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terra de espíritos

histórias, crônicas e contos

Sonhos esquecidos

                                                                             

                                                                                                                                                                          Foto: Wikipedia

Por: Antonio Mata

Levantou-se rápido, pois queria observar ao longe. Mesmo assim, por mais que forçasse a vista, não conseguia enxergar nada. O nevoeiro, a vegetação, a escuridão; tudo havia se somado para impedir a visão.

— Doug, consegue ver alguma coisa, ouviu algo? Indagava Klein, procurando se situar naquele breu.

— É claro que não. Uma hora fica tudo cinzento, ninguém vê nada, depois fica muito mais escuro, e acaba tudo do mesmo jeito.

— Otto saiu e ainda não voltou. Se o idiota não estiver aqui na hora, vai acabar ficando para trás, perdido aqui neste inferno esquecido de Deus. Eu só quero saber de sumir daqui o mais rápido possível. Reclamava Klein.

Irritado, tornou a se ajeitar à beira do caminho, disposto a esperar, continuar esperando pela oportunidade de rever sua gente e reaver sua vida. Certamente longe dali, pensava.

— Que azar Doug; mas que azar desgraçado esse. Já estava conseguindo juntar um dinheiro, sabia? É, é pouco, mas já estava sim. Era só não gastar na vadiagem e naquele armazém de ladrões, que o dinheiro rendia. Não ter onde gastar com outras coisas é uma vantagem Doug. Você se vê obrigado a cuidar de você mesmo. Concluía Klein, na exposição de suas razões.

— Sabe o que eu penso Klein, quando sair daqui vou atrás de outro fim de mundo. O que você acha, não é não? Você já ouviu falar no sul da África? Ouvi dizer que por lá tem muito diamante e terra disponível. O Império assumiu aquilo tudo. De repente eu mudo de ideia, e até resolvo sossegar por lá mesmo. Quero me estabelecer; e depois arranjar uma família, tem europeus lá.

— Outra você quer dizer. Contaram no acampamento que lá pelo sul, aqui desse país, também tem terra. Por que você acharia de procurar tão longe? Veja por aqui desse lado primeiro; está mais perto. Sugeria Klein ao amigo desalentado com a atual incursão.

— É, pode ser. Só que lá não tem diamantes. Na África tem diamantes e terras. Dois coelhos de uma vez só, não é possível que eu não acerte pelo menos um.

Entre impropérios, lamentos e especulações, Doug olhava ao redor e lembrava da velha Escócia, de onde saíra, já havia quase três anos para participar de uma epopeia em outro continente.

 

Falava de se ajeitar em um pedaço de terra, tudo sem muita convicção. Na realidade apenas pensava alto. Vinha de uma estadia na América Central. Trabalhara na construção do canal do Panamá, entretanto; estava insatisfeito.

Era filho de um maquinista e sonhava com algo a mais nesse sentido. Cresceu vendo seu pai conduzir a locomotiva a vapor e se apaixonara pelo ofício. O velho Joseph, por vez, tinha grande orgulho da sua Stephenson, classe 19, de 1861.

Jacob, já crescido, trabalhara como carregador na estação de Banff, no norte da Escócia, até conseguir uma vaga de foguista com seu pai por sete anos. Quando então surgiu a oportunidade de assumir sua primeira locomotiva; o sonho dos trabalhadores de seu tempo.

Houve um acidente e o trem de carga descarrilhou. Não houve feridos; mas o impedimento da ferrovia; o atraso com a carga; o reparo e o tempo gasto para recolocar a máquina nos trilhos sacrificaram seus melhores sonhos. Foi acusado de correr demais e acabou demitido. 

Ainda assim, queria ser o primeiro maquinista, pela experiência e pelo berço. A despeito do ocorrido se achava injustiçado e invocava seu direito. Este sim, era seu sonho mais imediato, e que mais buscava. Só não seria mais na Escócia; precisava sair e ir para longe, bem longe.

Não se adaptou ao trabalho na construção do canal, se indispôs com os chefes de serviço e teve de ir embora. Aprendeu na prática, que se continuasse gastando dinheiro à toa; não chegaria a lugar nenhum.

Soube da construção de uma ferrovia na América do Sul e não pensou duas vezes. Acorreu ao local da empreitada o mais rápido que pôde. É bem verdade que levou mais de um mês, o que era normal, mas conseguiu chegar. Apresentou suas habilidades profissionais, avisando logo de seu desejo de ser o primeiro maquinista.

O engenheiro olhou demoradamente para o sujeito suado, sujo e de bigode. Em seguida deixou-lhe à par dos fatos.

— Seus conhecimentos são muito bem-vindos neste lugar senhor primeiro maquinista. Até porque, o nosso primeiro maquinista morreu. Você está contratado.

Jacob Douglas saiu do alojamento do engenheiro feliz como um passarinho. Isso sim é que é um cara de sorte, se tivesse planejado tudo, não teria conseguido resultado melhor. Simplesmente aconteceu; aos trinta e três anos seria o primeiro maquinista da empresa.

 

Klein era um alemão da Bavaria. Mecânico de máquinas a vapor, foi atraído pelo salário que justificava a empreitada; oferecido para quem tivesse conhecimentos do maquinário.

Achou um golpe de sorte. Até chegar no acampamento e poder observar as condições de trabalho. Estava na empresa a pouco mais de um ano.

Seu grande plano era fazer o pé de meia em uns dois ou três anos e voltar para a Bavaria. Era o mais equilibrado da equipe; o tipo de pessoa que fatalmente obteria sucesso.

Soubera de alguns veículos a motor de combustão interna e sentiu-se naturalmente atraído. Uma maneira mais simples de se conduzir carga e passageiros, sem precisar de trilhos.

Mais ainda, era época de disputas, provas de velocidade e resistência entre veículos de motor a combustível e veículos de motor elétrico.

Tudo o que precisava era de um pequeno capital para retornar para este cenário de inventos e novidades, especializar-se e, quem sabe, assumir um ofício novo.

 

Havia ainda o jovem Otto, o mais novo do grupo. Um auxiliar de mecânica, não tinha nenhuma formação em particular. Não era filho de maquinista, nem era grande conhecedor de máquinas.

Filho de lavradores, resolvera tentar a sorte fora da Alemanha. Também não pensava em voltar para casa. Ouvira a mesma história que circulava no acampamento; de que havia terras mais ao sul e um clima diferente.

Tinha planos de reservar algum dinheiro e dentro de mais alguns anos se bandear para aqueles lados. Não era bem assim que acontecia; a maioria dos homens acabava endividados junto à empresa. Logo estariam às voltas com a própria sobrevivência.

Os suprimentos oferecidos eram todos pagos. Qualquer item adicional era um verdadeiro luxo, só obtido no mercado negro a preços exorbitantes, ante a dificuldade de se obter até uma simples barra de sabão.

 

O escocês havia assumido o controle de sua Baldwin 1897, ainda naquela manhã com tudo em ordem para mais um dia conduzindo equipamentos e materiais para a equipe de construção.

Os homens avançavam a duras penas abrindo caminho nas matas à base de golpes de machados e na força dos músculos humanos, arrancando as raízes enormes com a ajuda de máquinas a vapor; para depois proceder ao assentamento dos dormentes e trilhos.

O trabalho era extenuante. O clima, por demais úmido, isto reduzia a chance de o suor refrescar a superfície do corpo, um mecanismo de resfriamento natural.

O lugar era repleto de mosquitos, e chovia torrencialmente. A retomada dos serviços era com os homens cobertos de lama. 

Havia o beribéri, muitas vezes resultado da má alimentação dos trabalhadores, ou consumo de alimentos contaminados. A malária, transmitida por mosquitos; e a disenteria, pelo uso de água e alimentos contaminados.

Os ceifadores dos trópicos espreitavam a cada avanço. Já não se falava em um estado de saúde da parte dos homens, mas em um estado de doença, tal a frequência de casos por entre os trabalhadores da ferrovia. O atraso nos trabalhos se acumulava, a doença uma constante; a morte uma mera consequência.

Sendo assim, havia um sentido de aposta nestas empreitadas, que podiam ser transformadas em um “tudo ou nada”, ante ao pouco apoio médico aliado ao pouco conhecimento das doenças tropicais existentes na época.

Doug já vinha sentindo os primeiros sintomas da malária com as dores no corpo e o princípio de febre. Mais por teimosia do que por razão, preferiu assumir o comando da locomotiva do que ir para a enfermaria do acampamento.

Foi preciso deter a máquina antes da partida e levá-lo de volta para o acampamento, antes que coisa pior acontecesse. O cenário já estava pronto, tal como fora para outros; chegara sua vez.

Após três dias de crise, Doug o escocês, foi a óbito por malária. Terminava assim, de forma rápida e inglória as aventuras do primeiro maquinista.

Depois foi a vez de Otto picado por mosquitos, poucos dias depois. Também não resistiu ao ataque da doença, sucumbindo em seguida. Nunca mais chegaria às terras do sul do Brasil.

Antes de se completar aquela semana, Klein que acreditava ter comido algo estragado, teve uma crise de diarreia e precisou ser afastado do serviço no galpão de máquinas.

Desidratando rapidamente, bebia água contaminada sem o saber. A disenteria prolongada levou à morte o homem das máquinas, e com ele os veículos de um novo tempo.

 

O lugar ficara tão escuro quanto silencioso. Fazia muito frio, e os homens tinham a impressão de estarem sendo observados o tempo todo. Temiam as feras da floresta que eventualmente circulavam pelos arredores do acampamento. Agora estavam sozinhos, em uma linha de ferro no meio do nada.

Klein chama pelo escocês:

— Doug, olhe aquilo, aquela luz. Ela é diferente, não é do trem; e nem vem do lado dos trilhos.

Doug levanta a vista e percebe a luz que se aproxima.

— É sim, é o trem. Ele chegou dessa vez.

— Preste mais atenção não é o trem; é bem diferente. Não está vendo? Até a direção é fora da linha.

Doug perturbado, não notou que a luz não vinha da direção dos trilhos. Presta atenção e se assusta ante à luz que se aproximava. Se confundem com aquela situação inesperada. Então aguardam por um momento.

— Klein, Doug, tenham calma somos amigos, viemos para ajudar. Chegou a hora de partir de fato. Vocês estão aqui há muito tempo. Não perceberam nada? Notem que Otto já não está mais aqui; ele já veio conosco. Explicam os trabalhadores da Luz em missão de resgate.

— Quem são vocês? O que querem aqui? O que fizeram com o Otto; para onde o levaram? Indagava Doug, mais alucinado do que seguro de suas palavras. Klein intervém e tenta trazê-lo à realidade.

— Doug, olhe de novo, Otto está com eles. A pedido do líder do grupo, Otto se aproxima e se dirige ao primeiro maquinista.

— Veja Doug, sou eu Otto; olhe para mim. Estas pessoas estão aqui para nos ajudar. Eu estava perdido e eles me encontraram. Venham vocês dois conosco. Vai ser melhor assim.

— Otto tem razão Doug, vamos com eles agora. Não sabemos o que aconteceu com o trem; por que razão ele não chega. Pelo menos nos tiram daqui. Completou Klein, no afã de trazer Doug à razão e encerrar com aquilo.

— Isto tudo é mentira! Vocês estão sendo enganados. Estão se iludindo com esses daí. É tudo mentira para levá-los para mais adentro na mata. Não conseguem perceber? É o caminho do inferno; prefiro esperar o trem. Quem for, não vai voltar nunca mais; vão ser enganados.

Graciliano, o líder da equipe de resgate sinalizou para seu grupo para que se afastassem, assim como Otto e Klein. Então orientou a um de seus trabalhadores:

— Por hora, vamos embora. Vamos deixá-lo a sós com sua confusão mental. Vamos conduzir Otto e Klein até a nave hospital de Fabiano. Depois retornamos e o convidamos para nos acompanhar de volta à Escócia. Seus avós poderão então nos ajudar a convencê-lo.

Sentado à beira da linha férrea, Doug sacudia a cabeça em um movimento de vai e vem, enquanto balbuciava palavras, como em um transe hipnótico que envolvia a si mesmo.

— Vai chegar, vai chegar, vai chegar. Vou embora, vou embora; vou embora. Como quem Busca se convencer de que está fazendo a coisa mais certa.

Na sua mente, em completa confusão, cenas demoníacas se apresentavam anunciando os portais do inferno. Era isto que o detinha fora de si mesmo. O medo, aquele que não deveria ter, mas que lhe foi ensinado.

Quando se viu metido nas noites em meio à floresta no acampamento, sua mente trazia de volta toda sorte de fantasmas, criação dos próprios homens em histórias contadas e repetidas de geração a geração.

A diferença é que agora é por demais escuro, por demais frio, e estava completamente sozinho.

Assustado, retornou à posição fetal e ficou encolhido, junto de sua ferrovia imaginária, à espera de que o diabo o carregasse a qualquer momento.

Sentiu um toque suave em seu ombro, e já se preparava para gritar, quando ouviu uma voz, que já não ouvia desde os tempos de sua infância.

— Jacob meu querido, sou eu, James. É vovô.

O perturbado Doug se virou lentamente, receosos do que poderia ver. Não houve necessidade; James seu avô estava ali em carne e osso, diria Doug.

O velho incentivador dos tempos de infância estava de volta, e com ele a possibilidade de se confiar e sair dali. Foi conduzido para junto dos demais na companhia de James; quando puderam então retomar longas e antigas conversas.

Corria o ano de 1938, e o mundo se avizinhava de um conflito brutal. Mas isso ainda não chegava à mente de Doug.

No final de novembro de 1907, houve uma crise sanitária nos acampamentos das equipes de trabalhadores da ferrovia Madeira Mamoré. Na ocasião, dezenove trabalhadores morreram na mesma semana. Entre eles estavam Doug, Klein e Otto.

Em 1910 realizando pesquisa de campo, como representante do Instituto Soroterápico Federal, e contratado da empresa construtora, o sanitaristas Oswaldo Cruz constata que de 80 a 90% dos trabalhadores estavam sofrendo com malária.

O médico-pesquisador, acompanhado pelo médico Belisário Penna, sugere o uso de doses massivas de quinino, e que ainda os trabalhadores se recolhessem ao pôr do sol, para tendas equipadas com mosquiteiros; em um esforço para preservar a saúde e a vida dos operários.

O que se pode afirmar de concreto, é que de 1907 até 1910, somente ficaram prontos 90, dos 366 quilômetros de ferrovia em seu projeto original. Após a intervenção dos sanitaristas, em dois anos os 276 quilômetros restantes foram concluídos e a ferrovia inaugurada.

Em 1917 Oswaldo Cruz deixaria o plano da matéria. Cumpriria a sua própria estadia de correção por sete anos. Refeito, viria a se tornar uma figura muito popular com a ajuda, e as mãos, de um jovem médium de Pedro Leopoldo, em Minas Gerais.  

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