Por: Antonio Mata
Enfim, faltava entender por quê. Retornaram ao local para prestar mais atenção naquela aparente desordem. Poderia muito bem ter um significado ali. Escondido em coisas espalhadas.
Rafael era mais cerebral. Pediu a Juliano que cuidasse de outros afazeres. Desejava observar mais um pouco. Como quem almeja encontrar o fio da meada. Antes que resolvam remexer tudo e o porquê das coisas se perca de vez. Achar a ordem na desordem.
Sentou-se enquanto olhava para a sala. Cheia de montículos de coisas e um celular no chão ao lado do sofá. O último lugar. Foi até os quartos, onde o modelo se repetia. Exceto no terceiro que era mesmo um quarto de despejo. Tomado de coisas fora de uso, uma parte era só lixo. Além daquele cheiro ruim de lugar fechado, como se estivesse cheio de roupa suja.
Na cozinha, o caos. Fazer um café, fritar ovos, passar manteiga no pão. Só atentados à vida, antes um convite a uma diarreia da boa. Seria bem melhor.
Exageros à parte, o banheiro, talvez por não reunir muitos objetos. Nem aquele monte de pacotes e caixas abertas, dentro e fora da geladeira com coisas escorrendo. Estava sujo, e isso é tudo. Só um banheiro sujo. Naquele momento não enxergava nada que pudesse desafiar sua curiosidade na busca, pelo menos uma. Na cozinha, notável as cinco garrafas pet. Aquelas de dois litros, todas cheias de água na geladeira.
As janelas, todas fechadas. Basculantes também, a ponto de emperrarem pelo acúmulo de ferrugem. Sala com o tapete extenso de bordas salientes. Como se tropeçar fosse normal, até cair ou se acostumar.
Não dá para chamar de idoso um homem de cinquenta e poucos anos. Não mais que isso. Que existe um bando de relaxados e relapsos vivendo por aí, todo mundo já sabe.
Sentou-se mais uma vez para observar a aparente confusão da sala. Qualquer coisa parecia começar por ali. Até que então, se espalhou por todo o resto.
Ali, poderia muito bem-estar ali, o fio.
Ao entrar trancou a porta, colocando as chaves em pequeno gancho com a pintura de um casario colorido. Desses que se compra em feiras de artesanato nos fins de semana.
Avançou lentamente. As costas doídas, as olheiras e as pernas cansadas, os gestos lentos e a memória fraca. Tempos mudados e passados. Então, era assim que se definia o tempo do qual se deveria escapar.
Esperar seria bobagem. Escapar da sarcopenia, aquela dissolução que avisa da parte que faltou e oferece a autonomia de se fazer algo, se quiser.
Escapar da preguiça, uma espécie de irmã que não gosta de ficar sozinha. Da perda de memória e os males associados. Precisava de uma estratégia. Algo que lhe permitisse manter tais ideias em mente, enquanto delineava a ação.
Passou a deixar o par de tênis na sala, junto ao sofá. Camiseta e calção à mão, na outra ponta, por sobre o braço. Lembrou de um livro há muito comprado. Deixou sobre a mesa.
As chaves, sempre no mesmo lugar. Outro livro no criado mudo. Era para ler o livro, foi por isso que deixou mais um no banheiro. No criado mudo do outro quarto, mais dois a esticar a mão. Tendo ainda colocado outro sobre a cômoda.
No terceiro quarto transformado em depósito, um livro ficava de pé, recostado na última das três caixas empilhadas. Por trás, mais seis para mantê-lo na posição.
Providenciou tônicos, cloreto de magnésio; mel com própolis; vitamina C; cápsulas de ora pronobis. Chá de erva-doce; chá de boldo; gel anestésico para eventuais luxações e acidentes. Dispôs tudo em duas caixas, uma no quarto e outra, a maior, na estante da sala. Lá ficava um monte de coisas mesmo.
Alimentação adequada à base de frutas, nada de carne vermelha, pouco carboidrato, quase ou sem nenhum açúcar e nada de cigarros ou alcoólicos. Internet e TV até tarde da noite, seria melhor esquecer e cuidar de dormir mais cedo.
Montou um pequeno esquema de caminhada e exercícios regulares. Idealizou vários percursos. Calculou as distâncias, tempo de percurso, consumo de calorias. Sequências de exercícios para sustentar e desenvolver a musculatura.
Estava tudo pronto, definido, pensado e calculado. Tempo, recurso e aplicações. Tudo fora pensado no detalhe. Hora de enfrentar a realidade, sair jogando e vencer.
Abriu modesto sorriso de satisfação pelo seu engenho e aplicação. Lembrou de alguns parentes e amigos e chegou a planejar uma ou outra visita. Só para não desaparecer e ainda ser acusado.
Os meses adiante, os anos além à disposição de quem se decidiu a agarrá-los e trazer para mais perto. Muito cedo para desistir, muito jovem para morrer. Hoje em dia tudo tem jeito.
Juliano retornou para ver o investigador e o que por ventura, poderia ter descoberto em meio a tanta bagunça. Como não havia sinais de arrombamento e aquela bagunça não estava atirada pelos cantos, para todos os lados. Ainda que continuasse uma bagunça, pois só estava espalhada, abandonaram a possibilidade de alguma invasão.
— E então, já faz ideia do que possa ter provocado a morte, alguma novidade?
— Muita coisa sem uso...
— O que foi que disse? Sem uso?
— Só pensei alto. O que foi mesmo que você perguntou?
— A morte, já faz ideia do que houve aqui?
Rafael, depois de um suspiro, uma mistura de tristeza e decepção, respondeu ao colega de serviço.
— Morte natural.
— Só isso? Não há alguma causa aparente por aqui, algo que indique o que tenha feito?
— Tem, sim, Juliano tem, sim. Muitas.
— Então, o que foi que ele fez?
— Nada.