de tão fofos e selvagens que eram. Esta é a vida agitada e precoce de um cachorro-do-mato-vinagre das matas amazônicas. 
 
O pelo macio, castanho meio tom de cabeça meio avermelhada e cauda longa e cheia. As orelhas curtas lhes conferem um ar simpático. Aliás, os índios os chamavam de onça da cabeça chata, pensa. Um cachorro, caçando em alcateia, pensa. É que não conheciam os ursos.
 
Na fração de segundo do tempo que passa, começam a gritar.
 
— Jericó, Jericó, larga isso Jericó!
 
— Que barulhada é essa? Já não se pode caçar uma cutia em paz?
 
— Não é cutia não Jericó!
 
— Não é o quê, olha só o tamanho dela. O que você quer agora?
 
— É que cutia não tem rabo desse tamanho!
 
— Que rabo, que história é essa?
 
— Olha o tamanho desse rabo preto Jericó!
 
Jericó tirou os dentes de cima da sua cutia e se afastou para olhar aquilo tudo. A conversa de fração de segundos foi interrompida pelo rugido de uma fera saltando como um gato enlouquecido.
 
O bicho era grande, a cauda enorme. o peito e a cabeça maiores ainda. Peludo e preto vistoso, bonito. Se aparecer uma boca cheia de dentes enormes, será o suficiente para corrigir todo e qualquer equívoco. Jericó havia capturado uma pantera.
 
— Esperem, vou confirmar que bicho é esse. Só falta ver os dentes.
 
Antes que terminasse de falar, os outros dois haviam desaparecido, com destino ignorado. Quer dizer, a casa da vovó. Jericó, logo teve a sua confirmação e tratou de sumir dali. 
 
Não só pelos dentes, mas pelos olhos grandes e irritadiços do felino enorme. Jerico sumiu, mas dessa vez, com a pantera negra no seu encalço. Quem procura, acha.
 
Correndo e saltando mais que um veado campeiro, buscava ganhar distância da pantera enfurecida, que estava apenas dormindo e que agora corria em seu encalço.
 
Correu o mais que pôde até alcançar o tronco oco de uma árvore que lhe servia de abrigo. Assustado e ofegante, atirou-se dentro dele. O filhote de cachorro-vinagre quase caiu por cima da sua avó. Lá já estavam Azaléa, Atun, Boran e a vovó.
 
Na carreira, e ao tentar pegar o filhote, a pantera acabou por encaixar a cabeça no tronco que servia de abrigo aos cães. Virou uma espécie de rolha, pois ficou presa.
 
Acabou se libertando, mas só com muito esforço. Montou guarda por algum tempo junto ao tronco. Até que, finalmente, desistiu de pegar os cães e se afastou do lugar.
 
A expedição de caça de Jericó fora um completo fracasso. Isto só serviu para aborrecer sua avó ainda mais. Então, ficaram assim encolhidos e amontoados no tronco oco, até que as coisas se acalmassem e então, pudessem sair.
 
A primeira a deixar o tronco foi a vovó. Precavida, saiu devagar, cheirando o ar ao redor. Olhou para um lado, depois para o outro. Então, com segurança, pôs-se para fora.
 
Os filhotes se apressaram a querer sair também, no que foram interpelados por sua avó.
 
— Não mandei ninguém sair. Os grandes caçadores de confusão vão ficar aonde estão. Por mais seis meses não quero ouvir falar em caçadas. Ainda tem mais. Só poderão sair do tronco amanhã. Todos para dentro! E você Jericó, não se atreva a sair sem que eu diga que é para você sair.
 
— Sim vovó.
 
Assim terminou a saga dos cachorros-do-mato-vinagre, os únicos cães selvagens brasileiros que caçam em grupos. Afinal, algum dia aprenderão a ser grandes caçadores. 
 
Azaléa soltou sua última alfinetada.
 
— Você Jericó é uma piada. Caçador de araque. Agora não tem mais grandes ideias. Só ideia de jerico. Tente sair do tronco só uma vez. Vou ser a primeira a te dedurar.
 
Humilhado e tristonho, Jericó se encolheu e foi tratar de dormir. Se possível até o dia seguinte. De experiência em experiência, o filhote de cachorro-vinagre crescia sem parar. Mas também, sem sua avó. Tudo, só por garantia.  

Go Back

Comment